Uma das muitas piadas que circularam nas democracias populares e nos países socialistas que emergiram após a Segunda Guerra Mundial surgiu do filme tcheco “O Acusado”. Alguém pregunta: Quais são as duas primeiras fases do socialismo? Alguém responde: Primeiro, as dificuldades do desenvolvimento; segundo, o desenvolvimento das dificuldades. O contexto era a idéia de que o desenvolvimento cria problemas que só mais desenvolvimento pode resolver. No Brasil, essa máxima é ainda mais perceptível porque alguns dos problemas criados (ou não resolvidos) pelo desenvolvimento se agravaram e certas lideranças progressistas passaram a descrer, talvez até inconscientemente, da idéia de desenvolvimento.

Como descreve Franz Kafka na obra “A Grande Muralha da China”, uma brilhante alegoria sobre a construção daquele monumento arquitetônico que teria sido erguido pedaço a pedaço em pontos distantes um do outro, no Brasil o desenvolvimento exige sempre a volta ao particular e ao curto prazo para reencontrar o sentido do fazer coletivo e estratégico. Sem um grande projeto imaginário, no entanto, qualquer idéia de desenvolvimento facilmente se transforma em jogo de cabra-cega (um desconjuntado enfrentamento de interesses corporativos, de partidos ou de facções) ou se desfaz em debates que mais parecem rituais preparatórios para algum combate.

Longo período de políticas realistas

Não concluiremos a muralha de que necessitamos contra o subdesenvolvimento se não enfrentarmos um longo período de políticas econômicas e sociais realistas. Sem destravarmos em definitivo o desenvolvimento do país, podemos discutir e nos acusar uns aos outros à vontade — mas não iremos a lugar nenhum. É um problema que passa pelos processos eleitorais, em todos os âmbitos — no atual sistema eleitoral brasileiro, as eleições muncipais balisam as definições para a formação de alianças no plano federal. Para enfrentá-lo, precisamos considerar outros elementos da disputa política além do processo eleitoral — fundamentalmente o debate teórico.

Fora da idéia de um um projeto nacional de dedesenvolvimento, o que se apresenta é o ideário liberal. Dado o retumbante fracasso neoliberal da “era FHC”, esse ideário se mostra mitigado. Resgatar a sua originalidade é uma tarefa fundamental para desmarcará-lo e combatê-lo. É o que faz o professor Luiz Gonzaga Belluzzo em artigo recente (veja aqui: Ecos da era Reagan no Brasil de Dilma). Segundo ele, as conjeturas de grandes economistas brasileiros reunidos em tertúlia no “Instituto FHC” lembraram a inovação teórica do conservadorismo dos anos 70 nos Estados Unidos.

Belluzzo diz que cinco dos mais respeitados doutores da “Ciência Triste” desfiaram diagnósticos e recomendações de política econômica. Lançaram maldições e condenações aos caminhos e descaminhos da economia brasileira no período recente. “Entre as propostas ilustradas figuravam a redução de impostos para estimular a poupança privada e uma reforma constitucional para afastar as ilusões inscritas na Constituição de 1988. Na avaliação desses economistas, a Constituição brasileira consagrou direitos econômicos e sociais ‘europeus’”, escreve Belluzzo.

Grandes rupturas registradas pela história

São propostas suplantadas pelo tempo. No Brasil, o império da propriedade privada e da "economia de mercado" é associado a ineficiências e fracassos, principal oponente político da idéia de progresso social. É muito difícil para o ser humano aceitar os pressupostos do liberalismo, pois eles não só dizem que estamos sozinhos mas também que temos de ser egoístas. Para eles, não existe a possibilidade de os seres humanos conviver harmoniosamente, ajudando-se uns aos outros. Não é assim que funciona a natureza humana. Provam isso as grandes rupturas registradas pela história mundial.

A “era revolucionária” caracteriza-se como um longo período histórico em que as revoluções são um dos eixos centrais do universo social e político. Para seus inimigos, elas correspondem a explosões catastróficas que arrasam tronos instituídos por direito divino ou interrompem o curso natural da vida em sociedade, cujas mudanças devem se processar lentamente. Já seus irredutíveis defensores sustentam que as revoluções são o instrumento por excelência no caminho da derrubada da dominação de uma ordem social caduca. Estariam associadas ao progresso e ao bem-estar dos povos.

O ponto de partida da "era das revoluções" situa-se na Revolução Americana (1775-1783) e, um pouco mais tarde, a partir de 1789, na Revolução Francesa, nas revoluções de 1848 e na Comuna de Paris — dentre as mais significativas. O século XX, como vários autores têm assinalado, não começa na virada cronológica do ano 1900, mas com a eclosão da Primeira Guerra Mundial e a Revolução Russa. Na esteira vieram tantos outros processos revolucionários.

A perspectiva progressista conquista espaços

Não existem elementos consistentes para afirmarmos que a “era revolucionária” tenha chegado ao fim. A menos que concordemos com a tese segundo a qual o desenrolar dos acontecimentos no mundo acabou revelando que os revolucionários que deram certo não foram Karl Marx, Vladimir Lênin e Mao Tse Tung, mas Milton Friedman, Ronald Reagan e Margaret Thatcher. Essa assertiva só é aceitável para quem desconhece a máxima de Joseph Goebbels, o homem da propaganda de Adolf Hitler, para quem uma mentira se transforma em verdade à força de repetição.

Essa discussão histórica ainda permeia a luta política no Brasil. Felizmente, não passamos pelas conversões em massa de socialistas ao liberalismo, como ocorreu na Europa — algo que reproduziu em cada país o drama bíblico da conversão de Saulo na estrada de Damasco. Debaixo dos gritos dos conservadores, as forças progressistas vão saindo de um longo período de defensiva. Esse fenômeno só é possível porque os fatores políticos e sociais se somaram aos dados da ordem econômica vigente.

Os esforços para entender essa nova realidade avançam para um sentido estratégico. As forças desenvolvimentistas estão reconquistando e desenvolvendo, pela luta, os fundamentos do seu programa. A perspectiva progressista conquista espaços práticos e teóricos, mas só um desenvolvimento real das lutas sociais dará forma política a essa nova realidade. Esse é o desafio que deve ser enfrentado, tendo como alvo o sentido das batalhas políticas que mal começaram com a “era da mudanças” iniciada na eleição de Luis Inácio Lula da Silva em 2002 e agora sob a batuta da presidenta Dilma Rousseff.

Produzir dá trabalho e inclui algum risco

A direita já está em plena campanha eleitoral. Basta ver a reação à recente decisão do Conselho de Política Monetária (Copom) do Banco Central (BC) de reduzir a txa de juros Selic em 0,5%. Por trás do debate aparentemente técnico, em que "especialistas" são chamados a contribuir com suas "análises objetivas", há um cenário político explícito. A prova incontestável disso é que a mídia e seus produtos supostamente informativos — editoriais, programas de entrevistas, análises de articulistas, notícias e pesquisas de opinião — capricham nos diagnósticos apocalípticos caso suas receitas não sejam seguidas.

A elite teme que a era de ganhar dinheiro de braços cruzados pode estar chegando ao fim. Produzir dá trabalho, inclui algum risco e não traz o mesmo retorno de girar o capital pelo mercado financeiro. Essa é a explicação para o comportamento dos megacartéis de "opinião pública" que deitam falação em nome da "sociedade" sem ter recebido nenhuma procuração para representá-la. Eles se lançaram em uma busca desenfreada e desqualificada de notícias, palpites, fofocas, pseudofatos, pontos de vista e pontos sem vista para despejá-los nas campanhas eleitorais de 2012 e 2014.

Como disse o ex-presidentes Lula quando o Brasil anunciou o fim do acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI), o país agora pode dizer que "tem governo" e é "dono de seu próprio nariz". Isso quer dizer que o país não pode retornar à completa dominação dos gestores de imensas massas de capital capazes de mover-se, com velocidade eletrônica, de uma ponta a outra do planeta com o objetivo de ganhar dinheiro tomando empréstimos na moeda X para trocá-la pela moeda Y e pôr no bolso a diferença propiciada pela descomunal diferença das taxas de juros.

Lopes Campos se isolaram no governo JK

O Brasil já havia passado por essa experiência quando o governo do presidente Juscelino Kubitschek (JK) tentou executar o "programa de estabilização" elaborado pelo seu ministro da Fazenda, Lucas Lopes, e pelo diretor do Banco de Desenvolvimento Econômico (BNDE, hoje BNDES), Roberto Campos (este último um célebre economista de direita que marcaria época no regime da ditadura de 1964). Havia uma contradição evidente: como conciliar altos investimentos com arrocho fiscal?

Argentina e Chile experimentavam o tratamento de choque do FMI e os resultados faziam com que o plano de Lopes e Campos enfrentasse forte resistência no Brasil. Mas a pressão externa era grande e JK acabou cedendo, o que resultou no inevitável conflito entre o "Programa de Metas" e a "estabilização". Lopes e Campos se isolaram no governo. A controvérsia acabou com as ordens do presidente da República para que as negociações com o FMI fossem rompidas.

Assim como dizem hoje os conservadores, Lopes e Campos pediam a JK paciência porque a economia estava prestes a gozar dos frutos da "estabilização". Mas o presidente não quis saber de conversa. Em discurso no Clube Militar, palco de intenso debate sobre as duas orientações que existiam no governo, o então presidente da República disse: "O Brasil já se tornou adulto. Não somos mais os parentes pobres, relegados à cozinha e proibidos de entrar na sala de visitas. Só pedimos a colaboração de outras nações. Através de maiores sacrifícios poderemos obter a independência política e, principalmente, a econômica, sem ajuda de outros."

Valorização do trabalho aguça luta de classes

Hoje, não há dúvida de que a festa da poilítica monetária da “era FHC” acabou. (Na verdade, ninguém, salvo os supeitos conservadores de sempre, jamais disse que havia uma festa.) No entanto, com mais pontos de exclamação do que argumentos, e principalmente do que fatos, os defensores da política macroeconômica neoliberal continuam martelando a mesma tecla. O que fez nosso país ser um time que jogou na terceira divisão durante os anos 1990 é a soma de tudo isso aí que os conservadores defendem mais uma porção de outras coisas do mesmo tipo.

A outra face da moeda, no entanto, apresenta uma idéia que precisa ser desenvolvida e traduzida para o jogo eleitoral. O desenvolvimento só faz sentido se ele contemplar o conceito de renda nacional, uma espécie de síntese de toda a atividade econômica do país. Sendo assim, a forma como ela é distribuída constitui necessariamente o objetivo fundamental de uma política de desenvolvimento econômico e social. Surge, portanto, a indagação de como lidar com a renda nas dimensões e características necessárias.

Em primeiro lugar, é preciso constatar que esse é um problema político. Medidas que valorizem o trabalho conduzirão, inevitavelmente, ao aguçamento da luta de classes — o que, do ponto de vista social, é um enorme progresso. E isso explica por que para a ideologia conservadora essa possibilidade precisa ser aniquilada no nascedouro. Mas, independente da vontade de uns e outros, o avanço econômico sempre vem acompanhado do crescimento quantitativo e da capacidade de mobilização dos trabalhadores.

O mercado doméstico como ponto central

O mercado interno ganha em extensão e elasticidade. E a vida política do país ganha dinâmica. Até a indústria brasileira, interessada em libertar a vasta área de consumo que padece com a falta de renda, tem manifestado interesse em constituir com os trabalhadores um novo estágio comum — com força suficiente para vencer a especulação financeira e reforçar a tese da expansão do mercado interno. Para a estratégia emancipacionista dos trabalhadores, essa tática talvez seja atualmente a mais adequada.

A relação entre setores sociais dominantes e os trabalhadores, uma das questões mais debatidas no Brasil ao longo do século XX, é ainda hoje determinante para o desenvolvimento do país. O problema nacional, amplamente abordado pelos estudiosos da história do Brasil, tem como ponto central o mercado doméstico — atualmente um assunto que unifica amplas forças políticas. E isso tem a ver com as relações de classes.

Em grande medida, nosso atraso econômico e social se deve ao fato de a maioria dos governos da República ter excluído os trabalhadores de seus projetos. Mesmo no período em que o país deu um passo importante para o seu desenvolvimento, depois da revolução de 1930, o governo tentou realizar a "revolução burguesa sem o proletariado" — segundo Nelson Werneck Sodré.

Régua dos interesses do capital financeiro

Este problema que perdura é resultado da nossa estrutura social herdada de formações econômicas e políticas do passado. Apesar de os ideais da Revolução Francesa e da Independência Americana ter estimulado movimentos como os inconfidentes de Minas Gerais e da Bahia, ainda hoje pode-se dizer que eles não se realizaram plenamente em nossa pátria.

É do arcabouço filosófico dos ideais republicanos que advêm idéias como democracia, direitos individuais, liberdade de expressão. Ele gerou, entre outras coisas, a revolução industrial, os sistemas políticos modernos, o conceito de igualdade entre os cidadãos e o advento de governos contratuais e eleitos. Desde a “era das Luzes” até hoje, essa lógica impulsiona a luta por justiça social e justeza política.

O desenvolvimento natural desse processo levaria a um estágio social superior — o socialismo — e por isso ele sofreu reveses. É evidente que o desenvolvimento do imperialismo deturpou esses ideais. Elas passaram a servir de biombo para imposições arbitrárias — muitas vezes por meio do poderio militar — de poucos países dominantes. Agências imperialistas como o FMI e o Banco Mundial funcionam como freios para o desenvolvimento econômico e social de países pobres. Com uma mão, elas estendem ajuda financeira, e, com a outra, exigem a adequação das instituições nacionais à régua dos interesses econômicos do capital financeiro.

Projeto elitista e excludente

O fato é que o Brasil de hoje está mostrando que um ponto de equilíbrio terá de ser encontrado entre as forças sociais que expressam os interesses nacionais. Precisamos perceber que não teremos um senso maior de grupo, uma percepção mais clara de que fazemos parte de um conjunto para construirmos e mantermos um nível desejável de união nacional sem esforços políticos. O que não quer dizer uma aliança sem contradições. Elas existem e muitas vezes são antagônicas.

É possível dizer com segurança, no entanto, que o Brasil de hoje tem o germe da mudança. Ele é, em essência, a antítese do nosso passado recente. Mas o movimento transformador é, antes de tudo, objetivo e não produto da vontade — e mesmo de uma ação consciente — de quem quer que seja. Ele só evolui quando fundamentado em relações econômicas e sociais bem determinadas. O problema das forças que lutam por mudanças, portanto, é o de unificar suas atividades e elaborar projetos que respondam minimamente aos desafios dos novos tempos. 

Esse amadurecimento do quadro político brasileiro também é promissor porque, ao que tudo indica, acentuará cada vez mais a disparidade de propostas disputando a hegemonia do país, formando leques de opções com pólos antagônicos que atraem para as suas órbitas todos os partidos importantes. E parece inaugurar no país uma era em que é possível enfrentar com mais força a direita e seu histórico projeto elitista e excludente. Como lembrou Nelson Werneck Sodré em sua obra "História militar do Brasil", só é nacional o que é popular.

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Editor do Grabois.org.br