Comunismo: questão de cérebro, estômago e coração
“A influência do comunismo na política e na cultura brasileira é um tema de grande importância para a História do Brasil, não apenas para a História da esquerda no Brasil”. Foi assim que o professor Modesto Lorenzano, vice-diretor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, inaugurou o colóquio “Comunistas brasileiros: cultura política e produção cultural”.
As discussões em torno dos elementos constituintes da cultura comunista — e de seu aparato institucional mais visível, o Partido Comunista do Brasil (PCB) — reuniu 18 pesquisadores na Cidade Universitária, em São Paulo, entre os dias 5 e 7 de outubro. Ao todo, foram seis mesas de debate, que se debruçaram sobre os valores e ideias comunistas, que, desde o começo do século XX até os estertores da ditadura militar, transbordaram os espaços tradicionais da esquerda e forneceram temas e argumentos tanto para quem fazia cultura — por exemplo, dramaturgos, escritores, artistas plásticos e músicos — como para quem definia e executava as políticas culturais no país.
Antes de entrar nas discussões sobre a produção cultural do comunismo brasileiro, porém, o colóquio dedicou-se a debater a cultura comunista — ou o comunismo como cultura política. Segundo o pesquisador Rodrigo Patto Sá Motta, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), “cultura política” é o conjunto de valores compartilhados por um mesmo grupo, sejam conjuntos nacionais — brasileiros, mexicanos, japoneses — ou projetos políticos específicos, como o do comunistas.
“O conceito de cultura política nos oferece uma chave interpretativa capaz de explicar melhor as razões da longevidade do comunismo e o fato de sua influência ter transcendido limites partidários”, explica Rodrigo Patto. “A adesão das pessoas ao comunismo no Brasil não foi apenas uma questão de classe social ou doutrinamento ideológico.”
Os brasileiros que um dia tornaram-se comunistas o fizeram, segundo o pesquisador, porque foram conquistados ou pelo cérebro ou pelo estômago ou pelo coração. Enquanto o cérebro aponta para uma afiliação ideológica e racional aos valores comunistas, surgida da leitura das obras de Karl Marx e da sintonia com a linha do Partido, o estômago metaforiza a condição de classe do campesino ou do proletário que via nas ideias comunistas o caminho mais eficaz para galgar a igualdade de direitos. Já o coração, diz Rodrigo Patto, é imagem que melhor exemplifica a ligação cultural. “Muita gente se converteu ao comunismo por identificar-se com as imagens de Luiz Carlos Prestes, Josef Stalin ou da União Soviética, ou por influência de membros da família, de romances proletários ou de artistas, como Jorge Amado”, revela.
Entre as características fundantes da cultura comunista, o pesquisador da UFMG destaca a crença na razão, na ciência e no progresso, a crítica aguda à Igreja e à religião, o culto à URSS e seus líderes, a aceitação da luta de classes como motor da História, o antifascismo e o anti-imperialismo. Com algumas variantes, claro. Rodrigo Patto sublinha que, no Brasil, a oposição do comunismo às instituições católicas acabou atraindo muitos judeus, sem que sua afiliação ideológica se traduzisse em desfiliação religiosa. A defesa do Estado soviético muitas vezes se sobrepôs ao tradicional internacionalismo comunista, e a condenação radical às forças imperialistas não raro serviu para mascarar sentimentos anti-imperialismo americano.
“Durante um tempo, tornar-se comunista era adentrar um universo novo, uma nova cultura, como ritos de iniciação e valores próprios”, pontua o pesquisador, para quem o comunismo trouxe consigo toda uma carga de valores simbólicos e morais que seriam compartilhados exclusivamente por seus adeptos. Por exemplo, os comunistas tinham vocabulário próprio: palavras como “quadro”, “tarefa”, “aparelho” e “camarada”, entre outras, foram introduzidas e ressignificadas pelos “companheiros” do PCB. A solidariedade, a disposição para o heroísmo e o espírito de sacrifício, bem como a fidelidade ao Partido, também fez parte do imaginário comunista. Símbolos como a foice e o martelo, a estrela vermelha e o punho cerrado, e até o costume de batizar crianças recém-nascidas com nomes de líderes históricos (Lenin, Stalin, Luiz Carlos, Vladimir, Tito) estão na constelação cultural do comunismo. Isso sem esquecer as datas comemorativas, com destaque para o Primeiro de Maio.
Imagens e identidade
A figura do proletário e do camponês também foram objetos identitários dos comunistas, e foi exatamente a construção imagética dos trabalhadores rurais brasileiros promovida pelo PCB que atraiu as atenções da pesquisadora Paula Elise Ferreira Soares, também da UFMG. Na primeira metade do século XX, existia a ideia — amplamente difundida no Partido — de que conhecer o Brasil era conhecer o campo. O país era majoritariamente agrícola e na terra viviam os trabalhadores brasileiros, agentes da Revolução que não tardaria em chegar.
“O PCB procurou representar o camponês em oposição ao latifundiário”, revela Paula Elise. Na imprensa comunista, portanto, camponês será todo aquele que trabalha no ambiente rural, inclusive os indígenas, e que são passíveis de rebelar-se contra as injustiças do sistema fundiário brasileiro. Portanto, lembra a pesquisadora da UFMG, o Partido se esforçou para revitalizar o “passado revolucionário do camponês brasileiro” fazendo exaustivas referências às experiências de Canudos, ao Contestado e à Coluna Prestes — exemplos históricos de que o interior sim possuía potencial transformador.
As artes também jogaram a favor da valorização moral do camponês no país. Dentro de suas especificidades estéticas, escritores ideologicamente alinhados ao comunismo, como Jorge Amado, Graciliano Ramos e Oswald de Andrade, deram suas colaborações para o projeto do PCB.
Paula Elise identificou a presença de dois tipos de camponeses na literatura desses autores. O homem do campo no Brasil aparece, por um lado, como um cidadão revoltado com a desigualdade social reinante no campo e consciente de sua condição miserável. Sua vontade maior é mudar de vida. Mas, por outro lado, o camponês também é retratado como uma pessoa ingênua e submissa, principalmente na figura dos capatazes ou jagunços “que se afastam de seus companheiros devido a um processo de enriquecimento que lhes transforma a moral e os engana, porque, no fim das contas, continuam sendo explorados pelo latifundiário”, conta a pesquisadora da UFMG.
Um terceiro tipo social atrelado ao campo foi identificado por Paula Elise na literatura engajada: o latifundiário, ser humano que passa por um processo de deformação moral e física ao apossar-se da terra, deixa de trabalhar e, como consequência, engorda. “O Partido entendia que a conquista individual da propriedade rural levaria o camponês não à Revolução, mas ao afastamento da moral proletária”, conclui.
Mas não foi só nas letras que o PCB procurou lapidar a imagem do camponês brasileiro. As artes plásticas também tiveram papel preponderante na propaganda comunista e, de quadro em quadro, a pesquisadora da UFMG destaca o pincel de Cândido Portinari como dos mais significativos em dar forma às agruras e à dignidade do homem do campo no país. “Na década de 1940, o Partido elegeu Portinari como grande artista modelo”, argumenta Paula Elise. “Era abnegado em seu ofício e com ele conseguiu transformar o camponês no homem do trabalho. Suas obras foram lidas pelos comunistas como glorificação do trabalhador.”
Em suas pesquisas, Paula Elise identificou três imagens utilizadas pelo pintor de Brodowski para retratar o camponês. A primeira delas via o homem do campo brasileiro dotado de força física, robusto e grandioso, mas que, ao mesmo tempo, mantém a feição ingênua, como se não percebesse a capacidade transformadora que traz consigo. Talvez a tela que melhor exemplifique essa tipificação do camponês seja “Mestiço”. Porém, existem outras, como “Lavrador de Café” (ao lado) e “Erva Mate”.
Portinari também pincelou o lavrador como homem que sofre e resiste. Nessa linha, o quadro “Retirantes” é, sem dúvida, o mais característico — e que mais ganhou fama fora do circuito comunista. Finalmente, a obra do artista não esquece a dimensão violenta do campo brasileiro, por ele mimetizada na figura dos cangaceiros. “Portinari tinha fascinação por eles”, explica Paula Elise. Os bandoleiros do Nordeste “são vistos como homens que tiveram a capacidade de se rebelar, mas que o fizeram sem consciência de classe.”
Prestígios mútuos
O circuito artístico comunista em grande parte serviu para enobrecer a imagem dos trabalhadores e evidenciar sua condição social desfavorável, mas também ajudou — e muito — a promover os artistas que trilhavam caminhos estéticos alinhados às causas propagandeadas pelo Partido. É o que defende Marcelo Ridenti, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e autor do livro “Brasilidade Revolucionária”.
O pesquisador cita o exemplo de Jorge Amado. Não é coincidência que o escritor baiano seja um dos mais lembrados quando o assunto é a arte comunista no Brasil. “Ele era um dos grandes articuladores do PCB na sua época”, contextualiza Marcelo Ridenti. “Foi deputado constituinte, perdeu o mandato com a extinção do Partido, foi enviado ao exílio em Paris para denunciar a perseguição aos comunistas brasileiros e divulgar a causa comunista do Brasil.”
Marcelo Ridenti acredita que a relação entre artistas e Partido, em alguns casos, era quase simbiótica, ou seja, trazia benefícios mútuos. Enquanto a militância de escritores, pintores e intelectuais legitimava socialmente o comunismo e ajudava sua propagação, a adesão dos criadores e pensadores às causas do Partido muitas vezes era uma garantia de que suas obras iriam circular, ser vistas, lidas e admiradas nos círculos comunistas dentro e fora do país. Era uma espécie de troca de prestígio.
Voltando ao caso de Jorge Amado, uma vez na França, o escritor foi nomeado para ser um dos dirigentes mundiais do Movimento Internacional pela Paz. “Assim, suas obras passam a ser traduzidas em larga escala e publicada em todos os países do bloco comunista, e também no mundo ocidental”, revela Ridenti. “Jorge Amado se faz amigo do presidente da Associação de Escritores Soviéticos e, em 1951, é laureado com o Prêmio Stalin da Paz, que era o equivalente ao Nobel da Paz para o mundo oriental.”
Essa relação é que fará Jorge Amado afirmar, mais tarde: “Se não cheguei a bispo, fui monsenhor”, para resumir seu nível de inserção nas altas rodas do comunismo internacional. Mas o baiano não foi o único brasileiro que se beneficiou da identificação com o Partido. Bem menos conhecido, o escritor paraense Dalcídio Jurandir rompeu as fronteiras de Belém e chegou a ter seus livros traduzidos na União Soviética. Segundo Ridenti, em grande medida graças à sua afiliação ao PCB.
“Existia uma compensação intelectual por pertencer ao Partido”, conclui o pesquisador da Unicamp, resgatando uma frase do poeta comunista Rossini Camargo Guarnieri, que diz: “O Partido é a intelligentsia a serviço da burrice organizada”. Aqui, Marcelo Ridenti chama a atenção não para a “intelligentsia” ou para a “burrice”, mas para a palavra “organizada”.
“O PCB se organizava”, afirma, “e pertencer ao Partido nesses momentos tinha a ver com o coração e com o cérebro, mas também com o estômago.”