Entrevista com Miguel Littín, diretor de Dawson Ilha 10
Terra Magazine – Em “Dawson”, o senhor oscila entre o preto e branco e o colorido…
Miguel Littín – Na natureza mesmo do relato cinematográfico, há uma mistura, uma química entre o documentário e o relato…
E a memória dos personagens.
É uma unidade estética para exprimir os acontecimentos que ocorreram e que estão na memória do protagonista.
O roteiro foi construído a partir do diário de um dos prisioneiros da ilha Dawson?
Sim, Sergio Bitar foi ministro de Minería e escreveu um diário que se chama “Isla 10”. Tomei como base esse diário e fiz uma pesquisa profunda com as pessoas que viveram essa experiência. Baseia-se nas coisas que aconteciam todos os dias: o frio, a chuva, a solidão, a comida, o humor, buscando uma linha muito delicada, com a memória sobre Allende. Porque Allende está sempre presente em todos. É um governo inteiro que foi transferido para um campo de concentração. A memória de Allende está sempre presente. É uma linha muito sutil: Allende, Allende, Allende… Incorporei essa linha dramática.
Por baixo dessa camada há uma violência e uma revolta dos derrotados…
Existe uma tensão, que está presente até hoje. Vivemos uma sociedade tensionada. Foi um momento que marcou a fogo.
O narrador se pergunta: “Onde erramos?”. O senhor arrisca uma resposta?
Não tenho resposta. Creio que existem muitas coisas. A economia, um ponto mais, um ponto menos… Mas este assunto da sociedade é muito complexo para responder ligeiramente. Por que erramos? Não tenho resposta. Toda sociedade erra, permanentemente. Para o personagem, no primeiro momento, o “onde erramos” se refere à possibilidade de conquistar aquilo que queríamos: fazer uma aliança com a compreensão do outro. Mas isso só faz ampliar, ampliar (a questão)… Não tenho resposta. Quem sabe, no próximo filme, apareça uma resposta. É o mesmo que a pergunta: Quantos Chiles existem dentro do Chile? Claro, há um Chile que o mundo quer: o Chile de (Pablo) Neruda, de (Gabriela) Mistral, dos poetas, de Roberto Matta… E há o Chile com os militares de Pinochet, que ainda está presente. No Chile há uma grande manifestação estudantil, que reivindica todos os direitos humanos progressistas e tolerantes. Ao mesmo tempo, há uma força policial que é tão repressiva quanto a de antes. Pensávamos que isso houvesse desaparecido, mas ela volta a aparecer, como os ratos de “A Peste”, de (Albert) Camus. Estavam escondidos por aí.
Que é uma questão presente em toda a América Latina. No Brasil, na Argentina… No filme, um dos generais chega a dizer: “Vocês não são mais chilenos, são prisioneiros de guerra”. É como se, de repente, brotasse um sentimento irracional?
Sim, é isso. Para eles, não eram mais chilenos. Há um personagem, o Orlando Letelier, que diz: “Eu sou chileno, nasci chileno e serei chileno”. Tiraram Orlando Letelier da ilha e o mataram em Washington (o diplomata e ativista político foi assassinado nos Estados Unidos, em 1976. A morte é atribuída à Operação Condor). Efetivamente, essa força não pensa. Essa força ofensiva que corresponde ao grande capital, aos grandes monopólios… Não pensa se é asiático, árabe, brasileiro, chileno, boliviano… Não. É um inimigo a ser extirpado.
Seu filme reflete muito melhor a ditadura chilena do que o cinema brasileiro conseguiu fazer com sua respectiva ditadura, iniciada em 1964. Os filmes brasileiros costumam ser rasos ao abordar esse período. O senhor percebe diferenças na forma como os países latino-americanos encaram suas mazelas políticas?
Eu diria que há um movimento no cinema que, de alguma maneira, persiste. Há cineastas em toda a América Latina fazendo documentários, ficções, e permanecem nessa linha. Não é um problema nacional. É universal. Em todos os países, diria, existe isso. No Chile, durante muito tempo, se dizia que não deveríamos falar disso, porque não era bom…
Pra pacificar o País.
Contudo, permanecemos insistindo, insistindo, insistindo… A estética é a ideologia. Esteticamente, vivemos um mundo que está tendo problemas. A profunda desigualdade da nossa sociedade tem um caráter de violência.
O cinema que o senhor faz é também uma resistência?
Em toda a América Latina há uma geração que está buscando uma poética da resistência. A política é do partido político. O cinema é uma estética, uma arte em que o homem tem que pensar, de acordo com os sentimentos. A arte cresce na medida em que se compromete com a realidade, com o homem, com sua relação com a natureza.
Alllende é uma figura fantasmagórica na cabeça dos ex-ministros presos na ilha. Para sua geração, no Chile, o que representa Salvador Allende?
Para mim, é um sentimento vivo. Não concebo a realidade emocional sem Allende. Porque está presente. Cada vez que defendo os direitos dos outros, cada vez que vejo um gesto de solidariedade, está ele presente.
No caso dos estudantes também?
Claro, no caso dos estudantes agora. A cada cinco bandeiras, quatro correspondem à imagem de Allende. Ele está absolutamente vivo. É incrível, maravilhoso, impressionante. E eles (os estudantes) foram educados para não saber o que significa Allende. Não é um culto à personalidade, mas é um culto aos valores e aos princípios democráticos, solidários, amorosos. É um movimento contra os lucros na educação e pelos direitos de todos.
O filme questiona a versão do suicídio de Allende. É sua convicção?
Questiono, sim. Penso que há uma lógica que não se explica através da tese do suicídio. Por que um homem fica sete horas resistindo? Das sete da manhã até as duas da tarde, lutando e resistindo, no La Moneda? Porque queria inscrever os princípios de sua luta na memória humana.
O suicídio não fazia sentido nesse contexto?
Não tem nenhum sentido. Se ele acorda às sete da manhã, sabe que há um golpe militar, toma um avião e se vai, não estaria dentro dos princípios que ele defendeu. Se ele se mata, tampouco estaria defendendo seus princípios. Ele era um homem desarmado. Ele não queria a via armada, queria a via desarmada, pelo voto, para defender os princípios da paz e da convivência humana. E o outro atua irracionalmente: queima, assalta e mata.
Seu próximo projeto será sobre Allende. É um documentário?
Não, uma ficção. É uma trilogia. Dawson, Allende… E a outra ainda não sei. É uma coprodução com Argentina, Chile, Venezuela e Brasil.
Fonte: Terra Magazine