O menino do picolé
O menino do picolé
“… Essa noite tive um sonho que chupava picolé
Acordei de madrugada, chupando dedo do pé …”
Cantiga de roda antiga; de domínio público
E o roda do carro girava fazendo aquele barulhinho da areia deixada pela última chuva sobre o asfalto da Marginal Pinheiros.
-chiiippttxxxchiiippttxxxxchiiippttxxxx!!!!!!!!!!!!!!!!!
Gotas de uma chuva fina tocavam o parabrisa, o rádio tocava uma canção qualquer da música chamada de “nova música sertaneja”. A vontade era desligar o rádio, mas eu precisava de uma companhia no carro; função desempenhada pelo rádio “ching ling”. Mecanicamente comprimi o dial do rádio com os dedos frios da mão direita, enquanto que a mão esquerda girava a direção no sentido do bairro Pedreira e Cidade Dutra.
O menino estava no ponto de ônibus o, diante do que, até outro dia era uma das portarias da Siderúrgica Villares. Fiz, num átimo, a resenha de minha vida: eu era pouco maior que aquele menino quando cheguei a São Paulo, aos treze anos de idade. Vim para trabalhar. Passados cinqüenta anos, ainda tenho que trabalhar.. .
O menino chupava um picolé, talvez fosse de uva, pois pude ver sua boca arroxeada pelo corante do sorvete. Lembrei-me do verso da cantiga de roda. Meu carro, não havia percebido; estava trafegando por volta de cinco quilômetros por hora! Só então ouvi as buzinas dos carros que se postavam atrás do meu: eu estava atrapalhando o trânsito com o meu devaneio infantil. Engatei a terceira marcha, liguei a seta da direita e, enquanto meu carro ganhava velocidade eu ainda via o menino chupando picolé de uva no ponto de ônibus.
Todos os carros que estavam represados pelo meu me ultrapassaram e cada um, a seu modo, disse um apalavra ou duas dirigidas a minha pessoa. Eu, absorto ao acordar de um sonho, liguei o limpador do parabrisa, olhei o menino pelo retrovisor, agora ao invés do menino, via a mim mesmo, de calça de suspensório e camisa branca, indo para Escola Municipal da Fazenda Estrela D´Oeste, para a aula da professora Olga Dias da Cruz, de São Simão(SP). O menino caipira e o menino do ponto de ônibus fundiram suas imagens. Estava friozinho em São Paulo, coisa de quinze graus Celsius?
Um jato d´água esguichou no parabrisa, outro desceu pela minha face; afinal, eu senti saudade de quando era criança!
E cantarolei, numa melodia criada por mim, naquele mesmo instante:
“Essa noite tive um sonho que chupava picolé
Acordei de madrugada, chupando dedo do pé”
– Adeus menino do picolé; adeus menino caipira!
– Nos encontraremos qualquer dia destes!
Antônio Carlos Affonso dos Santos – ACAS. É natural de Cravinhos-SP. É Físico, poeta e contista. Tem textos publicados em 7 livros, sendo 4 “solos e entre eles, o Pequeno Dicionário de Caipirês e o livro infantil “A Sementinha” além de três outros publicados em antologias junto a outros escritores.