entrevista com psicólogo costa- riquenho Inacio Dobles Oropeza.
Fábio Nassif
“A ideia de não enfrentar a verdade é a de liquidar o passado. O problema é que as feridas não vão se fechar nunca para as vítimas.” Por essa razão as leis de anistia não têm a capacidade de apagar com borracha o passado, segundo o psicólogo costa-riquenho Ignacio Dobles Oropeza, autor do livro “Memórias da dor: Considerações acerca das Comissões da Verdade na América Latina”. Em entrevista concedida à Carta Maior e à revista Caros Amigos, no último dia 21, depois de participar do seminário “Psicologia e Direitos Humanos: Direito à Memória e à Verdade”, concluiu que “o grande estorvo para aqueles que querem apagar o passado são as vítimas”.
O professor da Escola de Psicologia da Universidade da Costa Rica entende as comissões da verdade como um processo de negociação, cujo resultado depende da correlação de forças em cada país que passa por essa experiência. Mas, segundo ele, “se é possível a reconciliação, ela tem que passar pela verdade e pela justiça”. Oropeza insiste que o processo deve ser o mais público possível e, acima de tudo, devem estar referenciados nas experiências vividas pelas vítimas e seus aliados.
Se você fosse fazer um quadro geral das Comissões da Verdade e de Memória na América Latina hoje, o que destacaria?
Não me considero nenhum especialista no assunto. Simplesmente sou um interessado no campo da memória. Estudei, em 2008, as experiências do Chile, Argentina, El Salvador, Guatemala e Peru. Atualmente, o tema da Comissão da Verdade aparece em mais três lugares: Equador – uma experiência com suas particularidades, pois é fundamentalmente a repressão do governo contra a Alfaro Vive, organização armada dos anos 70 e 80; no Brasil, que conheço apenas os traços gerais; e como parte de uma proposta para resolver o impasse do golpe de Estado em Honduras, quando Oscar Arias, presidente da Costa Rica, mediou uma solução um pouco complicada porque implicava colocar na mesma mesa os golpistas e os setores democráticos. Mas parte de sua proposta era a Comissão da Verdade. Foi instalada, mas nunca foi aceita pela resistência hondurenha. Também sei que em algum momento o Instituto Interamericano de Direitos Humanos teve a intenção de apoiar a criação da Comissão da Verdade no Suriname, mas acho que não foi muito longe.
Qual a importância de uma Comissão da Verdade?
No campo da memória em geral, as Comissões da Verdade são ferramentas muito interessantes para trabalhar versões de memória pública, para resgatar o que aconteceu nesses países no sentido mais geral. Mas de nenhuma forma são as experiências mais importantes. O mais importante para verdade e a memória são as experiências que as vítimas e seus familiares têm relatado, nas diferentes condições de cada comissão. Para mim, as comissões da verdade são tão interessantes porque, em última instância, implicam em negociações a partir de uma dada correlação de forças. Numa Argentina saindo da ditadura militar depois da Guerra das Malvinas, com um exército derrotado e em retirada, a correlação de forças era muito diferente do caso do Pinochet, no Chile, que saiu em 1988. A correlação de forças em cada pais é fundamental.
Quais experiências você citaria e que grupos estão na vanguarda da discussão da memória desses períodos ditatoriais na América Latina?
Para mim, é bastante claro que o país com mais avanços neste campo é de longe a Argentina, no plano legal, governamental e pelo trabalho de organizações como as mães, avós, filhos, advogados, artistas, etc. E em outros lugares têm sido extremamente difíceis, como El Salvador.
Existem características comuns a essas Comissões da Verdade do continente?
No geral, o seu caráter. São comissões que estão tratando de dizer a toda a sociedade o que aconteceu, de criar uma espécie de memória pública. Tratam de períodos recentes determinados – não são comissões históricas para fazer, por exemplo, um pedido de desculpas do Estado com relação à escravidão. São coisas mais recentes. E, de alguma maneira, têm o apoio oficial do Estado. Fazem seus informes, têm um prazo para encerrar os trabalhos e geralmente criam muitas expectativas.
Em relação a este apoio do Estado, em vários países alguns representantes das ditaduras permanecem no poder político de alguma forma. Como isso influencia as Comissões? De certa forma, podem enfraquecê-las?
Sim, claro. Historicamente. Você pode ver que a direita salvadorenha, muito agressiva, que governou o país por 20 anos, assinou a criação da Comissão da Verdade como parte do acordo de paz com a FLMN (Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional) nos anos 90. Imediatamente, outros setores da direita atacaram a comissão e aconteceu um grande conflito. Um ponto de discussão da primeira comissão do Chile era a de que um dos integrantes estava vinculado ao governo Pinochet. Mas é assim, não pode ser de outra forma. Se um dos grupos ganha totalmente, a Comissão da Verdade perde a características de negociação. Mas se os fatores conflitantes de alguma forma têm algum grau de força, em última instância ela é um processo de negociação.
Essa é a perspectiva para a comissão brasileira?
Eu não tenho dúvida de que, se a Comissão da Verdade começa a funcionar no Brasil, vai ter uma reação feroz, porque esta é a história peruana, equatoriana, argentina e salvadorenha. Isso, se for cumprida uma característica fundamental da comissões, que é dar espaço e trabalhar em função das vítimas, porque o sistema legal não está funcionando assim. Nas comissões da verdade, a ideia é que em primeiro lugar estejam as vítimas.
Você havia falado dos discursos utilizados geralmente, de tratar de maneira igual as vítimas e os vitimados, e do discurso dos “dois demônios” que consiste em culpar ambas as partes para justificar um processo de conciliação. Esses discursos são recorrentes nestas variadas experiências?
Sim, mas depende da situação. Ideologicamente é uma ideia muito forte porque é uma espécie de equilíbrio. É muito fácil que as pessoas aceitem essa posição de meio-termo, pra não serem consideradas extremistas. São os chamados extremo-centristas. É muito fácil vender essa ideia de que as lutas, as armas e as condições de cada um eram iguais. Essas são discussões pendentes, porque não se trata, tampouco, de romantizar a luta armada. Mas o fato é que este lado não pode ser colocado na mesma posição do outro. O terrorismo de Estado é infinitamente mais danoso que de grupos isolados e pequenos. E é o Estado, o que se pressupõe ser aquele que deve defender todos os habitantes. Isso não é dizer que não hajam responsabilidades.
Diante da prevalência do sistema capitalista, os setores que lutavam contra as ditaduras e também eram contrários ao próprio sistema estão em desvantagem hoje?
Depende. Falando das Comissões da Verdade, se você examina a África do Sul, é uma comissão negociada que passa por projetos políticos e militares dos dois lados: o Congresso Nacional Africano e o governo do Apartheid com suas forças repressivas. É uma negociação política que canalizava, em termos de estratégias de ambos os lados, o processo da comissão. É outra situação. No Peru, a pressão é tanta que, como forma de reação às pesquisas, o presidente Alejandro Toledo insistiu em retomar as investigações sobre o Sendero Luminoso, mas que não falava do Exército. Bastante desequilibrada. Tanto é que, se você examinar o informe da Comissão da Verdade, uma grande quantidade dos feitos descritos é do Sendero Luminoso. Em El Salvador, onde também consideram os crimes da FLMN, acho que estes eram 5% do total. No Peru, acredito que 47% eram do Sendero Luminoso. Então depende da conjuntura de cada país.
Falando dos conceitos, qual a diferença entre verdade, justiça e reconciliação?
Reconciliação é um termo muito complicado, justamente pelo que estava dizendo, pois há diferentes tipos. Existe o “brigamos no passado mas agora somos amigos” e “apagamos o passado”, ou aquela reconciliação com puro gesto simbólico onde os dois maiores líderes se encontram e se abraçam publicamente. Mas ambas não são reconciliações reais. Se é possível a reconciliação, ela tem que passar pela verdade e pela justiça.
Mas a verdade tampouco é suficiente porque cai na dinâmica da chantagem, como em algum momento faz a direita e o Exército, na mesa de diálogo e negociação. A proposta era “nós damos as informações mas vocês não nos processam”. É o mesmo que dizer “nós damos pra vocês a verdade, mas não a justiça”, que obviamente não foi aceito pelas organizações de direitos humanos.
Na África do Sul não foi um processo semelhante a isso? Os militares passavam informações em troca de sua anistia?
Tinha uma comissão de anistia com certos requisitos. Nem todos eram anistiados, mas havia essa linha de atuação. A anistia era tão negociada politicamente que as situações eram analisadas dentro do marco das estratégias políticas. Ou seja, o militar ou policial que saiu das forças repressivas e matou um monte de pessoas simplesmente porque quis, não recebe anistia. Muito do processo sul-africano está baseado nas organizações políticas, porque não considera os atos pessoais, mas estratégicos das forças consolidadas.
Em que país houve justiça de fato?
O que tem conseguido mais justiça é a Argentina, que inclusive processa os repressores. Não é assunto da Comissão da Verdade, pois ela não tem essa função legal. Mas ela influenciou o que veio a acontecer. A Argentina me impressiona pela vontade política. Os governos dos Kirchner mostraram uma posição política totalmente diferente de governos anteriores. Isso tudo com muitas travas. Um dos principais obstáculos são os juízes que apoiaram a ditadura e ainda estão no sistema judiciário, que atrasam processos e se espalham para complicar tudo. Interessante que no último ano tiveram algum juízes processados por isso, acusados. Claro que não são processos contra todos os membros da Igreja, empresários e meios que apoiaram a ditadura. Mas começam processos que sinalizam também para estes setores. Mesmo com uma tremenda reação, acho que a Argentina avançou mais por isso.
Existem diferentes desdobramentos das Comissões da Verdade, como os casos citados que geraram outras comissões e casos onde os torturadores foram anistiados logo em seguida. Qual a sua opinião sobre essas possibilidades abertas pelas comissões?
Minha opinião é que, com todas as limitações e contradições, as comissões da verdade são positivas simplesmente pelo fato de registrarem as experiências das vítimas. Se fosse por elas mesmas, por sua própria dinâmica, jamais aconteceria isso com os repressores. Eles nunca iriam criar uma Comissão da Verdade em função da experiência das vítimas. Então, a existência em si é positiva. Daí em diante, o que vai acontecer depende de muitas coisas.
O caso da Argentina é um referencial importantíssimo. De qualquer modo, as comissões da verdade retratam de alguma maneira a repressão nos contextos específicos. Ou seja, a repressão argentina não foi a uruguaia, não foi a chilena. Por isso, por exemplo, o resgate das crianças desaparecidas na ditadura de El Salvador é diferente da situação das avós da Praça de Maio, porque eram operações comunitárias de contra-insurgência e não desaparecimento de pessoas individuais. Não é o genocídio guatemalteco que está retratado em suas duas comissões.
O resultado depende de quê?
Depende do que outros setores sociais vão fazer com esta ferramenta, que não é a única. Eu não sabia da existência de várias comissões no Chile. Estava trabalhando com duas. E o caso chileno é importante porque a comissão de 91 que tratou das mortes e execuções mas não tanto das torturas. Em 2004, ela foi complementada pela comissão que trata de torturas. Mas nenhuma das duas nomeia os repressores. Nenhum. Ao mesmo tempo, existem processos contra militares por conta da repressão, porque o sistema legal chileno permitia fazer julgamentos.
Quais as conseqüências para um pais de negar a memória e a verdade, como no caso daqueles que usam uma lei de anistia para passar a borracha na história?
Eu acho que temos que falar das vítimas, seus familiares e seus aliados. A ideia de não enfrentar a verdade é a ideia de liquidar o passado. O problema é que as feridas não vão se fechar nunca para as vítimas. O grande estorvo para aqueles que querem apagar o passado são as vítimas. Neste caso, Hitler tinha uma certa lógica, embora perversa, porque seu projeto era eliminar não só os judeus, mas todo mundo. Porque se eliminasse todos, em sua cabeça, o futuro seria vitorioso. Existe um discurso famoso de Hitler onde ele fez referência ao genocídio de armênios na Turquia, ironizando que ninguém se lembrava do episódio, e era isso que importava. Os obstáculos, então, não são os técnicos em direitos humanos, e sim as vítimas, suas organizações, seus trabalhos, seus aliados. Então no imaginário. Por exemplo, na negociação chilena da Concertación – que muitos autores escrevem como uma espécie de negociação perversa da memória -, quando parecia que tudo estava pronto, que não existiam mais problemas, quando as vozes dos familiares estavam isoladas e o Chile caminhava para ser do Primeiro mundo, a prisão de Pinochet em Londres gerou uma crise de memória e das feridas não fechadas do país. Essa ilusão no imaginário de que foi tudo superado arrebenta no primeiro instante.
Esse imaginário também é responsável pela manutenção de algumas estruturas como no Brasil onde ainda existe a prática da tortura? Se houvesse uma memória verdadeira, ela poderia ajudar a corrigir essa herança maldita da ditadura?
Precisamos entender melhor a história, porque esses padrões de repressão não são novos. Eles já estavam de alguma maneira estabelecidos. Um exemplo interessante é o trabalho de Elizabeth Lira, uma das principais psicólogas que trabalha com vítimas da repressão no Chile. Em determinado momento de suas pesquisas, junto com um historiador estadunidense, ela chega à conclusão de que é preciso entender os padrões de respostas violentas e repressivas do sistema político chileno. Ela escreve então dois livros sobre os ciclos de repressão e suposta reconciliação que se repetem ao longo da história. Ela quer dizer também que não se trata apenas das invenções do Pinochet, mas que estão instalados na história chilena esses padrões repressivos. Coisa que qualquer camponês da América Latina sabe. Porque em determinados momentos a repressão atinge os setores médios, mas sempre atingiu os pobres. É preciso saber da história, porque ela está sempre mitificada. Na Costa Rica, nós temos dirigentes ambientalistas que morreram em circunstâncias muito sofridas, temos fuzilamento político. A principal figura de Honduras, Francisco Morazán, foi executado num porto da Costa Rica.
Assim como dirigentes sindicais e comunistas foram fuzilados na Guerra Civil de 1948. Eu participei de uma mesa de debate com um historiador conhecidíssimo, que afirmou que na Costa Rica nunca houve um assassinato político. A história é sempre mítica. Então, para responder, posso dizer que as ditaduras se refletem na sociedade de hoje, mas elas não inventaram a história.
Qual o papel da sociedade nessa relação com o Estado? Por que se cobra do Estado isso?
Porque essa é uma maneira mais universal e supostamente representativa de contar a história. Não é a mesma coisa os grupos de familiares, afetados e seus aliados contarem o que aconteceu, e o Estado cumprir essa função. E é importante porque também legitima o que aconteceu, pois a tendência é ficar muito marginalizado, reprimido, silenciado. Ainda que conte simbolicamente. Se não passar pelo Estado não estamos falando de comissões da verdade.
Qual a sua opinião sobre a Comissão da Verdade que está sendo debatida no Brasil?
Sinceramente, só tenho informações genéricas, sem saber muitos detalhes. A minha primeira impressão é a de que, depois de tantos anos, na perspectiva dos direitos humanos, é um feito positivo. Como vai ser, como será organizado, eu não sei. Imagino quais são as polêmicas, mas não tenho as informações precisas. Mas suspeito de que se caminhar na linha das demais comissões da verdade, vai causar uma reação muito forte.
Também criará muitas expectativas que não serão cumpridas, mas depende muito do que o processo da comissão ajude a gerar, incluindo as críticas. O importante é que não seja um assunto isolado, um assunto de especialistas ou políticos. Deve ser o mais público possível.
Fonte: Carta Maior