O papel do “Movimento da Legalidade”
Brizola foi uma liderança que se superou. O povo do Rio Grande do Sul se levantou e motivou todo o Brasil a resistir, a ponto de bloquear um golpe, que viria a acontecer em 1964. “Eu tinha 15 anos e estava em Porto Alegre, onde vimos todas as repercussões do movimento da Legalidade. Não tive participação de rua, até pela idade, mas acompanhava pelo rádio, como o resto da população”, recorda.
A seguir, a íntegra do seu discurso na Assembléia Legislativa sobre os 50 anos do “Movimento da Legalidade”:
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Comemoramos nesta Sessão Solene os 50 anos do “Movimento da Legalidade”, movimento que – então com 15 anos – acompanhei empolgado pela “Cadeia da Legalidade”.
Tratado como irrelevante pela historiografia oficial, foi sem dúvida uma das maiores e mais radicais mobilizações cívicas do Rio Grande do Sul e do Brasil, impedindo – de armas na mão – que o golpe militar fosse antecipado para 1961.
E é preciso lembrar que em 1954 o gesto extremo do suicídio de Vargas – seguido de enormes manifestações de massas em todo o país – bloquearam o golpe em andamento.
Da mesma forma, em 1955, o contragolpe preventivo do Marechal Lott – afastando Carlo Luz da presidência interina e substituindo-o por Nereu Ramos, Presidente do Senado – foi a única forma de garantir a posse de Juscelino Kubicheck.
Em todos esses acontecimentos – assim como em 1964 – uma constante: de um lado as forças conservadoras, entreguistas e antidemocráticas; do outro, as forças nacionalistas, que propugnavam reformas estruturais no país e a ampliação da democracia para as amplas massas trabalhadoras. Esse foi o pano de fundo da grande luta pela Legalidade.
Quando Jânio, no dia 25 de agosto de 1961, entregou sua carta-renúncia aos ministros militares e ao presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, não foi um ato tresloucado do histriônico presidente do Brasil. Ao contrário – como relatou anos mais tarde Jânio Quadros Neto e como apontam todas as evidências –, foi a tentativa fracassada de um auto-golpe com o objetivo de retornar “nos braços do povo” e com apoio dos militares. O fato de Jango estar na China Socialista e ser uma sexta-feira – quando o Congresso normalmente estava vazio – constituíam o panorama ideal para o desenlace pretendido. Só que a artimanha foi mal calculada e “o tiro saiu pela culatra”, na medida em que a sua renúncia foi imediatamente aceita e o presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzili, assumiu a Presidência da República.
Tão logo Jânio tornou-se uma “carta fora do baralho”, os ministros militares passaram a tutelar Mazzili e lhe informaram que não aceitavam que Jango assumisse a presidência da República, quando retornasse ao país.
Quando a notícia da renúncia chegou ao conhecimento de Leonel Brizola, este tratou de comunicar-se com Jânio, colocando o Governo do Rio Grande do Sul à sua disposição. Esclarecido que ele não havia sido compelido a renunciar, Brizola passou a defender a posse de João Goulart.
Diante da informação de que os ministros militares opunham-se a isso, entrou em contato com o Comandante do III Exército – General Machado Lopes – para saber do seu posicionamento. Recebeu a resposta de que “como soldado ficarei com o Exército.” Esse diálogo deixou claro que Machado Lopes subordinava-se à postura golpista dos ministros militares. Brizola ainda tentou o apoio de outros comandantes de Exército, no resto do país – como o gaúcho Costa e Silva, comandante do IV Exército no Recife – mas em vão.
Apesar do quadro adverso, Brizola não se intimidou. Colocou a Brigada Militar e a Polícia Civil em rigorosa prontidão, fez com que ocupassem os pontos chaves da cidade e organizou a defesa do Palácio Piratini. Concentrou a maioria das tropas da Brigada Militar em Porto Alegre e requisitou todos os depósitos de combustível e pneus.
A Assembleia Legislativa – presididas pelo deputado Hélio Carlomagno – declarou-se em sessão permanente. Lideranças políticas, sindicais e estudantis reuniram-se na Câmara Municipal de Porto Alegre e decidiram realizar uma manifestação de rua. Saíram da Prefeitura e subiram a Borges de Medeiros, gritando palavras de ordem contra o golpe. Ao chegarem ao Piratini já eram cinco mil, exigindo o respeito à “legalidade” e a posse de João Goulart. Falando da sacada do Palácio, Brizola aderiu a essa palavra de ordem. Estava começando o “Movimento pela Legalidade”.
Lideranças sindicais – como Eloy Martins, Jorge Campezatto, Álvaro Ayala, Luiz Vieira, Lauro Hageman, Ony Nogueira e José Cezar Mesquita, entre outros – criaram o Comando Sindical Gaúcho Unificado com a tarefa de fundar Comitês de Resistência Democrática. A sede do Sindicato dos Alfaiates – dirigido pelos comunistas era o coração da mobilização sindical. João Amazonas – então Secretário-Geral do PC no Rio Grande do Sul – relataria, anos mais tarde: “Nós tomamos uma decisão: vamos organizar batalhões patrióticos. Ocupamos um prédio do governo que tinha ali, na Avenida Borges de Medeiros (…) organizamos os batalhões patrióticos por categoria profissional (…) Alguns dias depois, fizemos um desfile. (…) Tudo organizado por nós.”
No prédio do “Mataborrão”, na Av. Borges de Medeiros com Andrade Neves, lideranças populares, sindicais e estudantis organizaram o primeiro “Comitê de Resistência Democrática” – com forte presença dos comunistas, trabalhistas e socialistas – o qual passou a alistar milhares de pessoas para lutar de armas na mão, em defesa da Constituição.
Ali estavam a poeta Lila Ripoll, organizando os artistas; o ex-deputado federal comunista Abílio Fernandes; Elói Martins, membro do CC do Partido Comunista; Fúlvio Petracco, presidente da FEURGS; Fernando Almeida; Carlos Araújo; Victor Douglas Júnior; Luís Heron Araújo; e tantos outros lutadores do povo. Logo, os “Comitês de Resistência Democrática” se espalharam por todo o Estado, alistando centenas de milhares de pessoas.
Os dias que se seguiram assistiram à formação e o desfile dos Batalhões Operários – da Carris, construção civil, estivadores, marítimos, ferroviários, metalúrgicos, bancários, enfermeiros, etc. – e dos Batalhões de secundaristas, universitários, intelectuais, artistas, militares reformados, CTGs, escoteiros, enfim a cidadania mobilizada.
Nacionalmente, a UNE decretou greve nacional em defesa da posse de João Goulart. Seu presidente, Aldo Arantes – que anos depois seria, por quatro mandatos, deputado federal do PCdoB – viajou para o Rio Grande do Sul, onde instalou a sede da UNE e, utilizando a “Rede da Legalidade”, mobilizou os estudantes de todo o país para a resistência ao golpe.
A Comissão Permanente das Organizações Sindicais, dirigida pelos comunistas, organizou uma greve entre os marítimos, portuários, trabalhadores em transporte de passageiros e das indústrias da Guanabara. Os ferroviários da Leopoldina paralisam suas atividades.
No Rio de Janeiro, o Marechal Lott lançou Manifesto denunciando o veto dos ministros militares à posse de Jango e defendendo o respeito à Constituição. Pouco depois foi preso pelos golpistas.
Ao comunicar-se com o Marechal Lott, Brizola foi orientado a procurar os generais legalistas Or
omar Osório – comandante da 1ª Divisão de Cavalaria de Santiago – e o Gen Peri Bevilaqua – da 3ª Divisão de Infantaria de Santa Maria – as duas mais poderosas do III Exército. Os dois generais se solidarizaram de imediato com a causa da Legalidade, inclusive, passando a pressionar Machado Lopes para que defendesse a Constituição.
Ao mesmo tempo, Brizola passou a manter contato com as guarnições militares do interior do Estado, a maior parte das quais aderiu à Legalidade. A cada hora que passava, a posição golpista dos ministros militares perdia terreno no seio do III Exército e o próprio General Machado Lopes lhes informava isso em seus comunicados.
No sábado à noite, Brizola começou a divulgar o manifesto do Marechal Lott, em defesa da legalidade, junto com seu próprio manifesto, ambos amplamente distribuídos aos jornais, rádios e TVs. Seus discursos e entrevistas passaram a ter uma grande audiência e despertaram a cidadania rio-grandense. Um número crescente de pessoas concentrou-se à Praça da Matriz para defender a Constituição.
Mas, a medida que as principais rádios divulgam o manifesto de Lott, seus transmissores eram silenciados e lacrados pelo III Exército. A Rádio Guaíba, cujos proprietários se negaram a transmiti-lo, foi uma das poucas que permaneceu no ar.
Nas primeiras horas do dia 28 de agosto, segunda-feira, Brizola tomou conhecimento de que os ministros golpistas haviam determinado ao III Exército e ao 5º Comando Aéreo que submetessem o Governo do Rio Grande do Sul, se necessário bombardeando o Palácio Piratini. O Governador tomou, então, a decisão de requisitar a Rádio Guaíba e passou a irradiar diretamente dos porões do Palácio Piratini, convocando o povo a vir para a Praça da Matriz e defender a Constituição.
Estava criada a “Rede da Legalidade”, que chegou a englobar 104 emissoras de todo o país, denunciando os golpistas e convocando o povo brasileiro a defender a Constituição.
Tropas da Brigada Militar e forças da Polícia Civil foram enviadas para proteger a torre e os transmissores, na Ilha da Pintada. Também a central telefônica foi ocupada e guarnecida por tropas da Brigada Militar. Ao mesmo tempo, Brizola conseguiu mais de três mil revólveres com a fábrica Taurus, distribuindo-os à população.
Na base aérea de Canoas, os oficiais aviadores, obedientes às ordens dos ministros militares tentaram levantar voo para bombardear o Palácio, mas foram impedidos pelos suboficiais e sargentos que desarmaram os aviões e esvaziaram os seus pneus, impedindo a decolagem. O Tenente-Coronel Aviador Alfeu de Alcântara Monteiro, legalista, assumiu então o comando da Base Aérea. Em represália, será morto – na mesma Base Aérea – em 4 de abril de 1964, por ocasião do golpe militar.
Mas, a ordem dos golpistas foi reafirmada: calem Leonel Brizola! O General Machado Lopes determinou, então, que tropas do III Exército se deslocassem até a Ilha da Pintada para silenciar os transmissores da Rádio Guaíba e a “Cadeia da Legalidade”. Porém, no momento em que essas tropas já se preparavam para agir, revogou a ordem e – pressionado pela grande mobilização popular e por seus principais comandantes – tomou a decisão de não mais acatar as ordens dos ministros militares e apoiar uma saída Constitucional para crise.
Unificado o Rio Grande do Sul com a adesão do III Exército com seus 140 mil homens – o mais poderoso do país –, reforçado pela Brigada Militar e com o apoio massivo da população, equilibraram-se as forças no tabuleiro nacional, ainda mais que os golpistas não podiam confiar na unidade do seu campo, onde cada vez mais se manifestavam vozes dissonantes. Diante do imponderável, tanto as elites dominantes quanto os generais passaram a trabalhar por uma saída negociada que evitasse a guerra civil. Essa saída foi a emenda parlamentarista, votada em dois turnos, nos primeiros dias de setembro e aceita a contragosto pelos ministros militares golpistas.
Finalmente, a 7 de setembro de 1961, João Goulart assumiu a Presidência da República sob o regime parlamentarista.
O povo, os trabalhadores, os
militares democratas – conduzidos por um grande líder – haviam vencido! A vitória não havia sido completa, mas, talvez, tenha sido a possível naquelas circunstâncias. Mais uma vez o povo havia mostrado a sua vontade e a sua força. Parafraseando o hino Farroupilha, façamos de suas façanhas o nosso exemplo!
Muito obrigado