A batalha pela memória
O que começou com agressões contra uma importante e respeitada liderança comunista, o ministro Orlando Silva, foi tomando proporções insólitas. Quando os detratores do PCdoB desceram sorrateiramente aos porões de suas próprias almas, as investidas iniciais deram lugar a uma ofensiva de nítidos contornos ideológicos. Passou-se a atentar contra o Partido como instituição – sua história, suas ideias, sua herança, sua presença na sociedade e na cultura brasileira –, numa espécie de reação ideológica em toda linha, com múltiplas frentes de contestação abertas simultaneamente.
Uma delas foi deflagrada a partir da exibição, nas redes de TV aberta, do programa partidário do PCdoB. Apresentado no último dia 20, o programa trazia uma vinheta veiculada como avant-première das comemorações pelos 90 anos do Partido, que se realizam em 2012. Vejamos o texto que foi ao ar no programa:
“Mudar era impossível. Até o dia em que eles usaram o que tinham de melhor e simplemente mudaram. A criatividade de Jorge Amado mudou a literatura brasileira. A paixão de Drummond mudou a poesia. A ousadia de Pagu mudou o comportamento feminino. O talento de Portinari mudou a arte. A visão de futuro de Niemeyer mudou a forma da arquitetura. A coragem de Olga Benário mudou a forma de se fazer política. O sonho de João Amazonas, Maurício Grabois e Luís Carlos Prestes mudou a história. De um jeito ou de outro, todos eles mudaram o país. E todos eles fizeram do PCdoB um partido que é a cara do Brasil.”
A exibição da vinheta foi a senha para que o campo conservador e a grande mídia – vergonhosamente secundados por setores que se autoproclamam de esquerda, incluindo seitas exóticas que de maneira delirante se consideram “donas” do legado comunista – percebessem que não bastava questionar o presente do PCdoB. Era preciso golpear os comunistas apagando seu passado, divorciando-os de sua própria história. “O partido delirou: no programa partidário para TV, tratou a História como massinha de moldar. De repente, citam Luís Carlos Prestes, Niemeyer, Drummond como grandes nomes do partido”, afirma o jornalista Carlos Brickmann em coluna publicada em vários jornais do último domingo (23). Trilhando a mesma senda, Fernando Gabeira – figura renegada da esquerda, rendida ao campo conservador por trinta tostões –, joga ainda mais duro: o PCdoB teria cometido, em seu programa na TV, “uma injustiça com a história cultural brasileira”.
O argumento esgrimido é sempre o mesmo: figuras como Prestes, Niemeyer ou Drummond não teriam sido jamais membros das fileiras do PCdoB, não podendo portanto ser evocados por esse partido. Nas palavras de Gabeira, “fica no ar uma impressão falsa de que existe uma continuidade entre eles e o PC do B”. Nessa concepção cartorial de política, que vê sempre os partidos como meras legendas – sem maiores vínculos com correntes de pensamento mais profundas e permanentes –, fico pensando se também não deveríamos ser proibidos de reverenciar figuras como as de Marx, Engels, Lênin, José Bonifácio e Tiradentes. Afinal, eles também “não foram do PCdoB”.
Mas Gabeira vai ainda mais longe. Mostrando-se especialmente indignado com a evocação do poeta Carlos Drummond de Andrade, termina por afirmar que nada autoriza a apresentá-lo “como um dos grandes intelectuais comunistas da história do Brasil”. Logo Drummond, ex-editor da Tribuna Popular (órgão da imprensa comunista da década de 1940) e também autor, como lembra o próprio Gabeira, de A Rosa do Povo, livro de grande sensibilidade social e política, momento alto não apenas da cultura brasileira, mas da literatura de extração comunista em todo o mundo, capaz de ombrear-se à maior literatura do mesmo gênero, bastando para isso compará-lo à poesia comunista de um Pablo Neruda.
Para Gabeira, o rompimento de Drummond com o Partido em 1949, após a realização do congresso da Associação Brasileira dos Escritores, seria suficiente para ficarmos os comunistas proibidos de evocá-lo para todo o sempre. “A poesia de Drummond não cabia nos rígidos cânones estéticos do Partido Comunista. Nem sua individualidade poderia ser conformada nos limites do centralismo democrático.” O intuito é fulgente: exaltar a grandeza de Drummond em oposição à “pequenez” do Partido Comunista. Drummond não precisa disso. E Gabeira, ademais, não se dá conta da contradição em que incorre: ali, quando opõe Drummond aos comunistas, enxerga continuidade entre o PCdoB e a legenda à qual esteve filiado o grande poeta brasileiro. Traduzindo: os comunistas só temos o direito de reivindicar a herança do Partido naquilo que possui de “negativa”, jamais no que possa possuir de positiva.
Abre-se assim um confronto de novo tipo, intangível, que bem poderia ser considerado uma “batalha pela memória”. Está decretado: ficam os comunistas proibidos de evocar sua própria história! Ou, melhor dizendo, ficam os comunistas proibidos de ser quem são!
O irônico de tudo é que, na avalanche anticomunista deflagrada no final dos anos 1980, com a queda do muro de Berlim, o PCdoB foi vilipendiado exatamente por continuar reivindicando símbolos, personagens e, enfim, a herança do movimento comunista. Naquela época não foram poucos os que renegaram essa herança, rasgaram as bandeiras com a foice e o martelo e mergulharam de cabeça no butim neoliberal. Quando nos convidaram a ir junto, recusamos. E se riam de nós, dizendo que, se não nos dispuséssemos a renegar nosso passado, desapareceríamos. Respondemos que não, que preferíamos morrer a jogar no lixo nossa história. Não morremos. Ao contrário, a persistente crise capitalista mundial – à qual nosso país tem resistido bravamente, graças às políticas dos governos Lula e Dilma – nos dá razão dia após dia. E, não por acaso, o Partido cresce a olhos vistos, como revela de maneira insuspeita o semanário Época, apresentando gráficos, tabelas e toda uma parafernália de provas do crescimento dos comunistas, que teriam chegado “ao centro do poder”.
Ou seja: naquela época se riam quando evocávamos a história do comunismo. Hoje, ao contrário, estamos proibidos de reverenciá-la. Num país onde os partidos costumam mudar de nome não como expressão de qualquer avanço programático, mas como reles tentativa de apagar o passado, é surpreendente que se ataque um partido por recusar-se a renegar sua história!
Porém, em pelo menos uma coisa é necessário concordar com nossa moderna inquisição: a memória é coisa séria demais para ser largada “solta” por aí. O marxismo possui fortuna crítica sobre o tema. Em O narrador, Walter Benjamin – intelectual marxista morto em 1940 em decorrência da perseguição fascista na Europa – mostra-se convicto de que o passado contém sempre a força de algo inacabado, e que o presente pode assumir, por meio da memória, um papel redentor. Em sua crítica da modernidade, Benjamin esforçou-se por apontar o que considerou um grave perigo: a “perda da memória”. O homem moderno teria como um de seus traços o culto obsessivo à imediatidade do instante presente, o que terminaria por acarretar uma recusa persistente do passado. Segundo Benjamin, esse fenômeno seria visível na perda, pelo homem moderno, da capacidade de narrar – e, com ela, de comunicar a experiência, instruindo o presente e agregando sentido ao futuro. Benjamin via nesse fenômeno um verdadeiro atentado à cultura e, mesmo, uma tendência à barbárie.
De fato, o mundo em que vivemos é marcado por contínuos e persistentes ataques à consciência histórica. Como afirma o intelectual marxista britânico Terry Eagleton em seu Depois da Teoria – um olhar sobre os estudos culturais e o pós-modernismo, esse processo é consequência direta do clima de desilusão que se instaurou no pós-guerra. Ao longo das últimas décadas, de enfadonho conservadorismo neoliberal, o senso histórico tornou-se crescentemente “obtuso”, já que convém aos detentores do poder que as maiorias populares, não recordando o passado, sejam também incapazes de imaginar alternativas ao estado atual das coisas. Nessa perspectiva, classificada por Eagleton de “política da amnésia”, o futuro seria, simplesmente, o presente indefinidamente repetido.
Essa realidade tem afetado gravemente os empreendimentos coletivos, sejam os dos trabalhadores, sejam os da juventude, sejam os de diversos outros segmentos sociais ou, mesmo, os do povo-nação. Conforme denuncia Eagleton, “o que se provou mais danoso foi a ausência de memórias de ação política coletiva – e efetiva. É isso que tem distorcido tantas ideias culturais contemporâneas”.
Essas ideias distorcidas são expressão de um autoritarismo visceral. Se em tempos outros o anticomunismo tinha como expediente principal a aniquilação física, hoje pratica uma violência simbólica, porém não menos agressiva, que lança mão de um liquidacionismo de tipo “moral” e inclui a negação do direito à memória. Fico pensando se não seria também a isso que faz referência o governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro, quando, no auge das denúncias contra Orlando Silva, sacou o termo “fascismo pós-moderno”.
No mundo em que vivemos – o mesmo em que um presidente da República é morto e, após ter seu corpo arrastado nas ruas, é enterrado em local desconhecido para que sua memória não se torne ícone da resistência –, é fácil perceber que nem mesmo o direito ao passado está garantido. É preciso lutar contra isso – e essa luta não está restrita às comissões da verdade. Em nossa sociedade, ninguém devia ser proibido de lembrar seus heróis.
Fábio Palácio é jornalista e estudante de doutorado pela ECA/USP. Desenvolve, com financiamento da Capes, projeto de pesquisa sobre o marxismo e o conceito de cultura. Militante comunista, espera poder continuar recordando, sem ser importunado, seus ícones e referências, quando e onde quer que seja.