Eles têm o direito de saber
Maria se esforça, mas não se lembra. Nadadora alemã, ela faz uma conexão na capital argentina durante uma viagem rumo a Santiago, no Chile, quando perde o voo e se vê obrigada a estender sua passagem pela cidade. Ainda no aeroporto, ela ouve uma mulher ao seu lado ninar o filho com uma canção em espanhol. Pode parecer um detalhe. Mas o som do que acontece ao lado só é captado após retirar os fones do iPod dos ouvidos. Quase no mesmo instante, a música transporta Maria a algum canto da primeira infância que a leva a uma crise de choro que, a princípio, não entende – como era possível saber de cor a letra de uma música numa linguagem que ela não domina?
Essa é apenas uma das perguntas que a leva a permanecer na cidade até começar a desvendar o mistério: Maria, na verdade, não é alemã, mas uma argentina cujos pais desapareceram durante a mais sangrenta ditadura da história do País.
A partir de então, uma série de questionamentos passa a ser levantada: quem são seus verdadeiros pais? Como viviam? Quem é sua verdadeira família? Como foi parar na Alemanha? Como os pais adotivos entraram na história?
A passagem por Buenos Aires, que mudaria pra sempre sua vida (ou a antiga projeção de vida) a leva a conhecer a família dos verdadeiros pais, e parte de uma infância que desconhece. Numa casa simples de subúrbio, caixas com pertences, áudios e fotos são guardadas em memória de uma sobrinha que desaparecera nos anos 1970, na mesma época em que os pais foram sequestrados, e de quem nunca mais se teve notícias. Os tios que sobreviveram à ditadura contam a ela detalhes sobre sua vida anterior: os brinquedos, músicas e lugares favoritos. A cada episódio, Maria é perguntada: “Lembra-se?”.
Mas ela não se lembra. Não se lembra porque uma parte de seu passado foi simplesmente decapitada. E o passado que pensava possuir já não lhe pertence – pior: as pessoas em quem confiou a proteção, e com quem conviveu durante toda a vida, não são nem sombra do que imaginou que fossem um dia. Numa das mais comoventes cenas, ela ouve a fita de uma música feita pelos pais no dia de seu aniversário. É quando reconhece sua voz ao fundo, cantando com os pais que foram arrancados dela e deletados de sua memória.
Ao partir de um drama pessoal, Cossen realiza uma mostra de como discussões históricas recentes, encaminhadas a duras penas no país vizinho (e recém-inauguradas no Brasil), não se limitam apenas a questões como “revanchismo” ou “legalidade” – expressões que fazem o leitor comum, que não lutou nem conhece quem tenha lutado, de alguma forma, durante o regime militar, a mudar de página toda vez que lê algo em referência à chamada comissão da verdade, o grupo responsável por investigar as atrocidades ocorridas no Brasil ao longo da ditadura.
Duas cenas do filme mostram o quanto a ignorância sobre o próprio passado de um país impede famílias estraçalhadas por tragédias políticas a entender os enredos das próprias origens e destinos. Numa dessas cenas, Maria se depara com a reação do pai adotivo, que viaja às pressas à Argentina para tentar demovê-la da ideia de se reencontrar com a verdade que ele ajudou a corromper. O pai, símbolo do suporte civil da tragédia militar, argumenta que não faria diferença, para ela e a família dos verdadeiros pais, conhecerem, tantos anos depois, as origens dos fatos. No que ela responde: “Eles têm o direito de saber.”
Em outra cena, Maria convida um policial portenho, com quem faz amizade, para ajudá-la no diálogo com a verdadeira família – já que ele é o único personagem do enredo que fala alemão. O policial, sem disfarçar a vergonha, diz que não seria bem recebido por uma família de sobreviventes da ditadura em razão de suas ligações com os militares. Ele aceita a missão, desde que não tenha a identidade revelada. Mas seu principal medo era que os familiares (“essa gente”, na descrição dele) descobrissem que era filho de um militar que havia atuado durante o regime. Maria, então, pergunta se o pai do amigo também havia torturado e matado, e ele responde que não tem a menor ideia. “Não quero saber de coisas que me levem a odiar meu pai”, justifica ele.
Nada poderia ser mais emblemático sobre o receio de se abrir a caixa de Pandora que nos regimes militares latinos, patrocinados pelos governos americanos, deixaram como saldo milhares de mortos, e milhares de famílias sem notícias de seus filhos, netos, sobrinhos, pais, amigos e irmãos.
Não por acaso, o filme passa reto dos principais cartões postais da capital argentina: a elegância da Recoleta, o luxo do Puerto Madero, o charme do Caminito. A câmera, o tempo todo, fixa-se no interior de casas e estabelecimentos (como o hotel que a abriga) de paredes sujas e descascadas, ou no caos das ruas que a cerca – como se o diretor estivesse mais interessado no intestino, e não em discursos oficiais envernizados sobre a história de um período sombrio desenterrado.
“Mas no Brasil vivemos uma ditadura moderada. Na Argentina e no Chile mataram aos milhares, e aqui, às centenas”, argumentam, num notável exercício de preguiça mental, os que se opõe à revelação dos fatos.
“O Dia Em Que Eu Não Nasci” é uma resposta dada em boa hora, num momento em que, no Brasil, há dúvidas pertinentes sobre a capacidade de a Comissão da Verdade trazer a verdade à tona. O longa faz lembrar que crime é sempre crime – seja cometido às milhares ou às centenas – e que, sem prejuízo dos números, não há documento (nem filme) que mensure a dimensão da dor de não saber de onde viemos nem para onde vamos. E olha que, nesse quesito, os argentinos estão a anos luz da disposição brasileira de arrebentar, de forma definitivamente, os seus próprios porões.
Fonte: Site CartaCapital