Bom dia, Vilarana

Na estória geral do rio das almazonas, eis a vila que nem vila era: Vilarana do Curralpanema, flor dos tijucos e aningais. Um não-lugar à margem do próprio limbo metafísico, onde a imaginação gosta de zombar da realidade e reinventar a paisagem esmaecida da memória. Joaquim Ferreira Rodrigues, seu criado, por apelido Quinquinhas; passa do papel almaço e caneta bic que lhe calejou a mão destra para esta sorte de magia moderna chamada internet. Se a coisa quer dizer 'rede', rede é com a gente de Vilarana mesmo. Aqui a gente nasce, faz criança, vive e morre em rede…

Que progresso e tanto na vila que nem vila era! Nunca dantes nas mais avançadas das mais avançadas conversações no bar do Emérito chegou-se a imaginar uma coisa assim. Antão, haja o filho do Agripino e dona Adélia Galizio praticar a tal inglezia, que já apareceu diz-que até nestas paragens fora do mapa real: daqui ele mandará notícias ao resto do mundo e as saberá na hora dos acontecimentos.

Quem diria! A vila que nem vila era foi pra frente. Apesar da caveira de burro enterrada debaixo da igreja de Nossa Senhora do Tempo, apesar da cobragrande Boiúna que mora no sumetume encantado da ilhinha confronte ao Fim do Mundo; apesar de assombração de Curupira e Matinta Perera pra quem anda saqueando as varjas; e, afinal de contas, da velha oligarquia familiar ultra malina do finado Intendente Boaventura Everdosa.

Mas porém, hoje é dia do Berto! Bom a gente parar por aqui e esperar que o dito cujo vá mijar no pé dos açaizeiros e pretejar cacho de açaí nosso de cada dia. Talvez os senhores e as senhoras não saibam que para veneno o açaí só falta um grau… Quem me disse? Compadre Manduquinha (cara de índio "extinto"), exímio conhecedor de vinho de açaí tinto, branco, tirado a tinta e parau… Acho eu que o quase veneno do açaí se deve à mijada do Berto nas touças de açaizeiro no dia 24 de agosto. O Berto é o Diabo, não sabe? Pois, aqui no Curralpanema esta gente tem medo ou respeito ao Berto. Mas, paresque, porque a vida nossa é mui dificultosa em riba da maré, todo mundo aqui tem que trabalhar desde pirralho na apanhação de açaí. Antão, depois de Deus ajudar todo mundo a toda hora; até o Capeta é obrigado a prestar algum serviço a esta pobre gente…

Perguntei certa vez ao padre Eurico por que antão havera de ter este tal dia do Berto. Ele me olhou, zolhudo, com seus grandes bagos de olhos azuis azuis… E falou diz-que " eu non saberr superrtição de kaboco"… Puta merda! Se o padre alemão não sabe disto, quem mais em Vilarana havera de saber? Foi quando, por acaso ou mandado pelo Cão, o doutor Virgílio proseando no bar do Emérito disse o seguinte:

Lá na França, há muito tempo paresque, deu-se a desconforme noite de São Bartolomeu, em 24 de agosto de milquinhentos e tantos; matança doida de crentes por católicos do tempo do ronca. Depois da desgraça feita os bons católicos consumiram-se em baitas penitências e botaram a culpa no Diabo… O Liduíno do Boi, que já tinha consumido umas e outras doses de mata bicho, caiu na risada e matou a charada dizendo ele: "Ah, parente; é por isto paresque que inventaram a estória do Berto nestas bandas.." Aí o Emérito emendou, "ai ai! antão, foram os padres de antigamente que trouxeram o Berto Bartolomeu pra estas paragens".

Deu-se um silêncio daqueles. Emérito estava recentemente convertido ao Protestantismo. Quinquinhas sentiu cheiro de pólvora fedendo no ar (lembrou-se da vez em que a casa do fogueteiro Lucindo explodiu e foram encontrar o corpo do pobre pulverizado pelas árvores do quintal até o açaizal no igarapé adentro)… Meu Deus, era dia do Berto! Imagina o perigo de explosão de ânimos aqui em Vilarana, podia dar em grossa confusão se um católico velho ressentido com a flechada do crente novato avezasse de brigar por causa da santa religião apostólica romana. Mas porém, por se tratar justo do dia que era e já estar na hora da bóia; a gente, escaldada de tontas encrencas do lugar, achou melhor se levantar do bar e ir embora. O relógio da igreja bateu meio dia em ponto, saracura no mato cantou na quebrada da maré, Emérito fechou a baiúca e cuidou também de ir almoçar. Vilarana toda forrou as tripas com peixe frito e pirão de açaí colhido de véspera e foi dormir a sesta. As três ruas ardiam debaixo do sol a pino que nem febrão de malária. Cruz credo… Diabo é quem trabalha num dia assim.

  José Varella, Belém-PA (1937), autor dos ensaios "Novíssima Viagem Filosófica", "Amazônia Latina e a terra sem mal" e "Breve história da amazônia marajoara".

autor dos ensaios "Novíssima Viagem Filosófica" e "Amazônia latina e a terra sem mal", blog http://gentemarajoara.blogspot.com