O impasse boliviano
O vice-presidente García Linera traduziu essa formação complexa como "uma nação de nações".
Nações diversas incrustadas num Estado tolhido de exercer a soberania nacional plena sobre o seu território forjam incidentes como o que a Bolívia atravessa. O governo da República sente a fraqueza do poder central ao ser confrontado por nações comunitárias que impedem a passagem de uma rodovia pelo Território Indígena e Parque Nacional Isiboro Sécure (Tipnis). Trata-se de um projeto de desenvolvimento nacional, mas três etnias em particular – moxeños, yurakarés e chimanes, que reúnem cerca de 13 mil indivíduos – reagem como se as terras que ocupam fossem autônomas, e não parte do território nacional boliviano e, portanto, sujeitas ao controle da nação e às diretrizes do Estado.
A institucionalização de um Estado multinacional é uma experiência contraditória com a noção histórica de que uma nação pode conter minorias e diversidade de toda ordem – étnica, cultural, política, etc. -, mas não pode permitir que elas concorram entre si de modo a impedir a formação de uma identidade comum. Ao contrário, o Estado só merecerá esse nome se se sustentar na unidade nacional mais ampla, ou seja, como expressão de um país soberano cuja organização política contemple o sentimento de comunidade em que a nação é uma só. O conjunto das instituições (governo, forças armadas, administração) há de ter o largo alcance da isonomia plena e indistinta, mesmo quando Estados confederados reúnem várias nações.
O risco das autonomias nacionais baseadas em minorias instalou-se na Bolívia a despeito de o partido de Evo Morales, o Movimento para o Socialismo (MAS), ter superado em sua plataforma eleitoral o equívoco do indianismo excludente. Grosso modo, a maioria de origem indígena – que constitui dois terços da população boliviana, de aproximadamente 10 milhões de pessoas – não tem a suposta unidade que lhe é atribuída. Descende dos aimarás do altiplano e dos quíchuas dos vales, permeados ou apartados de 36 grupos étnicos andinos e amazônicos, os quais – em graus e com força diferentes – se identificam como povos distintos e são estimulados a reivindicar o status de nação. Só a centralidade da questão nacional, e jamais a fragmentação étnica, tem condições de unificá-los em torno da identidade agregadora que forja a nação.
O presidente Evo Morales, já eleito duas vezes, venceu batalhas importantes, como a nacionalização do petróleo e do gás, e resistiu às tentativas de separatismo dos Departamentos mais importantes, como Santa Cruz, Pando, Beni e Tarija. Mas é em seu campo ideológico que trava o combate mais difícil. Sua popularidade sangra nas ruas e o governo implode e se desestabiliza na proporção em que a arquitetura das etnias autônomas é apropriada e reformatada pela oposição, por dissidências e por interesses externos.
Na doutrina política, tais forças parecem nostálgicas do comunismo primitivo, cuja "economia doméstica", como observou o filósofo alemão Friedrich Engels no estudo clássico A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, teve importância até "a fase média da barbárie". Estradas, energia, máquinas, ciências, todo o processo civilizatório da humanidade é rejeitado como contaminação do modo de vida indígena, raptando-lhe a pureza original.
Querem conservar o saber e a cosmogonia dos povos originários não a par, respeitados como devem ser, mas em protagonismo hostil ao desenvolvimento das forças produtivas. O progresso não é aceito como caminho para outras formas avançadas de organização política da sociedade. Negam a integração nacional, a superação da pobreza pelo desenvolvimento, a modernização do campo semifeudal e a industrialização das cidades. Tudo o que não é autóctone se transfigura em miragem do Ocidente decadente, em confronto com o brilho remoto do Império Inca.
O grande vetor contemporâneo dessa doutrina regressista é o ambientalismo deformado, por ironia, originário de países desenvolvidos onde o Estado nacional jamais é posto em xeque, as populações aborígines foram dizimadas e o modo de vida perdulário esgota a natureza. Daí que o episódio em curso na Bolívia não é inocente nem espontâneo, mas uma onda que nasce nas águas turvas do equívoco étnico interno para virar um tsunami geopolítico ao gosto de quem tem interesses contrariados e se alia ao mais fraco por saber que poderá submetê-lo mais tarde, como já o fizeram em enumeráveis processos de colonização. O braço executivo dessas articulações são organizações não governamentais (ONGs) que constituem o já chamado imperialismo verde – da mesma natureza das que atuam no Brasil, conferindo a tribos da Amazônia um suposto caráter de minorias oprimidas pelo "colonialismo interno" da Nação.
Tal como lá, aqui o Estado também perde a soberania para dispor do território. Já tropeçamos nos conceitos de povos e nações indígenas, garantindo-lhes extensas áreas para usufruto exclusivo em zonas de fronteira, como as reservas dos ianomâmis e a de Raposa-Serra do Sol, na Amazônia. Já não é fácil asfaltar uma estrada ou construir hidrelétricas – obras de valor nacional satanizadas como violadoras da mãe natureza e da pureza dos povos originários.
*Aldo Rebelo é deputado federal pelo PCdoB-SP
Fonte: O Estado de S.Paulo