COBRA NORATO


DESFILE EM PARINTINS-AM: COBRA GRANDE CONFORME RAUL BOPP

ESTE TEXTO FOI EXTRAÍDO DO TEXTO EM PROSA DE CÂMARA CASCUDO, A RESPEITO DO FOLCLORE PARAENSE. DEMOREI TRÊS MESES PARA CONCLUÍ-LO. ESPERO QUE GOSTEM.
MINHA INTENÇÃO É DIFUNDIR O MITO. CONSTA NOS ANAIS QUE, QUEM ENCONTROU ESSA HISTÓRIA E A REGISTROU, EM 1921, FOI RAUL BOPP, UM GAUCHO (1898-1984). NESSA ÉPOCA ELE FAZIA PESQUISAS NA AMAZÔNIA, ONDE O MITO ERA CONTADO ORALMENTE E REPASSADA, GERAÇÃO A GERAÇÃO DESSA MESMA FORMA.RAUL BOPP A PUBLICOU EM 1931. ANTES, EM 1922, FEZ PARTE DO GRUPO ANTROPOFÁGICO E MODERNISTA PAULISTA E PARTICIPOU COM OSWALD DE ANDRADE DOS MOVIMENTOS PAU-BRASIL E SEMANA DE ARTE MODERNA. ESTA HISTÓRIA ERA, ORIGINALMENTE, "CONTO INFANTIL". A OBRA DE RAUL BOPP E SEU AMOR AO FOLCORE E À MÚSICA, FIZERAM COM QUE O MAESTRO, COMPOSITOR, MÚSICO, ESCRITOR E FOLCLORISTA WALDEMAR HENRIQUE (1905-1995), COMPUSESSE UMA PEÇA MUSICAL COM O NOME "COBRA GRANDE". NO TEATRO, O GRUPO GIRAMUNDO -TEATRO DE BONECOS, FEZ A PRIMEIRA E VITORIOSA MONTAGEM EM 1979; PEÇA QUE SE TORNOU UM "CLÁSSICO" NO BRASIL.

Foi na beira do Trombetas,
Que nasceu o Honorato
Filho de índia tapuia
Moça forte, índia porã
Que além do filho Norato
Teve Maria Caninana, sua irmã

O Norato e a Caninana
Foram concebidos quando a mãe
Muito feliz no rio se banhava
-Foi encanto da cobra grande
Que então ali se desenrolava!

Nasceram gêmeos; só a mãe e Tupã
Os viu de perto: os gêmeos eram
Cobras de couro, escuro e brilhantes
Mas o tempo e Tupã se encarregou
De mostrar, muito além desses semblantes

Ele tinha o couro azul,
Uma carcaça reluzente
Comunicava-se muito
E vivia bem contente

Ela tinha o couro preto
E vivia bem escondida
E, por não gostar de gente
Em todos dava mordida

Ele era encantado
Ela, falsa, feia, lisa
Ele amava sua mãe
Ela lhe tinha ojeriza

Assim se diferenciavam
Desde cedo, desde logo,
Ele dizia: te cuida!
Ela dizia: te afogo !

A mãe tapuia os batizou
Nas águas do paranã
Já que em terra não andavam
-Quem sabe, talvez, amanhã?

Pediu a tapuia ao pagé
Que a cobra azul curumim
Pudesse ter um encanto
Que ele merecia sim

Contou a tapuia ao pajé
Que ela ficou embarrigada
Quando se lavava no rio
-Por certo estava pelada!

Os dois se criaram no rio
Nas águas do paranã:
Curumim, podia ir na terra
Mas, não podia ir a cunhã

Por causa de uma mandinga
Corpo de gente não podiam
Eles com certeza assumir
E ela, sabendo disso
Então logo se pôs a sorrir

Ela dizia que ia engolir
A tapuia, que tanto odiava
Para ela a mãe era a culpada
De seu irmão ser tão lindo
E ela ser feia, escangalhada

Nos dias calmos, os irmãos
Mergulhavam nas marolas
Reviravam os dorsos ao sol
Bufavam de tanta alegria
-Eram crianças de escol!

Norato era bonito e forte
E tinha bom coração
E para visitar sua mãe
Que fosse por um momento
Ele, na forma de homem
Veja só que sofrimento

Norato nadava pra margem
E aguardava o momento
Para visitar a sua mãe
Usando o encantamento

E o Norato esperava
Ouvindo xingos da irmã
Que dizia: – mato ela!
-Mata nada, minha irmã!

Tão logo que escurecia
E apareciam as estrelas
A acauã deixava de cantar
Cobra Norato saía d’água
E na areia ia se arrastar

E a areia do rio rangia
Pois Norato era pesado
Ele subia até o barranco
E passava a ser encantado

E, lá no barranco ficava
O seu couro monstruoso
Brilhando, à luz da lua
Azul cobalto; escamoso

E, erguia-se rapaz bonito
Todo de branco, a brilhar
Ia cear com a mãe tapuia
E o couro ficava a esperar…

O corpo da cobra ficava
Estirado no paranã: Norato
Tinha que meter-se nele
À primeira luz da manhã

E o Norato metia-se, naquele couro
Antes do cantar do galo, de manhã
E, então a cobra ganhava vida
E mergulhava nas águas do paranã

E assim viveu, encantado
Um moço infeliz pelo fato
De querer ser gente, mas era
Somente a grande cobra Norato

Norato só fazia o bem
Para as gentes ribeirinhas
Salvou gentes, venceu peixes
Expulsou as piranhinhas

Certa feita ele lutou
Por três dias e três noites
E o rio Trombetas chorava
Enquanto dava dentadas e açoites

E a luta durou tanto, até
-Sabe quando ela parava?
-Quando o espírito medonho
Para os infernos se mandava!

Já a Maria Caninana
Vivia a fazer maldades
Alagava embarcações
Apavorava os arrabaldes

Fazia os ribeirinhos
Viverem sempre com medo
Matava gente a pescar
E se mostrava, sem segredo.

E nunca procurou a tapuia
Que no Tejupar morava
E nunca ajudou um náufrago
-Na verdade ela os atacava!

Hoje em dia contam que
Lá em Obidos, no Pará
Debaixo de uma igreja
Uma grande caverna há

Lá, uma grande serpente está dormindo
Com a cauda no rio, cabeça debaixo do altar
Encantada pela Senhora Santana
Dizem que a terra racha, se alguém a serpente acordar

Caninana mordeu a cauda da serpente
Mas a serpente não acordou
Ela apenas se mexeu,
E foi assim que a terra rachou

E a terra rachou de verdade
Desde o mercado até a matriz
Mas, ela queria derrubar a igreja
Só não conseguiu por um triz

Nisso chegou o Norato
E matou a sua malvada irmã
E ficou por ali, brincando
Nos igarapés do paranã

A partir desse dia, todos viram
Que o Norato era do bem
E nas festas de putirum de farinha
O Norato era recebido também

E o Cobra Norato só desencantava
Quando as acauãs paravam de cantar
E só então, todas as moças das festas,
Finalmente, sua beleza podiam admirar

E, de branco ele dançava
Sorria, mostrava os dentes
Conversava com os rapazes
E todos ficavam contentes

Porém, quando o dia ia chegando
Norato cumpria o destino com destemor
E metia-se naquele couro, brilhante
E, da cobra mergulhando, ouvia-se o rumor

Uma vez cada ano o Norato
Um amigo ele convidava
Queria que desencantassem
E que a cobra matassem

E para quebrar o encanto
O Norato então explicava
Que esperassem a cobra dormir
Quando a boca ela escancarava

E na boca desta besta fera
Qual relâmpago, com açoite
A cobra mostrava os dentes
Brilhando à prata dentro da noite

E para desfazer o encanto
Aquele que coragem tiver
Tinha que pingar três gotas de leite
Tiradas do seio de uma mulher

E depois que cobra acordava
Arrotando o veneno de mulher gente
Tinham que feri-la com um cutelo
De ferro virgem, evidentemente

A cobra se contorceria
Lamentando sua ferida
Fecharia a boca ensangüentada
E Norato seria homem o resto da vida

Se alguém tivesse coragem
Para queimar essa serpente
Tudo estaria resolvido
E a mãe tapuia ficaria contente

E dizem que gente em profusão
Para ajudar o Norato
Levavam aço virgem e leite
E olhavam a cobra no mato

E a cobra era tão grande e feia
Que a todos ela assombrava
E mesmo ela dormindo, o povo
Um herói ninguém encontrava

A própria tapuia tentou
Mas, na hora teve medos
Deixou cair no chão o leite
E o cutelo, por entre seus dedos

E o cobra Norato continuou nadando
E assobiando na imensidão
Do Amazonas e do Trombetas
Indo e vindo, sem remissão

Num festim de putirum famoso
Nadando pelo Tocantins e Cametá
Deixou o corpo na beira do rio
E foi lá beber, dançar e conversar

Ele conheceu um homem valente
Que , por acaso era soldado
E pediu que o desencantasse
O soldado levou leite e um machado

E o soldado viu a cobra dormindo
Estirada como morta no barranco
A cobra estava com a boca aberta
E o soldado era bravo e franco

Desceu o machado com vontade
No cocuruto da cabeça acertou
O sangue encantado marejou
A cobra sacudiu e parou

Honorato deu suspiro de alívio
Até veio ajudar a queimar o couro
Da cobra onde vivera tantos anos
Para ele, a vida era um tesouro

Dizem que o Norato morreu tarde
Lá para os lados do Cametá
Mas, seu espírito vive nos rios
Ainda virgens, no Estado do Pará

Não há no Pará um só ser que ignore
A vida da Cobra Norato naquelas paragens
São estórias, são causos, são crendices
São espíritos vistos pelas margens

Ainda hoje se escuta os canoeiros
Batendo a jacumã, fazendo relato
Indicando as paragens inesquecidas:
-Ali passava, todo dia, a cobra Norato!

Antônio Carlos Affonso dos Santos – ACAS. É natural de Cravinhos-SP. É Físico, poeta e contista. Tem textos publicados em 7 livros, sendo 4 “solos e entre eles, o Pequeno Dicionário de Caipirês e o livro infantil “A Sementinha” além de três outros publicados em antologias junto a outros escritores.