Depois de Juscelino Kubitschek ("Os Anos JK", 1980) e João Goulart ("Jango", 1984), Tancredo Neves é o terceiro presidente brasileiro retratado por Silvio Tendler. O trajeto aqui é o que importa, como adianta o subtítulo de "Tancredo, a Travessia", "que participou da competição brasileira do "É Tudo Verdade" deste ano e teve sua estreia nacional, originalmente prevista para este fim de semana, transferida para 28 de outubro.

Aquele mandato tragicamente jamais exercido, em razão da internação sem volta de Tancredo às vésperas da posse em março de 1985, ecoa por todos os cerca de cem minutos de filme. Não surpreende, assim, que ele comece e termine com o calvário de 38 dias do homem escolhido para concretizar institucionalmente o fecho da ditadura militar de 1964.

"Os Anos JK" e "Jango" cumpriram papel marcante na cultura cinematográfica da abertura democrática, exatamente o processo que ganha resumo e conclusão neste novo documentário. Ambos recuperaram para a geração nascida no período militar a imagem de duas das lideranças mais estigmatizadas pelo regime autoritário. "JK" foi visto por 800 mil espectadores e "Jango" por 1 milhão, números hoje inimagináveis para documentários brasileiros que ainda estão entre os recordes de produções nacionais do gênero.

Talvez tenha sido em busca de um maior distanciamento diante de um processo histórico do qual fez parte que Tendler tenha esperado um quarto de século para encarar o perfil fílmico de Tancredo. Nesse período, a personagem do político mineiro, figura central na República de 1945 assim como na oposição à ditadura, pautou outros documentários.

Dois deles foram lançados ainda no período de luto imediato pela perda precoce. "Muda Brasil" (1985), de Oswaldo Caldeira, radiografa a delicada campanha presidencial de Tancredo, em gabinetes e nas ruas, visando viabilizar e legitimar sua eleição indireta em janeiro de 1985. Por sua vez, "Céu Aberto" de João Batista de Andrade, do mesmo ano, é o filme definitivo sobre a romaria popular que acompanhou a agonia pública.

Em 2005, celebrando a efeméride de duas décadas do adeus, o jornalista Fernando Barbosa Lima lançou o vídeo "Tancredo Neves – Mensageiro da Liberdade", primeiro balanço biográfico de maior fôlego. Vários entrevistados se repetem, naturalmente, entre os filmes de Barbosa Lima e Tendler. O que distingue o primeiro é a concentração maior em depoimentos e uma narrativa mais panorâmica da vida de Tancredo.

Mais centrado na trajetória política de Tancredo no pós-1964, "A Travessia" se equilibra entre a aridez de "Os Anos JK" e a dramaticidade de "Jango". Uma narração didática, dividida entre Beth Goulart, Christiane Torloni e José Wilker, serve de fio condutor, enquanto cartelas delimitam as fases.

Uma fluente edição os articula com cenas e fotos de arquivo, bem garimpados, e com entrevistas reveladoras, sob a condução dos craques José Augusto Ribeiro e Roberto D'Ávila. Apenas uma breve reencenação em torno das horas finais de Getúlio Vargas, que contava com o jovem Tancredo como ministro dileto, rompe esse estilo tradicional.

Como já fizera nos retratos anteriores, Tendler evita a armadilha da narrativa monoliticamente positiva. A "raposa política" lançou um jingle na campanha derrotada ao governo de Minas Gerais em 1960 que alardeava: "Quem é que vai ganhar não é segredo, é Tancredo". Uma troca de favores familiares o salvou da cassação do mandato de deputado federal por Castello Branco, que lhe devia a promoção para general de Exército. Durante os primeiros oito anos do governo militar, ei-lo precavidamente submerso no trabalho cotidiano das comissões da Câmara dos Deputados. Nos bastidores da campanha pelas Diretas Já, o então (e enfim) governador de Minas já articulava a própria candidatura como "plano B" caso a emenda fosse rejeitada e a batalha se transferisse para o autoritário Colégio Eleitoral.

Nem por isso o Tancredo de Tendler deixa de ser mais um de seus heróis trágicos, como antes o foram Juscelino e Jango, e também Castro Alves, Carlos Marighella e Glauber Rocha (retratados em filmes reunidos há pouco na caixa de DVDs "Quatro Baianos", com o geógrafo Milton Santos completando a lista).

Planos de multidões acompanhando os caixões dos três líderes são longamente destacados. Numa costura evidentemente simbólica, uma quarta imagem similar se repete em todos eles: o desfile fúnebre em 1954 daquele que deixou a vida "para entrar na História". "Tancredo" é o ponto final de uma trilogia sobre os herdeiros de Vargas. Parece que chegou a hora de o país enterrar de vez o getulismo.

____________

Amir Labaki é diretor-fundador do É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários.

E-mail: [email protected]

Site do festival: www.etudoverdade.com.br

Fonte: Valor Econômico