Especialistas: crise do capitalismo está apenas começando
O tema foi “A crise do capitalismo e o desenvolvimento do Brasil”. Participaram dos debates estudiosos desta questão, que contribuíram para lançar luzes sobre o diagnóstico e as saídas para o enfrentamento da crise. Nomes destacados estiveram no seminário como os dos economistas Luiz Carlos Bresser Pereira, Maria da Conceição Tavares, Carlos Lessa, Theotônio dos Santos, Arno Augustin, Ricardo Bielschowsky, Ricardo Carneiro, Marcio Pochmann, Wilson Cano e Nelson Barbosa.
As opiniões de Maria da Conceição Tavares
Na primeira mesa, mediada por Carlos Siqueira, presidente da Fundação João Mangabeira e primeiro-secretário Nacional do PSB, Maria da Conceição Tavares abriu o debate comentando que o governo de Bill Clinton, nos Estados Unidos, representou um ponto importante para se entender como a crise eclodiu. Ele fez uma política supostamente keynesiana interna, mas levou ao limite do paroxismo a desregulamentação do sistema financeiro, explicou a professora. Foi quando a oligarquia financeira ganhou para valer, disse ela. A riqueza tomou forma líquida, em vez da forma clássica, analisou.
O volume de derivativos financeiros, títulos que eles inventaram, deu lugar à crise, que começou no setor imobiliário. Emprestaram a pessoas que não possuíam renda para pagar. Renovaram os empréstimos, renegociaram as dívidas e ainda deram mais dinheiro emprestado. Obviamente, na hora do vamos ver, quando a bolha dos imóveis estourou, apareceram os títulos financeiros podres. Ninguém pagou coisa nenhuma, e até hoje o setor financeiro da habitação não conseguiu se recuperar. A construção civil, que era um pilar do crescimento americano, está fragilizada.
A crise no sistema imobiliário levou a um aperto de crédito no mercado interbancário porque os demais bancos compraram derivativos podres. Todos foram atingidos. Com a desregulamentação, não existe mais separação entre bancos de investimento, banco comercial ou de qualquer outro tipo. Cada um faz o que quer, indignou-se Maria da Conceição Tavares. A crise do mercado interbancário acabou atingindo os outros bancos, que estavam muito expostos tanto em termos de crédito, que bateu recordes para as famílias, empresas e governo, explicou.
Segundo Maria da Conceição Tavares, criou-se uma situação patrimonial expostas, porque muitos ativos estavam podres. Quando ocorreu a quebra do Lehman Brothers, o sistema financeiro da habitação semi-público das instituições Fannie Mae e Freddie Mac já estava em crise, socorrido pelo Tesouro. Como o mesmo socorro não era permitido ao setor privado, o problema foi empurrado para o Federal Reserve (Fed), o porta-voz dos bancos, explicou a professora, que engoliu os títulos podres.
O resultado de tudo isso, disse Maria da Conceição Tavares, foi uma enorme desvalorização do dólar, que, mesmo assim, manteve-se como moeda dominante em matéria de reserva bancária porque não existe alternativa. O euro em crise não pode ser seu substituto. A tentativa do Fundo Monetário Internacional (FMI) de criar um cesta de moedas com o nome de Direitos Especiais de Saque (DES) foi bloqueada pelos Estados Unidos. E o yuan, apesar de a China ser um poder financeiro que serve de escora para a dívida norte-americana, não é uma moeda internacionalizada, conversível.
Segundo a professora, para isso se agüentar alguém precisa bancar a dívida dos Estados Unidos, no caso a China e o Japão, com mais de dois trilhões de dólares em títulos da dívida pública americana. Existe uma encrenca, constata. Qualquer reforma monetária mundial não está à vista porque os Estados Unidos não querem.
Mas o susto deles passou e agora está na Europa, apesar de não ser um problema só europeu. E lá o problema ganhou novos ingredientes. Segundo Maria da Conceição Tavares, o neoliberalismo anterior, da década de 1990, era favorável ao crescimento do G7. Agora, é dramaticamente regressivo. O que eles estão fazendo na crise européia, explicou, em matéria de ajuste recessivo, é um completo disparate. A Alemanha tem muita culpa nessa situação, afirmou, e ainda vai caro por essa “brincadeira”. Se o euro estourar, vai ser na cara deles também, enfatizou a professora.
A situação dos emergentes, disse Maria da Conceição Tavares, merece considerações específicas. Na América Lativa, os países mais atingidos foram o México e a Venezuela, por conta das suas demandas internacionais ligadas aos Estados Unidos. Os Bric, afirmou, particularmente os asiáticos, tiveram uma desaceleração bem menor. A China e a Índia praticamente não sofreram o impacto da crise. Na América Latina, a queda média foi de 1.8% – o Brasil ficou um pouco abaixo, com 1.2%.
Outro problema, constatou Maria da Conceição Tavares, é a recuperação do crescimento. Os Estados Unidos estão com uma recuperação precária porque não podem recorrer aos instrumentos convencionais, como a expansão do financiamento público e a oferta de crédito. Sem a expansão do setor público e sem o crédito para desempenhar um papel ativo, a economia rasteja. Segundo ela, o que aparece como cenário possível é uma prolongada estagnação com deflação. Nesse cenário, explicou a professora, os Bric têm a possiblidade de usar o mercado interno para expandir suas economias.
Na crise européia, a discussão é: mantém ou não o euro? Segundo Maria da Conceição Tavares, a esquerda quer manter a moeda única e a direita não. A direita pretende adotar moedas nacionais para permitir a desvalorização da dívida, o que restabeleceria na Europa o clima da década de 1920, que precedeu a Segunda Guerra Mundial. É uma coisa muito problemática, constatou. As entidades sindicais, por sua vez, segundo a professora querem ações vigorosas contra os mecanismos financeiros até porque a crise é cada vez mais contra os trabalhadores. Pela primeira vez, afirmou, desde o começo do século XX, há rebaixamento do salário nominal.
A América Latina, disse Maria da Conceição Tavares, está em uma situação intermediária para resistir à crise. O Brasil tem vantagens comparativas em termos de recursos naturais, bancos públicos, mercado interno grande e pequena dependência externa. Pela primeira vez, lembrou, uma crise internacional não resultou, no Brasil, em uma crise da dívida externa, desde o século XIX.
Com o cenário que está se criando, Maria Conceição Tavares recomendou um certo protecionismo, sobretudo frente à China. Como o gigante asiático não tem mais chance de aumentar as exportações para a Europa e os Estados Unidos, e as exportações são um componente de crescimento importante, a China busca outros mercados. Ela se vira para o mercado interno, mas é um recurso que não substitui o dinamismo externo. Em síntese, disse a professora, a saída da rosca da crise não é previsível.
As opiniões de Luiz Carlos Bresser-Prereira
Luiz Carlos Bresser-Pereira falou em seguida e disse que a crise do euro é uma continuação da crise financeira global de 2008. É pelo menos tão grave como a de 1929, causada essencialmente pela fé neoliberal e neoclássica na capacidade ilimitada dos mercados se auto-regularem, afirmou. Essa foi a causa mais geral. A adoção de uma teoria econômica neoclássica e de uma ideologia que se fundamenta nessa pretensa ciência para desregular todo o sistema financeiro, que estava razoavelmente bem regulado, desencadeou a crise. A crise de 2010 é novamente causada pela crença no neoliberalismo e nessa mesma teoria econômica.
É preciso ficar claro, afirmou Bresser-Pereira, que a crise global de 2008 não acabou. “Se olharmos para as economias americana, inglesa, ou japonesa, os país ricos, enfim, vemos que eles estão com altas taxas de desemprego, taxas de crescimento baixíssimas e ameaçados sempre de uma nova recessão”, disse. “De forma que estamos longe de ter resolvido o problema de 2008”, enfatizou. Mas agora o olho do furacão da crise é o euro.
Segundo ele, a crise financeira global de 2008 foi bancária, decorrente de um endividamento muito forte com derivativos altamente tóxicos. Foi um sistema de especulação e fraude muito violento praticado por bancos, e que envolveu o endividamento das famílias americanas, sem aumento de salários havia trinta anos. Mesmo nessa condição, as famílias norte-americanas conseguiram generosos créditos para manter a demanda interna razoavelmente aquecida. E ai, fraudadas pelo sistema financeiro, quebraram, constatou.
Bresser-Pereira disse que a crise financeira global está fundamentalmente relacionada ao neoliberalismo e ao processo de financeirização, o processo de criação de riqueza fictícia dos rentistas para os quais os bancos financistas operavam. Agora, no caso específico da crise e do euro, ela tem uma dupla natureza. De um lado, é uma crise fiscal dos Estados, que estavam razoavelmente equilibrados até 2008. No caso da Irlanda, por exemplo, a dívida pública era de 30% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2005 e o país passava por um ajuste. Em 2007, ela baixou para 27%. Aí veio a quebra dos bancos, socorridos pelo governo, e a dívida pública, no final de 2010, era de 99% do PIB.
Segundo Bresser-Pereira, isso mostra muito claramente de onde saiu a dívida pública. Os Estados se endividaram para socorrer os bancos e os mercados financeiros perderam a confiança na sua capacidade de pagamento. Como conseqüência, as taxas de juros começaram a subir. É uma situação gravíssima, constatou. Essas taxas de juros altas são absolutamente insustentável, do ponto de vista fiscal.
Outra questão é o problema cambial, disse. Esses países que estão em crise tiveram déficits públicos pequenos, mas grandes déficits em conta corrente. A Alemanha tem grande responsabilidade nessa questão, disse Bresser-Pereira. O problema decorre do capitalismo corporativismo alemão, que existe desde 1974. É um sistema de acordo em que os grandes sindicatos fazem acordos com as grandes empresas, com a mediação do governo. Quando chegaram os anos 1990, no final da integração da Alemanha Oriental, a concorrência da China tornava-se cada vez mais forte e os alemães fizeram um desses acordos.
As empresas não davam aumentos de salários, mas garantiam o emprego. E assim a competitividade em relação à China cresceu. A Alemanha tornou-se o maior exportador do mundo. Mas foi uma medida que afetou os demais países da zona do euro, que continuaram aumentando os salários de acordo com a produtividade, às vezes até um pouco mais. A taxa de câmbio implícita desses países se apreciou. Não existe taxa de câmbio oficial na zona do euro. Ela é implícita, segundo Bresser-Pereira, definida pela relação salário-produtividade. Esses países então entraram em uma fase de déficit em conta corrente muito grande frente a Alemanha, a China e a outros países. Isso implica em endividamento não sustentável das famílias, das empresas e dos bancos.
Bresser-Pereira afirmou que a natureza mais profunda da crise européia é de soberania monetária. Uma coisa muito séria, enfatizou. “Ou você é uma nação ou não é”, disse ele. “Ou você tem autonomia e decide sobre sua vida, ou fica na mão dos outros. Fica na mão dos estrangeiros, dos mais poderosos, daqueles que vão dizer para você o que fazer. E você abaixa a cabeça e faz. Não há nada pior para um país”, afirmou. Para garantir a soberania, segundo Bresser-Pereira, cada país precisa da sua moeda nacional.
O países do euro, quando fizeram o Acordo de Maastricht, trocaram as suas moedas nacionais por uma moeda estrangeira e perderam a soberania monetária. Com a moeda nacional, é possível emiti-la e desvalorizá-la, como fizeram os ingleses e os norte-americanos. Segundo Bresser-Pereira, para sair da crise a solução seria o Banco Central Europeu (BCE) emitir dinheiro para comprar os títulos e com isso abaixar a taxa de juros e reequilibrar o sistema. Mas isso envolveria, no plano político, o aumento do poder central.
Quando esses países fizeram o Acordo de Maastricht, partiram do princípio neoliberal mais geral em relação à política econômica que é o de que o setor privado está sempre em equilíbrio. O único problema é o setor público. O mercado é auto-regulável. Mas a crise é totalmente do setor privado. Bresser-Pereira explicou que o Acordo de Maastricht estabeleceu o limite de 3% de déficit público, mas não houve nenhuma preocupação com o setor privado. Também não foi estabelecido um limite de déficit em conta corrente, que reproduz as dívidas dos setores público e privado, toda a dívida do país. Foi aí que a coisa arrebentou, constatou.
Sobre o Brasil, Bresser-Pereira disse que o país está razoavelmente bem. A crise pode ser uma oportunidade, como foi a de 1929, que permitiu o desencadeamento da industrialização brasileira. A análise de Celso Furtado é clássica a respeito desse assunto, lembrou. O essencial foi a desvalorização do “mil-réis”, a moeda de então, que permaneceu por tempo suficiente para viabilizar a industrialização, depois foi completada com o sistema de tarifas e subsídios.
Mas, desde 1992, pelo menos, a taxa de câmbio se apreciou, o que é desastroso para a indústria nacional. Desde o início dos anos 1990, existe um processo firme de desindustrialização, disse Bresser-Pereira. Esse governo tem consciência disso, afirmou. É o primeiro que começa sabendo qual é o problema. Para pôr a taxa de câmbio no nível certo, segundo ele, é preciso também ajustar o nível dos juros, um procedimento que já começou. Agora o Brasil tem um novo Banco Central (BC), que não é mais o de Henrique Meirelles, dos banqueiros. É o BC nacional. Segundo Bresser-Prereira, a taxa de câmbio dever ser de pelo menos 2,30.
Ele encerrou criticando a idéia de crescimento baseada em poupança externa, com déficits em conta corrente. Isso é uma fraude, enfatizou. A forma fundamental pela qual vive os países hoje não é mais o comércio, que durante muito tempo se valeu das vantagens comparativas. Com a industrialização, quem começou a se preocupar em proteger a indústria com tarifas e outros recursos foram os países ricos. Agora, a exploração ocorre na área financeira.
As opiniões de Theotônio do Santos
Theotônio do Santos também participou da primeira mesa. Segundo ele, o capitalismo funciona como sistema cíclico mundial, de dez anos, quatro anos. Falou também da teoria dos longos ciclos de Kondratiev. São informações que demonstram que essa crise não é uma novidade, faz parte de uma tendência que se desdobra regularmente, segundo ele. Theotônio do Santos mostrou a variação do PIB, que foi uma das principais referências para a curva Kondratiev, para analisar as crises do século XX.
Segundo Theotônio do Santos, um dos aspectos mais interessantes desse processo é que a hegemonia neoliberal desenvolvida a partida da década de 1970 teve no governo do general Augusto Pinochet, no Chile, a primeira oportunidade de ser aplicada, produzindo a conexão fascismo-neoliberalismo. Segundo ele, essa associação pode parecer estranha, mas a história mostra que não. O período do nazismo e do fascismo foi extremamente liberal, com forte intervenção estatal. Para Theotônio do Santos, o neoliberalismo tem uma discurso diferente da prática. Ele aceita permanentemente a intervenção estatal a serviço do grande capital, particularmente o financeiro. É contra o papel do Estado nos investimentos sociais, nas questões públicas. Outra característica comum entre o neoliberalismo e o fascismo é a aplicação de cima para baixo, com uma associação muito forte ao terror.
Theotônio do Santos também explicou que as políticas deflacionárias e de queda da inflação da década de 1990, sobretudo a partir de 1994, estavam no quadro internacional de deflação, como mostra um gráfico da Cepal, apresentado por ele. “É uma queda violenta”, enfatizou. O Brasil manteve-se com uma inflação em torno de 8%, chegando ao momento em que se iniciou o governo Lula, em 2002, com 12%. Era uma das maiores inflações do mundo. Para piorar, era combinada com uma política de câmbio fixo.
Segundo ele, a partir da década de 1990, sobretudo de 1995, a inflação mundial se estabilizou, pelo menos entre os países desenvolvidos, em um patamar inferior a 5%. Os dados mostravam uma combinação entre altas taxas de crescimento e baixas taxas de inflação. São dados que provam a falsidade do argumento de que a inflação é resultado do pleno emprego, do crescimento econômico. Um caso extremo é o da China, lembrou Theotônio dos Santos, que tem uma taxa de crescimento superior a10%, em trinta anos, com inflação baixa.
Theotônio dos Santos também mostrou números que apontam as economias mais desenvolvidas com crescimento menor nos últimos anos. Segundo ele, trata-se de um cenário mais ou menos previsível. Com a crise inaugurada em 2008, a China se mostrou em melhores condições para enfrentar a situação com taxa de crescimento relativamente alta. A explicação é que a economia funciona em torno de grandes paradigmas tecnológicos. Na década de 1980, ocorreu uma mudança nesse paradigma com a robotização.
Os japoneses, com um investimento muito forte em inteligência artificial, conseguiram pôr o robô no processo produtivo, diretamente nas linhas de produção em uma série de outras atividades, o que permitiu um salto tecnológico extremamente radical. Na década de 1980, segundo Theotônio dos Santos, o Japão tinha 70% dos robôs. Na década de 1990, os Estados Unidos e a Europa chegaram a ter entre 34% e 35%, enquanto o percentual japonês reduziu-se drasticamente. Houve uma generalização desse novo paradigma tecnológico, enfatizou.
Uma das características desse processo, disse Theotônio dos Santos, é a diminuição do tempo de trabalho necessário. A robotização eliminou grande parte da mão de obra necessária. O preço, pensado em termos marxistas na relação com o valor, deve cair na medida em que o custo da produção se reduz. Citou o exemplo da China, que com o Estado reduziu os preços de forma “colossal”. Segundo ele, o Brasil terá de enfrentar uma produção chinesa a preço de custo, com alta tecnologia. O país pode competir se tiver capacidade de incorporar essas novas tecnologias, o que não é impossível. Theotônio dos Santos disse que os custos de capital constante – máquinas e euipamentos, basicamente – são relativamente baixos.
Para Theotônio dos Santos, o Brasil deve pensar seriamente em uma política de investimentos em educação, ciência e tecnologia. É preciso haver uma conscientização a respeito desses assuntos, só possível com o domínio dos meios de comunicação. Sem eles, não se pode fazer uma política de educação, afirmou. O povo brasileiro está aprendendo a não se educar e a não querer se educar. “Temos de enfrentar essa problemática para entrar em um fase de aproveitamento do potencial que temos, que é enorme”, concluiu.
As opiniões de Carlos Lessa
Carlos Lessa foi o quarto a falar e destacou que só é possível comentar o desdobramento da crise pela visão intuitiva, porque ela apresenta muito opacidade em relação ao futuro. A única coisa possível de afirmar, segundo ele, é que se deve trabalhar para não haver uma solução via conflito mundial. Disse que espera que a situação no Oriente Médio não sirva de estopim para o “Armagedom”. Segundo ele, não é à toa que a coruja é a ave símbolo do intelectual. Ela voa muito bem ao entardecer e à noite com enorme precisão. Porém, é incapaz de perceber o dia. O que se pode afirmar com absoluta convicção, disse Carlos Lessa, é que os dez anos à frente são impossíveis de serem previstos com razoável precisão.
Um dos ingredientes que faz a diferença, disse, é a dimensão geopolítica. Para ele, a denominação Bric é inteiramente absurda porque não consegue encontrar nem um denominador comum entre Brasil, Rússia, Índia e China. A não ser grandes territórios e populações robustas. No mais, são estruturas, padrões organizacionais, cenários institucionais e protagonismos radicalmente diferentes. São estruturas, no sentido mais profundo da palavra, afirmou, completamente diferentes. Desde o grau de urbanização até padrões culturais.
Segundo Carlos Lessa, as palavras saem de moda, mas o império continua sendo o império. O orçamento militar norte-americano é maior do que o somatório dos nove que lhe sucedem. Este ano está aprovado o maior orçamento militar de todos os tempos nos Estados Unidos. Culturalmente, disse ele, não precisa dizer que o sonho do esperanto está se convertendo na hegemonia do inglês. As pautas culturais norte-americanas são de certa maneira absolutamente universalizadas.
Segundo ele, não existe nem G7 nem G20. “Se procurássemos alguma coisa, seria G2. Um matrimônio entre os Estados Unidos, o império, e uma periferia chamada China. É um casamento absolutamente sólido, porque ao mesmo tempo que o superávit se forma os chineses o aplicam em reservas do Tesouro americano. Eles podem até brigar, porém vão dormir juntos”, ironizou. A polaridade só será resolvida quando a cama quebrar. Mas como é uma coruja, não pode saber quando. Não tem dúvida que a cama acaba quebrando, mas prognosticar no momento a decadência do império é uma “bobagem monumental”. Terminou dizendo que a crise pode fazer emergir um mundo diferente. Mas é preciso ter bola de cristal para dizer o que será, concluiu.
Posição dos partidos de esquerda
Após as exposições, representantes dos partidos das fundações organizadora do seminário comentaram os temas debatidos e fizeram perguntas à mesa. Renato Rabelo, presidente nacional do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), falou que faria algumas perguntas e aproveitaria a ocasião para “instar” os debatedores sobre algumas questões. Disse que a crise mundial deveria ser analisada no plano geoeconômico e geopolítico. “É muito difícil compreendermos a profundidade, a dimensão e a perspectiva da crise atual sem o fator geopolítico”, afirmou. Segundo Renato Rabelo, a economia se reflete sempre na política.
Na primeira fila: Ricardo Carneiro, Elói Pietá, Rui Falcão e Renato Rabelo. Foto: Naldinho Lourenço
Para ele, a crise atual é estrutural e sistêmica. Não é uma crise qualquer, enfatizou. No plano geopolítico, é preciso considerar o sistema de forças mundial, que não é estático. Existe o imperialismo, como disse Carlos Lessa, mas, questionou Renato Rabelo, ele não é eterno. “Consideramos que há um processo de declínio progressivo, relativo, histórico dos Estados Unidos. Ou, como diz o grande historiador Eric Hobsbawm, entramos na era do declínio dos Estados Unidos. Olhem como a coisa é vista do ponto de vista histórico! E, na história, quando se diz que entrou na era do declínio dos Estados Unidos, pode ser um século”, afirmou.
Segundo o presidente do PCdoB, a idéia do declínio é importante porque quando uma potência percebe que está perdendo terreno ela se torna mais agressiva, apela para a defesa das armas. Os Estados Unidos se armam cada vez mais para manter a todo custo a sua hegemonia mundial. Não é por acaso que o mundo vive uma situação em que os Estados Unidos abrem fronteiras de guerra constantemente. A natureza, a essência da sobrevivência do imperialismo, é a guerra.
Para Renato Rabelo, ao mesmo tempo ocorre um ascenso de outros pólos. O exemplo mais notável é a China. Esses pólos dinâmicos que vão surgindo como resultado da crise leva a transição a uma velocidade maior. São países em vias de desenvolvimento. Aí entra a questão brasileira. Paradoxalmente, surge uma oportunidade para o Brasil, como foi na década de 1930, com Getúlio Vargas. O país pode buscar caminhos próprios, alternativas próprias.
É uma oportunidade para o Brasil mudar sua política macroeconômica. Em uma situação como essa, ela está defasada. “Propomos inclusive uma pacto do trabalho com a produção. Trabalhadores e empresários nacionais”, afirmou. Segundo Renato Rabelo, o Brasil precisa atentar também para a inovação tecnológica. “Não queremos uma indústria média, uma manufatura que não tenha grande valor agregado para a exportação. Temos de incorporar nichos de tecnologias que são fundamentais”, destacou. Outro ponto importante, lembrou Renato Rabelo, é a educação. Segundo ele, o governo Lula abriu caminho com as escolas técnicas e as universidades. “Concordo com o professor Lessa, daqui a dez ninguém sabe o que vai acontecer. Mas é importante ver as tendências. Aí se pode dizer alguma coisa”, concluiu.
Rui Falcão, presidente nacional do Partido dos Trabalhadores (PT), disse que não concordava com a última parte da intervenção de Renato Rabelo e comentou que não vira nenhuma alusão ao tratamento que a crise recebe em relação ao regime democrático. Citou os exemplos da Itália e da Grécia. O Brasil e a América Latina têm dado um tratamento diferente, afirmou.
Disse que o Brasil apresenta desenvolvimento do Brasil a partir do governo Lula com as mudanças estruturais. Citou como exemplo as mudanças no mundo do trabalho e a inclusão social. Segundo Rui Falcão, a crise repercute no Brasil, mas ainda não é possível ver a sua dimensão. O fato é, disse ele, que o país está ultrapassando o período mais crítico que os outros países viveram. A taxa de desemprego é inferior a 6% e vem sendo adotadas várias medidas no campo da inovação tecnológica. O governo também está investindo pesado em educação. São, disse Rui Falcão, proteções, barreiras para enfrentar a crise.
Rodrigo Rolemberg, senador pelo PSB-DF, disse que o debate começou com a crise do euro, mas a China monopolizou grande parte da discussão. Segundo ele, com a crise na Europa certamente haverá redução no mercado interno daquela região, o que fará a China modificar a sua estratégia. O potencial exportador deverá fazer o país asiático agir com mais agressividade em relação aos demais mercados compradores de produtos manufaturados, como o Brasil.
Lembrou que o Brasil incorporou o discurso da ciência, da tecnologia e da inovação, aumentou, ainda que de forma insuficiente, os investimentos em formação de recursos humanos, mas nos últimos anos a participação dos produtos manufaturados na pauta de exportações vem se reduzindo drasticamente. Até a agricultura é extremamente dependente de insumos externos, especialmente as sementes, hoje nas mãos de grandes corporações internacionais. Comentou ainda a situação climática, que, com a crise, tende ser penalizada pela menor disponibilidade de recursos.
Leonardo Zumpichiatti, representando o PDT, comentou a trajetória das crises no século XX. Segundo ele, o excesso de liquidez gerou os dólares na economia e descambou na crise iniciada em 2008. “Até porque a banca queria lucrar”, analisou. Segundo ele, as economias se encontram em uma encruzilhada.
No Brasil, grande parte das riquezas está sendo drenada por intermédio do pagamento da dívida pública, recursos que poderiam ser destinados à educação, ao desenvolvimento científico e tecnológico, que faria frente a todos esses desafios. Questionou também o papel da educação, que reproduz conhecimento de fora, segundo ele uma vergonha dentro da academia, principalmente nos cursos de economia. O Brasil deveria fazer como a China, que disputa o processo tecnológico de ponta, concluiu.
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