Intelectuais comunistas: pensamento e vida partidária
Militantes orgânicos do Partido Comunista do Brasil ou livre pensadores simpáticos ao comunismo? A atuação e aceitação dos intelectuais afiliados ao PCB durante o século 20 é motivo de discussões até hoje, e o colóquio “Comunistas Brasileiros”, realizado na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLHC) da USP, não deixou de lançar novos olhares sobre o papel desempenhado na estrutura do Partido por dois historiadores politicamente engajados nas causas da esquerda: Caio Prado Júnior e Nelson Werneck Sodré, ambos com trajetórias e ideias pessoais que ora lhes aproximavam, ora lhes afastavam da estrutura partidária comunista.
Caio Prado Júnior filiou-se ao PCB em 1931, antes de escrever suas principais obras sobre a formação histórica do Brasil. Nessa época, explica o pesquisador Lincoln Secco, da USP, aderir ao comunismo era o mesmo que converter-se a uma religião — no caso, uma espécie de fé laica. “Ser comunista era uma condição ontológica”, compara. “Depois, com o avanço das ideias pecebistas no Brasil, a adesão foi se tornando cada vez mais uma troca de prestígio: a presença do intelectual legitimava o Partido e o Partido oferecia uma máquina para a difusão de suas obras e ideias”, pondera. “Naquela época, porém, ser comunista era como ser cristão. A identificação era muito forte.”
Lincoln Secco acredita que a característica da militância nos anos trinta ajuda a entender as razões pelas quais Caio Prado Júnior afiliou-se ao PCB. Naturalmente, não foi uma questão de classe. O intelectual já era rico antes de decidir-se pelo comunismo. Sua saúde bancária, aliás, ajudava a financiar o Partido. Com o dinheiro que tinha, colocou gráficas a serviço do PCB, e sua posição social auxiliava na arrecadação de recursos e na interlocução dos comunistas com membros da elite paulista, sobretudo na época em que o pecebismo apostava numa aliança com a burguesia nacional para desbancar o imperialismo norte-americano.
O pesquisador da USP colheu testemunhos de ex-comunistas que garantem: Caio Prado Júnior era um militante muito disciplinado, que ouvia muito e falava pouco durante as reuniões, e que tinha atuação exemplar dentro de sua célula. “Apenas discutia questões relativas ao Brasil, nunca se manifestava sobre os temas da União Soviética”, explica Lincoln Secco. Mesmo assim, jamais foi totalmente aceito dentro das engrenagens do PCB. “Existia a avaliação de que Caio Prado Júnior não passava de um burguês.” Talvez por isso nunca tenha assumido posições de liderança dentro da estrutura partidária ou tentado influenciar os rumos do Partido com suas ideias.
Jorge Amado chega a citar a figura do intelectual em seu famoso livro Subterrâneos da Liberdade, que conta um pouco da dinâmica interna do PCB a partir do ponto de vista do romancista baiano. “Caio Prado Júnior é representando por um militante fiel, porém burguês”, explica o pesquisador. “Jorge Amado o aproxima de Hermínio Sacchetta, que é o vilão da história.”
A alternativa interpretativa de Lincoln Secco para entender a posição de Caio Prado Júnior dentro do PCB é recorrer à falta de encaixe do pensador em qualquer instituição. Além da posição delicada dentro do Partido, Caio Prado Júnior também nunca conseguiu firmar-se como acadêmico. O fato de ser comunista dificultou sua carreira na universidade. Mais de uma vez postulou-se ao cargo de professor da USP, mas foi rejeitado. Na Faculdade de Direito, recusaram-no devido à sua filiação partidária. “Caio Prado Júnior foi um intelectual deslocado: essa é a opção e a conjuntura de sua vida”, diz o pesquisador. Sendo comunista, nunca foi dirigente; como intelectual, nunca foi professor acadêmico. “Sem ter feito carreira nem no Partido nem na universidade, viveu como pensador independente, aproveitando-se do prestígio do comunismo e da intelectualidade, mas sem atrelar-se a qualquer instituição. Assim, ficou conhecido como alguém que tinha ideias próprias.”
Lincoln Secco descreve Caio Prado Júnior como um historiador comunista, e não como um comunista historiador — e isso apesar do próprio intelectual por vezes ter achado o contrário. “Sua obra visava responder a problemas políticos de seu tempo”, explica. Por isso, divergiu das teses pecebistas em alguns momentos. Nestas ocasiões, claro, foi duramente criticado por seus camaradas. Chegaram a dizer que Caio Prado Júnior se considerava mais conhecedor da dialética que o próprio Friedrich Engels, parceiro de Karl Marx em obras como O Manifesto Comunista e A ideologia Alemã. E também que era um dos grandes representantes do revisionismo no Brasil, doutrina frequentemente ligada à releitura do marxismo em prol da social-democracia.
“É difícil entender por quê Caio Prado Júnior permaneceu tanto tempo no Partido, e também por quê nunca se levou adiante a ideia de exclui-lo. Apesar das divergências, ele chegou até mesmo a sair candidato a deputado pelo PCB”, problematiza Lincoln Secco.
Militar vermelho
Nelson Werneck Sodré também teve uma relação conturbada com o comunismo, principalmente por causa de sua formação política, forjada nas entranhas do Exército. Como muitos jovens de sua geração nascidos no seio das classes médias, o intelectual via na academia militar uma possibilidade de ascender socialmente. Mas seu ingresso nas Forças Armadas se deu numa época de transformação ideológica dos castrenses brasileiros por influência de dois movimentos políticos dentro e fora do país.
Nacionalmente, havia a herança do tenentismo, uma série de rebeliões empreendida na década de 1920 por jovens oficiais de baixa e média patente descontentes com a situação política do Brasil. Entre outras coisas, pediam reformas na estrutura de poder do Estado, o fim do voto de cabresto, a instituição do voto secreto e a reforma na educação pública. No plano internacional, houve a Revolução Russa de 1917. Além de ter abalado o mundo, como sugere o livro de John Reed, a ascensão dos bolcheviques ao poder em Moscou impactou fortemente setores inteiros das Forças Armadas.
“Nessa época, o Exército era um palco de debates”, afirma Paulo Cunha, pesquisador da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Marília, no interior de São Paulo. “Nelson Werneck Sodré tinha ideias marxistas e nacionalistas. Já era intelectual antes de ingressar nas filas militares, e também foi influenciado por autores conservadores, como Oliveira Viana.”
Antes de fazer a opção pelo comunismo, Sodré já sabia que assumir posições esquerdistas dentro das Forças Armadas significava criar dificuldades para a própia carreira. Paulo Cunha explica que muitos oficiais comunistas acabaram tendo as promoções abortadas. Quando conseguiam subir na hierarquia, normalmente era por antiguidade. Nelson Werneck Sodré chegou à patente de general-de-brigada quando finalmente entrou para a reserva, em 1961. Ao longo da vida, publicou 56 livros e escreveu mais de 3 mil artigos. Sua trajetória foi marcada por duas dimensões: a atividade militar e a militância intelectual, que dialogavam por meio da política.
“Sodré pensava o Exército como instrumento de transformação social”, explica o pesquisador da Unesp, ressaltando que, antes do golpe militar de 1964, o Exército tinha uma tradição democrática — que, por outro lado, não existia na Marinha. O próprio tenentismo era prova disso. “O pensamento de Nelson Werneck se identificava com essa vocação.”
O comprometimento do intelectual militar com as causas brasileiras, segundo o Paulo Cunha (foto), intensificou-se após ter sido enviado para servir no Mato Grosso. “Aí, Nelson Werneck Sodré foi tensionado em suas categorias ético-políticas”, diz, sobretudo porque, na primeira metade do século 20, as terras matogrossenses eram consideradas a Sibéria brasileira. “Sua estada nesta parte longínqua do país trouxe um elemento de compromisso à sua carreira, além da possibilidade de entender o Brasil de uma maneira diferente. Ali, ele viveu realidades até então completamente desconhecidas.”
O pesquisador da Unesp explica que a transição de Nelson Werneck Sodré para o comunismo deu-se a partir de um processo de fascistização do Exército, quando o corpo de oficiais começou a rechaçar a entrada de negros, judeus e filhos de trabalhadores. Foi quando o intelectual entendeu que os aspectos democráticos, que tanto admirava na farda verde oliva, estavam em declínio. “O Partido Comunista do Brasil foi o desaguadouro de vastos setores militares da época, principalmente dos adeptos do tenentismo”, revela Paulo Cunha.
Aqui, novamente dois fatos — também ocorridos dentro e fora do país — pesaram no pensamento de Nelson Werneck Sodré e em sua decisão de aderir ao PCB. Um deles foi o fracassado combate do Estado brasileiro contra a Coluna Prestes, “única derrota que o Exército brasileiro teve em sua história de conflitos de baixa intensidade dentro do território nacional”, define o pesquisador. Outro fator, diametralmente oposto, foi o enorme prestígio colhido pela União Soviética — e pelo comunismo internacional — após a vitoriosa batalha de Stalingrado contra a ofensiva de Adolf Hitler, em 1943, definindo o desfecho da Segunda Guerra Mundial.
Ao filiar-se ao PCB, Nelson Werneck Sodré permaneceu 13 anos sem publicar livro algum. Mas, nos anos 1950, o intelectual começa a mover-se ideologicamente com mais força dentro dos quartéis. Tanto que fez parte de uma chapa de esquerda que venceu as eleições para o Clube Militar defendendo duas bandeiras controversas para a elite fardada: eram favoráveis à campanha O Petróleo é Nosso e contrários à participação do Exército brasileiro na Guerra da Coreia — na época, o governo esteve prestes a enviar tropas para combater ao lado dos Estados Unidos. “Nelson Werneck Sodré fez as tensões subirem ao extremo após ter publicado um artigo anti-intervencionista numa revista militar”, lembra Paulo Cunha. “Tratava-se de uma questão muito pesada na época. Era complicado para um oficial ser comunista no contexto da Guerra Fria, porque sua postura era automaticamente relacionada com uma defesa da URSS. Isso ia contra o nacionalismo próprio da carreira. Por isso, a diretoria do Clube Militar foi destituída.”
Depois disso, Nelson Werneck Sodré tornou-se professor do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), onde aprimorou a fundamentação teórica de três de suas principais obras: As Classes Sociais no Brasil, Introdução à Revolução Brasileira e História da Literatura Brasileira. Durante o governo de João Goulart, iria para a reserva, dedicando-se somente à atividade intelectual. “Então, já não acreditava no esquema militar, mas nos movimentos de massa. No ISEB, Nelson Werneck Sodré reformulou sua concepção de democracia. Passou a entendê-la não apenas como um aspecto formal do sistema político, mas sim como um projeto de transformação”, explica Paulo Cunha.