O problema é que essa demonstração de força não necessariamente traz boas notícias para os EUA e muito menos para outros países, que vem sendo obrigados a arcar com os custos cada vez maiores impostos pelo confuso, para não dizer errático, processo de ajustamento que a economia americana vem percorrendo.

Na virada desse segundo semestre de 2011, diversos analistas brasileiros ainda vinham reproduzindo mecanicamente o diagnóstico dominante na mídia internacional de que o epicentro de um possível segundo mergulho da economia mundial estaria na União Europeia, em consequencia do imbróglio fiscal que lá se armou. Para esses, os EUA enfrentavam um cenário que, mesmo longe de benigno, não se mostrava suficientemente sombrio para suscitar maiores preocupações. O problema com esse tipo de diagnóstico não é exatamente a sua pertinência mas o fato dele estar a anos luz do cerne da questão. O mergulho da economia mundial que poderá vir a ocorrer não é simplesmente mais um desdobramento da crise financeira que irrompeu em 2008: é a verdadeira crise mostrando a sua cara, após o estouro de uma onda secundária que estava mascarando os impactos recessivos das profundas transformações já ocorridas na economia mundial. Dados da Unido sobre a participação dos diversos países na geração do valor adicionado industrial ajudam a perceber essas tensões: em 2000, os EUA respondiam por 26,6% e a China por 6,6% do total do valor adicionado gerado pela indústria mundial. Em 2009, os números modificaram-se para 18,9% e 15,6%, respectivamente. Os dois países em conjunto praticamente mantiveram a participação (de 33,2% para 34,5%), evidenciando a extensão com que se deu a transferência de atividade industrial dos EUA para a China. Esse processo evidentemente não tem volta e aí reside a principal das dificuldades com que a economia americana precisa lidar no presente.

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Os EUA estão às voltas com um processo de deflação de ativos como o que levou o Japão a anos de estagnação

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Esses analistas agora se mostram surpresos com a tendência estagnacionista revelada pela economia americana. A despeito do trilhão e pico de dólares já injetados pelo FED (banco central americano) em sucessivas rodadas da política de afrouxamento monetário (quantitative easing), o fato é que a armadilha da liquidez, tão enfaticamente prevista pelos economistas keynesianos, prevaleceu: os EUA estão às voltas com um processo de deflação de ativos semelhante ao que condenou o Japão a uma década ou mais de estagnação. Os bancos não repassam a liquidez para os agentes econômicos simplesmente porque não há investimentos a realizar. O mercado imobiliário não se recuperou nem dá sinais de que irá fazê-lo tão cedo enquanto o mini-ciclo que havia se instituído no mercado de bens duráveis de consumo (veículos, gadgets eletrônicos) já deu sinais de esgotamento.

Já os investimentos produtivos não saem do papel porque a economia mostra-se pouco capaz de conferir rentabilidade e segurança a essas inversões. As fichas agora estão depositadas no pacote de estímulos fiscais para a geração do emprego, de quase US$ 500 bilhões, apresentado pelo presidente Obama ao Congresso na quinta feira passada.

Para o Brasil, a mais importante consequência desse torneio entre União Europeia e Estados Unidos para se ver quem vai ficar em maior recessão e por mais tempo é a certeza de que o país vai depender mais do que nunca da qualidade da sua política econômica para navegar nos turbulentos anos que vem pela frente.

No caso do controle da inflação, dentro do arsenal de medidas disponíveis, a taxa de juros é sabidamente um instrumento vocacionado para atuar sobre a demanda agregada, quer dizer, tende a ter eficácia quando os índices estão sendo puxados pelos preços de bens e serviços de consumo que se mostrem elásticos em relação à renda ou pelos preços de bens e serviços intermediários cujo ritmo de produção esteja próximo do limite dado pela capacidade instalada existente. Uma inflação de alimentos, que é hoje a principal origem da alta de preços no Brasil, dificilmente pode ser combatida adequadamente pela elevação da taxa de juros. Idem para os preços de insumos que são commodities cotadas em mercados internacionais, outro grupo de produtos que vem contribuindo fortemente para o recente repique inflacionário.

Talvez antes de perguntar se o Banco Central errou ao reduzir os juros em 0,5 ponto percentual na última reunião do Copom, caberia questionar se o erro não foi o de elevar esses juros em 0,25 na reunião de julho. A boa política macroeconômica está assentada na arte de conjugar nível e variação dos parâmetros de controle da economia. É evidente que um olhar exclusivamente focado no comportamento da inflação faz parecer ilógico não aumentar ou, que dirá, diminuir a taxa de juros. Mas quando se abre os olhos e se enxerga mais amplamente o conjunto da economia, brasileira e mundial, parece igualmente ilógico manter o nível da taxa de juros nos valores estratosféricas de 12% atuais.

O maior problema com que a economia brasileira se defronta nesse momento é a rigidez da taxa de investimento. Na medida em que não se consiga retomar o dinamismo pré-crise (de 2008) essa sim poderá contribuir no futuro próximo para tornar crônicas as tensões inflacionárias que hoje ainda podem ser consideradas pontuais ou episódicas. As autoridades econômicas não podem desconsiderar esse dado da realidade.

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David Kupfer é professor do Instituto de Economia da UFRJ e coordenador do Grupo de Indústria e Competitividade (GIC-IE/UFRJ.

Fonte: Valor Econômico