Jornalismo, literatura e cultura comunista
Hoje em dia pode parecer inusitado, mas no século passado era comum ver as redações de grandes jornais povoadas por militantes do Partido Comunista do Brasil (PCB). E presença de “vermelhinhos” na folha de pagamento da mídia impressa tradicional não era vista com maus olhos pelos editores. Muito pelo contrário. É o que afirma Marco Roxo, pesquisador da Universidade Federal Fluminense (UFF) que se dedica ao estudo da trajetória dos jornalistas comunistas entre o trabalho na imprensa e a militância política durante a ditadura militar (1964-1985).
“Os comunistas ofereciam, nos anos sessenta e setenta, um modelo de profissional leal e disciplinado”, explica. A afirmação se baseia em alguns depoimentos colhidos junto a jornalistas que assumiram papel de chefia em grandes jornais brasileiros. É o caso de Cláudio Abramo, que dirigiu a redação da Folha de S. Paulo. “Ao longo da minha vida profissional, descobri que os membros do Partido Comunista são os mais fáceis de lidar”, disse certa vez. “São disciplinados e comprometidos. Para um jornal capitalista, seu comportamento é exemplar.”
À primeira vista, parece uma afirmação surpreendente, mas Marco Roxo acredita que grande parte das razões que explicam a boa relação entre donos de jornais capitalistas e jornalistas comunistas descansa exatamente sobre três aspectos da história do comunismo no Brasil — sobretudo em sua faceta partidária. A primeira delas seria o aliancismo, ou seja, a ideia de que a industrialização do país se daria a partir de uma aliança entre trabalhadores e burguesia nacional. Durante um tempo, o PCB acreditou que essa era a receita para tirar a maioria dos brasileiros do atraso em que se encontravam. Por motivos estratégicos, aceitava-se estabelecer alianças com antagonistas políticos.
O segundo aspecto é a vida clandestina imposta aos militantes comunistas durante a maior parte da história do Partido, com parcos momentos de legalidade. Segundo Marco Roxo, os adeptos do comunismo no Brasil teriam aprendido a esconder suas preferências ideológicas sempre quando fosse conveniente. Isso evitava problemas e lhes permitia seguir na militância. Por fim, o terceiro aspecto do pecebismo que facilitou a vida dos jornalistas de esquerda nas grandes redações foi o modelo de organização centralizada existente no Partido.
“Estes elementos explicam a associação dos jornalistas comunistas com a ideia do profissionalismo, que era visto como uma estratégia fundamental para afastar suspeitas e evitar perseguições”, analisa o pesquisador da UFF. “A vida regrada dentro das redações permitiu que construíssem um modelo de profissionalismo que serviu aos donos de jornais conservadores.”
Outro exemplo que ilustra as ideias de Marco Roxo foi a trajetória profissional de Pedro Mota Lima, que, nas décadas de quarenta e cinquenta, acumulava as funções de editor do jornal O Globo (um dos principais apoiadores do golpe militar de 1964) e de militante do PCB. “Nunca escreveu uma linha a favor do credo político que defendia, nunca traiu a confiança de Roberto Marinho”, explica o pesquisador. E isso depois de haver fundado jornais combativos nos anos trinta, ser perseguido e condenado pelo governo de Getúlio Vargas devido a sua atividade na imprensa.
A trajetória de Pedro Mota Lima chama atenção para outro aspecto da relação de alguns jornalistas com o comunismo. “A imprensa comunista foi uma escola de formação para profissionais que, mais tarde, trabalhariam nos meios de comunicação tradicionais”, defende Marco Roxo. “Ao adentrar para o Partido e começar a escrever em seus jornais, o militante podia avançar em suas ideias e discutir questões mais amplas.”
Uma vez dentro das redações conservadoras, a cultura rígida e centralista herdada dentro do PCB possibilitou aos jornalistas comunistas conviver sem maiores problemas com a estrutura hierárquica e autoritária das empresas de comunicação. “Havia um certo desejo de serem avaliados como profissionais — e não taxados como comunistas — dentro das redações”, diz o pesquisador.
Nesse sentido, a reforma jornalística dos anos oitenta lhes veio a calhar. Influenciados pelo jornalismo americano, os grandes diários brasileiros começaram a adotar os princípios de pluralidade, imparcialidade e objetividade como parâmetros éticos da atividade. “A factualidade jornalística acabou se transformando num álibi para a atuação dos jornalistas comunistas dentro das redações.”
Conflitos estéticos
A aridez do jornalismo, porém, não foi a única maneira utilizada por militantes comunistas para fazer uso da palavra escrita. A literatura foi uma importante ferramenta de expressão do ideário comunista — e não estamos falando apenas de Jorge Amado. Muitos outros escritores identificados com o comunismo dedicaram horas e horas sobre uma folha de papel para mimetizar a luta de classes e transformar em romance a dura vida dos trabalhadores.
Um deles foi José Godoy Garcia, um poeta goiano que tentou reproduzir em Goiás, na década de quarenta, as mesmas discussões estéticas que o Modernismo trouxe para a São Paulo de 1922. Ao contrário de muitos artistas fiéis ao PCB, porém, Godoy Garcia não utilizou seu engenho para divulgar o realismo soviético. “Ele acreditava num futuro socialista, mas não se adequou automaticamente ao receituário da estética socialista tal como foi proposta pelo Congresso do Partido Comunista da União Soviética em 1934”, avalia Eduardo Tollendal (foto), pesquisador da Universidade Federal de Uberlândia (UFU).
O interesse pelas novidades artísticas que chegaram ao Brasil na esteira do Modernismo e a identificação política com o comunismo irão definir a produção literária de José Godoy Garcia. “Como conciliar as vanguardas com o realismo socialista?”, questiona Tollendal. Talvez a resposta, acredita, possa ser encontrada na obra de uma crítica argentina Claudia Gilman, autora de Entre la Pluma y el Fuzil, que discute a literatura latino-americana à luz dos embates ideológicos que marcaram o continente durante o século 20. “Ela defende que a influência da literatura política e do realismo socialista, junto das vanguardas históricas, foi altamente produtiva para a literatura na América Latina”, explica o pesquisador da UFU. “Grandes autores surgiram, às vezes contrariando antropofagicamente as tendências internacionais.”
Entre as obras de José Godoy Garcia que merecem destaque, Eduardo Tollendal destaca O Caminho de Trombas, publicado pela Editora Civilização Brasileira em 1966. O romance se passa no início dos anos 1950 e aborda o universo político e social que antecedeu à guerrilha de Trombas e Formoso, no Estado de Goiás, um dos poucos (e pouco conhecidos) episódios da história brasileira em que os camponeses entraram em conflito com donos da terra — e venceram. O sucesso durou pouco tempo, é verdade. A luta armada durou seis anos e o triunfo veio em 1958. Seis anos depois, o golpe militar colocaria tudo a perder.
Segundo o pesquisador da UFU, o livro possui inúmeras referências à estética comunista. É possível identificar a presença do “herói positivo” na personagem de Preto Soares, que, no início, não demonstra possuir qualquer consciência de classe, mas vai sendo moldado pela realidade dura dos trabalhadores rurais, adquire consciência política e se torna uma liderança. “Nesse aspecto, é um romance de formação proletária”, explica. “A narrativa é centrada no povo, nos despossuídos de qualquer condição material. Existe uma certa idealização da classe popular, mas o autor não deixa de problematizá-la, trazendo inclusive elementos da forte religiosidade dos camponeses: fonte de alento e alienação.”
Outra característica típica dos romances políticos é a utilização da natureza como metáfora da trajetória da humanidade ao socialismo, do tipo: assim como passam os dias e as estações do ano, sem que o ser humano possa detê-los, a passagem do tempo cedo ou tarde também transformará a utopia em realidade. “O título do livro, O Caminho de Trombas, mostra a alternativa que José Godoy Garcia acreditava que deveria ser apropriada pelos trabalhadores brasileiros”, explica o pesquisador da UFU. “É como se o trabalho, sem a posse da terra, não bastasse para tirar as pessoas da pobreza. O romance transmite a mensagem de que a saída está na luta armada.”