Um bom dia para entrar para a história. A definição é do advogado Cezar Britto, ex-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), ao anunciar que conseguiu reverter a decisão liminar que impedia a aplicação da anistia aos camponeses do Araguaia. A perfídia, agora derrotada, era uma trama tecida por pessoas ligadas ao deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ), notório defensor e apologista dos crimes da ditadura instaurada no Brasil com o golpe de 1964, por meio de uma ação civil pública.

A decisão é da juíza federal substituta Marceli Maria Carvalho Siqueira, no exercício da titularidade da mesma 27ª Vara Federal. “A decisão reflete o novo momento político em que vive o Brasil. Esta decisão revoga a lógica do medo e da amnésia, substituindo-a pelo argumento da coragem e da verdade, extinguindo ações aventureiras”, diz Cezar Britto.

A indenização aos camponeses do Araguaia, vítimas das atrocidades cometidas pelos criminosos que reprimiram a Guerrilha que atuou na região para combater a ditadura, fora anunciada pela Comissão de Anistia, ligada ao Ministério da Justiça, em 18 de junho de 2009. Mais do que um ato de justiça para aqueles camponeses, a decisão representava o reconhecimento de que o sonho dos combatentes pela liberdade era uma realidade que abria perspectivas para um futuro de paz e justiça social.

Ao lado dos guerrilheiros, eles combateram o que de pior havia naquele tempo histórico. A negação das indenizações era uma afronta, uma atitude que corroborava os crimes ali cometidos. A suspensão das indenizações, portanto, tinha caráter ideológico e respaldava a apologia à violência cometida contra a população local. Era um atentado à democracia e aos mais elementares direitos humanos.

Expedida pelo juiz José Carlos Zebulum, da 27ª  Vara Federal do Rio de Janeiro, a limitar interditou um direito legítimo dos camponeses. A decisão do juiz baseou-se em uma ação popular provocada por um assessor do então deputado estadual pelo Rio de Janeiro, Flávio Bolsonaro (PP-RJ), filho de Jair Bolsonaro. Este mesmo cidadão ingressou com outra ação popular que suspendeu a anistia de Carlos Lamarca, concedida em 2007.

Perdas

A ação contra as vítimas da repressão à Guerrilha do Araguaia causou perdas irreparáveis, como o não recebimento das indenizações por camponeses que perderam suas vidas nesse período. Possivelmente, com os recursos que lhes pertenciam teriam condições de um melhor tratamento.

A esperança também era de que a concessão do benefício abrisse caminho para outras reparações. Tanto mais que na ocasião estiveram presentes em São Domingos do Araguaia, onde os resultados da anistia foram anunciados, o então ministro da Justiça, Tarso Genro, o presidente da Comissão de Anistia, Paulo Abrão, e a então governadora do Estado do Pará, Ana Júlia Carepa. Foi anunciada a anistia para 44 camponeses araguaianos.

Tarso Genro fez um pedido oficial de desculpas a todos os camponeses vítimas dos crimes cometidos pelo Estado a mando da ditadura. A então governadora Ana Júlia Carepa disse que aquela era uma data histórica, que resgatava o ideal democrático que moveu bravos patriotas que ali caíram.

Colheita

Para Paulo Abrão, a anistia era o reconhecimento pelo Estado de que ele errou contra cidadãos brasileiros. “Estamos falando de um episódio que envolveu a maior operação militar do Brasil desde a Segunda Guerra Mundial”, lembrou. “E foi uma operação do Brasil contra brasileiros”, afirmou. No total, o Ministério da Justiça recebeu 304 pedidos de anistia, sendo 26 de militantes e 278 de camponeses. Depois da caravana, restaram ainda 191 processos a serem analisados.

As indenizações variam de R$ 83 mil a R$ 142 mil. São valores irrisórios, que certamente não oneram o erário. “O juiz concedeu a liminar sem sequer ouvir previamente a Comissão”, disse Paulo Abrão.

Segundo ele, a Comissão de Anistia continuará a apreciar os demais requerimentos. “Temos ainda pedidos para estudar e apreciar e não suspenderemos nossas atividades regulares em matéria da Guerrilha do Araguaia. Nosso árduo trabalho resultou na colheita de mais de 300 depoimentos in loco, filmados e gravados, na região do Araguaia em tr~es incursões que lá fizemos em 2008 e 2009, acompanhados de convidados da sociedade civil, de outras áreas do governo e do movimento dos perseguidos políticos”, destacou.

Ilações

Na decisão, a juíza Marceli Maria Carvalho Siqueira diz que “uma leitura atenta da petição inicial revela que os argumentos deduzidos pelo Autor Popular padecem de coerência lógica, que falta comprovação quanto aos fatos narrados, e evidenciam, ademais, forte viés político-ideológico que é absolutamente incompatível com o instituto e com os objetivos constitucionais da ação popular”.

Segundo ela, “em primeiro lugar, observa-se que o Autor Popular fundamentou suas teses em meras ilações retiradas de reportagens e notas publicadas na imprensa, sem o necessário embasamento jurídico e que foram utilizadas para a construção de uma tese genérica e desconexa, de modo a sustentar simples ponto de vista pessoal do Autor Popular e sua discordância em relação às políticas adotadas pelo Poder Público no assunto da anistia política àqueles que tenham sido mortos ou, de alguma forma, prejudicados durante os anos de repressão política”.