Sem sossego
Os assim considerados experts no assunto entregam-se a digressões peregrinas sobre a origem da crise. Os conservadores e os sabichões do mundo da finança apontam o dedo indicador para a irresponsabilidade de governos e de consumidores entupidos de dívidas. Essa turma também não esquece os diferenciais de competitividade entre os países. Mas os diferenciais de competitividade não surgiram da noite para o dia. Estavam presentes no momento de criação da moeda única.
Os acusadores, em suas invectivas, descuidam das aratacas armadas para os periféricos na criação de uma moeda única. A introdução do euro concedeu aos periféricos – hoje submetidos ao mau humor dos mercados – as vantagens da emissão de dívidas na moeda comum. Essa prerrogativa até a eclosão da crise garantiu aos países mais frágeis spreads bastante razoáveis sobre as taxas de juro pagas pelos títulos do governo alemão. Até mesmo minha frágil percepção desconfia dos “esquecimentos” dos mercados financeiros. Não há devedores sem credores. São bastante consistentes e insistentes os sinais de que na era da desregulamentação financeira, a prodigalidade dos devedores-gastadores encontrou assanhada cupidez por parte dos credores-provedores de empréstimos. Em linguagem corrente: os bancos alemães e franceses não perderam tempo e cuidaram de financiar generosamente as famílias gastadoras e os governos “imprudentes”.
Quando ainda estalavam os primeiros ruídos da crise do euro, arrisquei escrever que “no olho da tormenta estão as relações entre o país hegemônico, a Alemanha, e os demais membros da comunidade comercial e monetária”.
Já antes da introdução do euro, era notória a superioridade da indústria manufatureira alemã e de sua capacidade exportadora diante de seus sócios-competidores europeus. Ao longo da primeira década do terceiro milênio, a forte economia alemã ganhou nova musculatura com a adoção da moeda única e seus benefícios. A redução dos custos de transação propiciados pela moeda comum juntou-se, sob a égide das instituições da economia social de mercado, às políticas de competitividade fiscal e salarial para impulsionar uma nova rodada de eficiência. Mas não há de ignorar: na marcha vitoriosa das divisões industriais germânicas, o apetite de seus bancos pela dívida dos consumidores e governos dos PIIGS precipitou bolhas de consumo, déficits crescentes em conta corrente e last but not least agravamento da situação fiscal.
Entre 1996 e 2008, as exportações em volume da Alemanha cresceram a uma velocidade duas vezes maior do que as vendas externas dos parceiros europeus. No mesmo período, o superávit comercial da Alemanha com os “sócios” da Europa passou de 20 bilhões para 100 bilhões de euros por ano. A outra face desse movimento de ganhos expressivos nas transações intraeuropeias é a manutenção, em nível elevado, do emprego na indústria manufatureira, mesmo diante do deslocamento de muitas fábricas para os países do Leste Europeu e da escalada chinesa. A Alemanha sustentou 20% do emprego total na manufatura, enquanto os demais países da Zona do Euro estão abaixo dos 16% e… caindo. Nessas regiões, a perda de partes do mercado para as exportações alemãs levou ao “inchaço” do emprego de baixa produtividade e pouco exigentes no que diz respeito à qualificação da mão de obra. Isso, nos perdedores europeus, tem produzido conflitos entre as aspirações do cidadão “sobre-educado” e as oportunidades de emprego que lhe são oferecidas.
Simpatizo com os que se debruçam sobre as inconveniências da constituição de um espaço monetário comum desarmado das condições políticas que pudessem assegurar não só a unificação do espaço fiscal como a execução de políticas comuns de reequilíbrio industrial. Há um grão de verdade nessas lamentações. Elas dão conta de questões importantes, mas, em geral, ignoram que esses aspectos são apenas formas de manifestação de um processo mais profundo de reprodução de desequilíbrios e assimetrias no interior da Eurolândia. Não é possível a convivência entre um espaço monetário comum e a manutenção da concorrência psicopata entre as regiões.
Fonte: CartaCapital