Aldo desembarcou em Porto Alegre acompanhado por seu assessor Herbert José de Souza, o Betinho. A cidade que ambos encontraram era uma praça de guerra. Cinquenta anos depois o cenário ainda é vivo na memória de Aldo. “Era uma paisagem e um clima de guerra civil, eu nunca tinha visto aquilo no Brasil”, lembra. Canhões antiaéreos pelas ruas, onde massas de povo marchavam para defender a cidade. O Palácio Piratini, onde Aldo e Betinho apresentaram ao Governador Leonel Brizola o apoio da UNE, estava cercado por sacos de areia, automóveis, jipes, bancos da Praça da Matriz, trincheira defendida por civis armados e milicianos da Brigada Militar. No topo, ninhos de metralhadoras. Para além das barricadas, o povo. Milhares de estudantes e trabalhadores aglomeravam-se em torno do palácio.

O que Aldo e Betinho não viram – mas saberiam mais tarde – é que a atmosfera de luta estendia-se por todo o Rio Grande do Sul. Os centros de tradições gaúchas, espalhados pelo Estado, arregimentavam o povo e o armavam com revólveres, espingardas e mesmo lanças e facões. Muitos desses gaúchos, com suas botas, bombachas e lenços no pescoço afluíam para Porto Alegre, preparados para a luta. Comitês de mobilização formaram-se entre estudantes e trabalhadores, intelectuais e artistas. Irreconciliáveis nos campos de futebol, Grêmio e Internacional se uniram em favor da luta.

De fato, o Governador Brizola erguera em armas todo o Rio Grande do Sul para garantir a posse do Vice-Presidente João Goulart. A mobilização contagiou mesmo os gaúchos que não haviam votado em Jango. Naqueles dias dramáticos, em que o País beirava a guerra civil, Aldo Arantes, aos 22 anos de idade, recém-empossado na Presidência da UNE, vivia a primeira das tantas provas que lhe reservaria sua extensa e efervescente vida política nos 50 anos seguintes.

Jânio: breve e controverso

Empossado na Presidência da República em 31 de janeiro de 1961, sete meses depois, na manhã de 25 de agosto, Jânio Quadros renunciou, acusando “forças ocultas” que, garantiu, inviabilizavam o exercício do seu mandato. O episódio nunca foi devidamente esclarecido, pairando até hoje a suspeita de que, com a renúncia, ele pretendia deflagrar um movimento popular por sua permanência com poderes excepcionais. Se esse foi mesmo seu objetivo, falhou.

A breve passagem desse político extravagante, quase caricato pelo Palácio do Planalto tem sido lembrada mais pelas medidas excêntricas adotadas: a proibição das rinhas de brigas de galos, de espetáculos de hipnotismo e letargia em auditórios, de corridas de cavalos em dias úteis, de lança-perfume e do uso do biquíni em concursos de beleza pela televisão, entre outras esquisitices. Mas o que o conduziu ao impasse foi seu desprezo pelos partidos e pelo o jogo político-parlamentar e seu relativo isolamento da ortodoxia conservadora que pavimentou seu caminho rumo à Presidência.

Se na política interna Jânio rezou pela cartilha conservadora, nas relações externas sua conduta “autônoma e independente” (assim ele próprio a definiu) afrontou os ditames da guerra fria, que estava no auge, e ligavam o Brasil aos interesses dos Estados Unidos. Reatou relações diplomáticas com a União Soviética, votou contra o isolamento de Cuba proposto pelos Estados Unidos, enviou missão especial e plenipotenciária aos países socialistas do Leste europeu, com os quais o Brasil ainda não mantinha relações e autorizou viagem exploratória do Vice-Presidente João Goulart à China. Ao Presidente argentino, Arturo Frondizi, chegou a sugerir a formação de um bloco dos dois países, autônomo e independente em relação aos Estados Unidos, mas sem alinhar-se com o bloco soviético. Era entusiasta do Movimento dos Países não Alinhados, liderado pelo Presidente da Yugoslávia, o ex-guerrilheiro Joseph Broz Tito, cuja foto mantinha à vista de todos em seu gabinete no Planalto. Por fim, num gesto terminal, condecorou o líder cubano Ernesto Che Guevara com a Ordem do Cruzeiro do Sul. Era o dia 19 de agosto de 1961.

Havendo renunciado, os ministros militares vetaram a posse de Jango por se tratar de “um comunista”. Expediram ordem para prendê-lo logo ao desembarcar.

Às armas, cidadãos!

O homem que Aldo Arantes encontrou no Palácio Piratini, comandando a resistência legalista de metralhadora na mão, “era muito determinado, firme, sabia o que queria e exercia uma liderança muito forte no Estado”. Ainda novo, cheio de energia, Leonel Brizola transformou-se numa grande liderança nacional ao anunciar, na madrugada de domingo, 27 de agosto de 1961, pelas rádios Guaíba e Farroupilha, sua disposição de resistir ao golpe, à bala se necessário. E convocava o povo a segui-lo. E os gaúchos o seguiram.

Brizola mandou a Brigada Militar ocupar as rádios Guaíba e Farroupilha e a Companhia Telefônica, de modo que passou a dominar todas as comunicações em Porto Alegre. Controlou o movimento da Varig, requisitou três mil revólveres calibre 38 da fábrica de armas Taurus e estabeleceu um posto de recrutamento de populares para a resistência na Avenida Borges de Medeiros, um prédio em formato de mata-borrão, por isso assim apelidado. Em apenas cinco dias, 45 mil pessoas se inscreveram no Mata-borrão e entraram em filas para receber armas e treinamento. Um dos líderes dessa mobilização popular era João Amazonas, então dirigente principal do Partido Comunista do Brasil (na época ainda PCB) no Estado. De fora, o movimento recebeu o apoio solitário de um só governador: Mauro Borges, de Goiás. Mas as ruas do Brasil estavam com a resistência gaúcha, que era uma resistência brasileira. E isso encurralou os militares golpistas.

Na manhã do dia 28 de agosto, por intermédio do General Orlando Geisel, o Ministro da Guerra ordenou por rádio ao comandante do III Exército, General José Machado Lopes, que contivesse Brizola, usando para tanto toda a tropa disponível no Rio Grande do Sul e a que mais necessitasse de outros pontos do País, inclusive empregando a Aeronáutica para bombardear o Piratini, caso isso fosse necessário. A resposta de Machado Lopes foi lacônica: “Cumpro ordens dentro da Constituição vigente”. E abandonou a sala. Dirigindo-se ao Piratini, comunicou a Brizola que o III Exército – antes expectante – aderia formalmente ao movimento de resistência ao golpe e pela posse imediata do Vice-Presidente João Goulart.

Aos 61 anos, Machado Lopes não tinha nada de esquerdista. Seu currículo era conservador, de liberal-cristão anticomunista, incluindo oposição ao tenentismo (movimento progressista dos militares nos anos 20) e à sua manifestação mais contundente, a coluna Prestes, além do combate armado contra a insurreição comunista de 1935. Sob suas ordens estavam 120 mil homens no Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, então o maior contingente do exército brasileiro. “O apoio do comandante do III Exército foi uma das razões pela quais a luta pela legalidade terminou tendo êxito”, comenta Aldo.

A UNE nas ruas

Aldo Arantes passava os dias no Piratini, articulado com o comando legalista. Saía apenas para ajudar na mobilização dos estudantes gaúchos, dirigidos pela Federação dos Estudantes Universitários do Rio Grande do Sul (FEURG), que jogou papel essencial na resistência. Realizavam passeatas, debatiam nas assembléias gerais, Foram os estudantes que arrancaram os bancos da Praça da Matriz para reforçar as barridas em torno do palácio. Na carroceria de caminhões, chegavam às para a concentração em torno do palácio.

Como o Ministro da Guerra ordenara o lacre dos cristais de várias emissoras de rádio de Porto Alegre, Brizola mandou transferir para os porões do Piratini os transmissores da Rádio Guaíba. Tinha início a Cadeia da Legalidade, transmitindo 24 horas mensagens de resistência para todo o Brasil e também para o exterior. A única música transmitida era o Hino da Legalidade, composto por Paulo César Peréio. As principais alocuções eram

do entusiasmado Governador gaúcho, dirigindo-se ao povo brasileiro, e de Aldo Arantes que, em nome da UNE, relatava aos estudantes brasileiros a evolução dos acontecimentos, apresentava diretivas de ação, conclamando à mobilização. Em várias capitais os estudantes eram convocados para ouvir, nas praças públicas, a palavra do Presidente da UNE.

O povo na rua mudou o curso dos acontecimentos. Na Base Aérea de Canoas, sargentos furaram os pneus e desarmaram os aviões que, sob ordens do Ministro da Aeronáutica, deveriam bombardear o Palácio Piratini. Em todo o Paraná, os quartéis do III Exército ficaram com a legalidade. A exceção foi Santa Catarina, onde a base da Marinha aderira aos golpistas, abastecendo os navios que seguiram para sufocar o movimento legalista. Mas acabou isolada.

Jango: a volta e a posse.

A renúncia de Jânio Quadros pegou de surpresa o Vice-Presidente João Goulart, que estava em Singapura, retornando de viagem oficial realizada à China. Enquanto Jango cumpria um retorno intencionalmente demorado ao Brasil (Singapura, Paris, Nov York, Buenos Aires, Montevidéu e, finalmente, Porto Alegre), gestava-se no Congresso a solução intermediária e conciliatória para sua posse: a adoção do parlamentarismo, que transferia para o Congresso e o Presidente do Conselho de Ministros boa parte das prerrogativas presidenciais.

Jango desembarcou em Porto Alegre no dia 1o de setembro à noite. O jovem Aldo Arantes estava no Palácio Piratini quando o Vice-Presidente chegou acompanhado por Brizola, sob o cerco de uma entourage afobada e barulhenta. O clima, no entanto, não era só de festa. Naquele instante, era mais tenso que festivo. Aldo não presenciou, mas soube de uma discussão áspera, em reunião reservada, entre Jango e Brizola. O governador insistia em não aceitar o acordo parlamentarista. Mas o virtual Presidente já o havia acatado.

O homem que Aldo Arantes viu sair na sacada do Palácio Piratini estava calmo, afável, embora cansado. E acenava para a multidão. A ovação que recebeu, ribombando pela Praça da Matriz e cercanias, não ocultou, entretanto, vaias aqui e ali dos que, como Brizola, resistiam à solução parlamentarista. Alguns desses chegaram a atear fogo às faixas e cartazes com o nome de Jango e gritar: “Covarde! Covarde!”. Mas a ovação foi soberana.

Jango embarcou para Brasília no dia cinco de setembro, a bordo de um Viscount da Varig. Em outro aparelho, Aldo Arantes, Betinho e os membros da comitiva oficial. Soube-se, mais tarde, que oficiais extremistas da aeronáutica pretendiam abater o avião que transportava Jango. Mas qual dos dois seria abatido, ou seriam ambos? Era a chamada “Operação Mosquito”, que afinal foi abortada. Aldo e Betinho desembarcaram no aeroporto de Viracopos, em Campinas.

João Goulart foi empossado como Presidente da República no dia sete. Brizola não o acompanhou, nem participou das solenidades. Ao discursar no Congresso, “Jango fez uma menção rápida ao governador gaúcho e o movimento da Legalidade, sem citá-lo pelo nome com que ficara conhecido”, segundo relato do jornalista Flávio Tavares. Tancredo Neves, Deputado Federal pelo PSD mineiro, foi escolhido Primeiro-Ministro. No Ministério, nenhum nome do Rio Grande do Sul.

Aldo Arantes e Leonel Brizola desenvolveram, na breve, porém intensa luta democrática de agosto de 1961, profundos laços de afeto. “Fomos amigos para o resto da vida”, diz Aldo. E lembra que, findo o movimento e ao se despedir do Governador gaúcho, dele recebeu um revólver Rossi 38 “como símbolo da resistência”. Do presente, ficou apenas a lembrança. “Infelizmente, durante a ditadura militar, eu dei este revólver para um sujeito que estava na luta armada”.

“A mobilização dos estudantes foi tão forte, tão decisiva para o sucesso da resistência que, dias depois da posse, o Presidente João Goulart e todo seu ministério visitaram a sede da UNE para agradecer”, lembra-se Aldo (na foto acima, Aldo é o primeiro da esquerda para a direita). “Foi um ato marcante”, diz, “pois pela primeira vez um Presidente da República ia à sede da UNE”. Somente 40 anos depois outro Presidente esteve por lá: Luiz Inácio Lula da Silva, eleito em 2002.

Imediatamente após a posse de Jango, a direita militar e civil, embora derrotada, continuou a conspirar, organizada, sobretudo, no secreto Instituto de Pesquisas Econômicas e Sociais (Ipes) e no Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad) que, entre outras iniciativas, financiava a eleição de candidatos anticomunistas. Começava, sub-repticiamente, a ser escrita a história do golpe de 1964.

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Fonte: Blog do Mafredini