Reforma política e combate à corrupção
Este é tempo de partido,
tempo de homens partidos.
(…)
Visito os fatos, não te encontro.
Onde te ocultas, precária síntese,
penhor de meu sono, luz
dormindo acesa na varanda?
(…)
Calo-me, espero, decifro.
As coisas talvez melhorem.
São tão fortes as coisas!
Mas eu não sou as coisas e me revolto.
Tenho palavras em mim buscando canal,
são roucas e duras,
irritadas, enérgicas,
comprimidas há tanto tempo,
perderam o sentido, apenas querem explodir.
“Nosso Tempo”, poema de Carlos Drummond de Andrade
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Um estranho clima se formou nos debates sobre “corrupção” após a manifestação em Brasília no Dia da Pátria (7 de setembro). O apoio de entidades reconhecidamente comprometidas com a ética – como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) – ao protesto que se disseminou por 34 cidades em 17 Estados não impede que se faça um juízo crítico da natureza do evento.
A primeira observação que precisa ser feita refere-se à ausência de entidades com tradição de mobilização popular, como as centrais sindicais e as organizações estudantis. Motivo de manifestações histéricas e raivosas da mídia, que cobrou uma ação como as promovidas contra os governos de Fernando Collor de Mello e Fernando Henrique Cardoso (FHC), a não participação dessas entidades é um bom ponto de partida para se entender a essência do pensamento majoritário que moveu os protestos.
Histórica defesa do financiamento público de campanha
O que menos interessa para a mídia e para os movimentos políticos alinhados ao seu ideário é o combate efetivo à corrupção. Um exemplo mais do que evidente são os contantes ataques às propostas de reforma política que propõem medidas concretas para o combate às distorções que fundamentam o que se convencionou chamar de “corrupção”. “Nós, do PT, defendemos o financiamento público exclusivo das campanhas eleitorais, de forma a acabar com a contribuição direta a partidos ou candidatos e a anular a força do poder econômico na eleição”, diz o ex-deputado e ex-minitro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, em recente artigo no jornal Folha de S. Paulo.
O Partido Comunista do Brasil (PCdoB) tem opinião semelhante. Em reunião com o relator da Comissão Especial de Reforma Política, deputado Henrique Fontana (PT-RS), a bancada comunista reafirmou a sua já histórica defesa do financiamento público de campanha. Para o presidente nacional do PCdoB, Renato Rabelo, a proposta do relator é mais compatível com o nível das preocupações relacionadas com a garantia do financiamento público exclusivo de campanha. “A lógica é certa”, enfatizou ele. “O esforço todo é para garantir o financiamento público”, destacou.
Esse assunto passa ao largo na cantilena da mídia sobre “corrupção”. Quando ele aparece é para ser impiedosamente pisoteado. Qual a razão disso? Ela é de fácil compreensão. Se quisermos levar este debate a sério, devemos lembrar de conceitos políticos há muito desvendados. O Estado é o governo de homens organizados em classes. E a política é a arte de organizar os homens. A vida política, portanto, é o afrontamento dos interesses sociais — ou seja, de classe — pela direção do Estado.
Última contribuição dos "patriotas" de ocasião
Esse não é, portanto, um debate que pode ser elucidado à base do emocinalismo, dando ouvidos a quimeras oportunistas, a caráteres melífluos, a posições dúbias, a meias palavras. Nesse fogaréu que se instalou em Brasília, é preciso ver as coisas que estão além das coisas, enxergar o que há por trás da cortina de fumaça. Tomemos o exemplo da idéia estapafúrdia de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para "investigar a corrupção", a última contribuição dos "patriotas" de ocasião.
É fácil imaginar o redemoinho em que podem se transformar as notícias vazadas com segunda, terceira e quarta intenções no âmbito de uma CPI como essa. Voluntária ou involuntariamente, o máximo que se pode fazer é chantagem política diante do governo. É essa, unicamente, a leitura possível da proposta da CPI. O objetivo é apenas fazer marola para atrapalhar o governo, negociar alguma vantagem para a família e os amigos e nada mais. Não é, nem de longe, estudar a fundo a questão, propor mudanças na legislação e criar os meios para melhorar o combate à corrupção.
A CPI serviria, no máximo, para manipular os incautos com vistas a desgastar a imagem de adversários políticos. A mídia age, em circunstâncias onde há grande disputa pela atenção dos eleitores, como amplificadora das turbulências. Há também os casos onde a ignorância trabalha contra a informação. Seria muito melhor que o Congresso discutisse, a partir de episódios como esses, a natureza da corrupção no Brasil.
Executivo deveria tomar a dianteira dos fatos
Seria útil também que, em vez de apostar em espertezas de resultados políticos duvidosos, os deputados envolvidos nessa manobra se empenhassem em dar agilidade aos trabalhos parlamentares, debatendo a fundo a reforma política. O próprio Executivo deveria sair do imobilismo em que se encontra nessa questão, reorganizar-se internamente, articulando as forças que lhe dão sustentação, e tomar a dianteira dos fatos, de modo a não ser soterrado por eles.
Não há como negar que cada vez mais gente no Brasil vê a política como um gesto pouco nobre. Atribuem-se à sua lógica coisas como a depauperação dos valores e o recrudescimento de instintos primitivos. É comum se ouvir que política é feita pela escória da sociedade. Essa postura está refletida já em nosso léxico. Segundo o Aurélio, alguns dos significados de política são astúcia, ardil, artifício, esperteza. A mídia, por interesses de classe, dá enorme contribuição para isso.
Um marciano de boa índole que tivesse chegado à Terra pelo Brasil e estivesse estudando a humanidade munido do noticiário da mídia certamente anotaria em sua agenda que política é uma das coisas ruins que se inventaram por aqui. A conseqüência disso é a cristalização no território nacional da idéia de que quem não faz política é usurpado, enquanto quem faz leva sempre vantagem, se locupleta.
Histórica concentração de poder político no Brasil
É uma visão erradamente associada ao conceito de poder. Como nunca tivemos por aqui uma democracia de massas, a idéia que se tem é a de que a política serve somente de atalho para a conquista ilícita de uma fatia maior de riquezas. A explicação para essa campanha que tenta vender ao público a antipatia aos "políticos" reside no fato de que as opções de consumo — e aí o leque abrange desde serviços públicos até produtos de tecnologias sofisticadas — têm deixado os brasileiros à mercê de interesses poderosos.
A histórica concentração de poder político no Brasil fez com que a imensa maioria da sociedade vivesse pelo cabresto do poder econômico de poucos. Nessa fase de transição pela qual passa o país, é preciso fazer com que a democracia seja considerada um valor político coletivo. A maioria da sociedade imbuída dessa idéia saberá que exigir direitos, votar e cobrar desempenhos pavimentam o caminho para o avanço das mudanzas. A tarefa das forças democráticas e progressistas é a de livrar o país do manto de fealdade com que a atividade política foi coberta ao longo de nossa história pelo poder da elite.
Ela é longa e penosa, mas necessária. Pela via política, pavimentada com desprendimento e visão estratégica, temos a chance de estabelecer o alargamento da democracia econômica. A idéia do casamento da produção em massa com a distribuição em massa é o norte do projeto desenvolvimentista que começa a ser debatido com força no país. Ao se lançar nessa seara, as forças políticas democráticas e progresistas podem tomar a bandeira da moralidade púbica das mãos conservadoras para empunhá-la com autoridade.
Raízes fundas nas capitanias hereditárias
O bestialógico sobre esse tema consome papel, tinta, espaço na TV e uma quantidade ainda maior (e ainda menos aceitável) de graves reflexões vindas daquilo que se poderia chamar de forças originárias da corrupção. A polêmica se alimenta da aparente incompetência que se apresenta como uma característica irremediável, quase genética, que marca tudo aquilo que a grossa maioria dos "analistas" políticos que freqüentam a mídia comenta. Escrevo aparente incompetência porque no fundo o que há é descarada manipulação ideológica.
Eis uma boa maneira de definir a questão: é que o Brasil tem um sistema político das classes dominantes com raízes fundas nas capitanias hereditárias. Não é difícil perceber os obstáculos enfrentados pelas forças que andam em direção a um modelo de soberania nacional, de uma economia horizontal marcada pelo desenvolvimento. (Cumpre registrar que existe um setor da esquerda que, inexplicavelmente, perde enormes, valiosas quantidades de tempo e de energia enlameando o próprio rosto.)
O sistema político brasileiro estruturado pela ideologia da elite considera a locupletação como parte do seu ról de direitos. Por trás disso, está a lógica da hierarquia que define a sociedade brasileira. Aparece aqui o distanciamento entre establishment e nação, entre elite e povo, como um fertilizante poderoso para a corrupção. O mecanismo degenerador traduz-se na ausência do senso de conjunto, de que todos fazem parte de um mesmo projeto, de um mesmo destino. Aí, vale tudo. Negociar favores, tutano do conceito de corrupção, fica sendo apenas mais uma forma de sobreviver na selva.
Sistema político da elite atenta contra a democracia.
Desde que o quadro partidário brasileiro se modernizou, quando o governo do presidente Getúlio Vargas configurou o cenário político com partidos claramente representando classes ou camadas sociais, há um espaço político de centro-esquerda bem demarcado e com um enorme potencial de crescimento. Neste período, surgiu o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Surgiram também o PSD e a UDN, que retomaram a clássica configuração partidária da República Velha.
O PTB, partido ligado ao movimento operário que adotou uma plataforma nacional e democrática, revelou-se uma força ponderável na formação de um campo político nacional amplo e ao mesmo tempo com base popular, também integrado pelo Partido Comunista do Brasil — então com a sigla PCB —, e cumpriu importante papel até o golpe de 1964.
Hoje, pode-se dizer que, numa conjuntura evidentemente muito mais complexa, o DEM e o PSDB são, em essência, a continuidade do PSD e da UDN. O Partido Comunista do Brasil — com a sigla PCdoB —, que voltou a figurar com destaque no cenário partidário, participa de uma frente popular desde 1989, liderada pelo PT, que se ampliou até a vitória eleitoral de Lula em 2002. Naquele tempo em que reinou a democracia, assim como atualmente, o sistema político estruturado pela elite atentou contra a democracia para impendir a consolidação desse campo tentando empunhar a bandeira da moralidade.
Corrupção é inerente a sistemas políticos burgueses
Independente das projeções que se possa fazer para 2012 e 2014, é preciso constatar que, à medida que os problemas nacionais se complicam, as soluções exigem que o país siga pelo rumo das mudanças. Não é possível olhar para o futuro sem enxergar uma dura luta por soluções patrióticas para os problemas nacionais. Ou por outra: os avanços terão curso no processo de luta de classes.
Quando Karl Marx se dispôs a analisar o caso da França, que havia sido abalada pelo golpe de Estado de Luis Bonaparte, ele elaborou a análise segundo a qual a luta de classes pode ser preto no branco, mas vem acompanhada por uma variada gama de cinzentos. Além dos dois grandes personagens — a burguesia e o proletariado — Marx distingue os segmentos sociais que integram também a luta de classes e demonstra que entre os diversos grupos das classes formam-se alianças políticas. Assim, conclui ele em O Dezoito Brumário de Luis Bonaparte, a luta de classes não é linear e horizontal, mas fracionada e transversal.
O denuncismo da mídia precisa ser enquadrado nessa dimensão. A corrupção é inerente a sistemas políticos como o vigente no Brasil, na Bósnia-Herzegóvina, na Itália, na Escócia ou nos Estados Unidos. Não faz tempo o ex-primeiro-ministro italiano Giulio Andreotti foi julgado por conluio com a máfia. Outro ex-premiê, Bettino Craxi, foi condenado por aceitar suborno. O atual, Silvio Berlusconi, vive envolto em casos de suborno e corrupção. Nos Estados Unidos, o ex-presidente George Bush esteve envolvido com a mega-fraude da Enron. E o Japão é, entre os países ricos, provavelmente aquele em que a corrupção grassa com mais vigor. (Para se ter uma idéia, a yakuza, a máfia japonesa, tem um braço — o sokaya — exclusivo para lidar com tráfico de informações.)
Escandalosa máquina chamada sistema financiero
A inquietante pergunta que emerge disso é: será possível para as forças progressistas sobreviver sendo éticas, agindo correto, jogando pelas regras, enquanto seus competidores jogam areia no olho, agem sem nenhum parâmetro moral e perseguem objetivos na base do "não-importa-como"? Como fazer as coisas acontecerem politicamente no país, muitas vezes tendo de operar à margem do sistema que não funciona, sem deixar de ser ético? Até onde a ineficiência do sistema político permite que ajamos à revelia de suas regras sem atropelar valores?
A resposta a essas questões, que são cruciais para o país, e o caminho a seguir, parecem ser trazer os conceitos de democracia e de justiça para o terreno político e econômico. Uma ação democrática de fato, com participação política ampla das massas, certamente coibiria a prática das classes dominantes de fazer do que é público coisa de ninguém. Para elas, o erário não é dinheiro que pertence a todos e deve ser usado, sem controle da sociedade, para seus projetos. De onde vêm e para onde vão os recursos que passam pelos cofres públicos?
Poucas pessoas no país seriam capazes de fazer um relato que se aproxime do que é a vergonhosa manipulação que esse assunto sofre na mídia. O resultado é uma história sobre a corrupção distorcida, alicerçada em números saídos freqüentemente sabe-Deus-de-onde que, postos diante dos fatos, viram café pequeno perto dos montantes que alimentam a escandalosa máquina esfomeada e descontrolada chamada sistema financiero.
A direita ainda pensa como Hipólito da Costa
Procurar imparcialidade nessa contenda é advogar a falsa ética de hoje, do falso bem, do mercado dos bons sentimentos. Caricaturalmente apontado como um lugar onde a ética nunca foi artigo de primeira linha — o país do "jeitinho" e da malandragem, onde impera a "lei de Gerson" —, o Brasil tem presenciado, nos dias atuais, uma espécie de fortalecimento da falsa ética. A ética é um dos maiores valores sociais. E por isso merece ser preservada. Mas a ética sofrida, conquistada em meio à coragem de assumir totalmente o que é humano.
Há quem diga que movimentos como esse do 7 de setembro – a exemplo do “Cansei”, que tentou se levantar contra o governo do ex–presidente Luis Inácio Lula da Silva -, apesar da justeza de suas bandeiras, em geral chegam à fase da dispersão sem terem passado direito pela fase da concentração. O problema deles é a sua principal base de sustenção – a mídia e demais forças políticas conservadoras.
A direita ainda pensa como Hipólito da Costa, que em 1808 fundou o primeiro jornal brasileiro, o Correio Braziliense — mesmo ano da criação da imprensa no Brasil —, que dizia: “Ninguém deseja mais do que nós (a elite) as reformas úteis, mas ninguém se aborrece mais do que nós que essas reformas sejam feitas pelo povo.” Ou como o principal líder civil da “revolução constitucionalista” de 1932, o então dono do jornal O Estado S. Paulo, Júlio de Mesquita Filho, para quem “o império da lei e da justiça” só poderia ser restabelecido no dia em que São Paulo voltasse “à sua condição de líder insubstituível da nação''.
Fina ironia do escritor George Bernard Shaw
Mesquita Filho, evidentemente, estava falando de um setor de São Paulo: a elite, representada pelo Partido Democrático. Fora desse mundo microscópio, para ele tudo o mais era irrelevante e atrasado. ''Anulada a autonomia de São Paulo (por meio da revolução liderada por Getúlio Vargas, em 1930), o Brasil se transformou num vasto deserto de homens e de idéias'', disse Mesquita Filho da sacada da redação do seu jornal durante um ato contra a revolução de 1930.
Mesquita Filho estava, na verdade, estimulando o sentimento de que a elite é melhor do que os demais brasileiros. Ele liderava um pensamento contrário ao dos que tomaram resolutamente o partido do povo e pagaram um alto preço pela opção que fizeram – como Frei Caneca, que terminou seus dias à frente de um pelotão de fuzilamento; de Tiradentes, enforcado por defender a independência do Brasil; e de Cipriano Barata, que passou doze anos no cárcere pelo “crime” de criticar os desmandos daqueles que controlavam o Estado.
A lei e a ordem, para essa elite, são os seus preconceitos antidemocráticos sustentados pela ideologia dominante. ''Na lei, os burgueses precisam dar-se uma expressão universal precisamente enquanto dominam como classe'', escreveu Karl Marx. A lei universal dos conservadores brasileiros trata o povo como os racistas do Sul dos Estados Unidos tratavam os negros — segundo a fina ironia do escritor George Bernard Shaw. Primeiro, reduziam os negros, no mercado de trabalho, à condição de engraxates; depois, concluíam que “negro só serve mesmo para engraxar sapatos”.
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Editor do Grabois.org.br