“O debate sobre as opções do desenvolvimento exige hoje uma reflexão prévia sobre a cultura brasileira. Devemos começar por indagar as relações que existem entre a cultura como sistema de valores e o processo de desenvolvimento das forças produtivas, entre a lógica dos fins, que rege a cultura, e a dos meios, razão instrumental inerente à acumulação. A política de desenvolvimento deve ser posta a serviço do enriquecimento cultural”, dizia Furtado.

Os presentes destacaram que pensamento do mestre continua “extremamente atual”, já que o subdesenvolvimento, segundo Furtado, pode ser expresso também pela geração de excedente a partir da exportação de produtos primários e da diversificação do padrão de consumo baseada na importação, sem desenvolver as forças produtivas, algo que voltou a sobressair na economia do Brasil.

Hegemonia

O professor João Antônio de Paula, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), por exemplo, observou que cada período histórico é regido por um conjunto hegemônico de valores, legitimado moral e culturalmente pela classe que naquele momento tem maior poder de coerção: “Não basta vencer, é preciso também convencer. A hegemonia implica combinar repressão, convencimento e legitimação”, disse.

De acordo com De Paula, o Brasil teve três momentos a destacar como períodos de uma determinada hegemonia a partir do século XIX: “a modernização institucional de cunho liberal; o movimento modernista, na década de 20; e, na segunda metade do século XX, a busca da superação do subdesenvolvimento”.

Os três nomes mais relacionados, segundo o professor da UFMG, a esses períodos distintos são, respectivamente, o abolicionista e liberal Joaquim Nabuco; o modernista Mario de Andrade e o desenvolovimentista Celso Furtado.

“A dimensão cultural é fundamental na definição dos padrões de consumo, que, por sua vez, organizam a visão de mundo dos indivíduos. Neste sentido, as utopias são vistas por Furtado como uma antecipação, que amplia horizontes”, destaca De Paula, argumentando que a utopia dos brasileiros foi, no terceiro período elencado pelo professor da UFMG, atingir o pleno desenvolvimento.

“Para tanto, Furtado acreditava que a riqueza cultural de nosso povo deve ser um importante aliado para chegar ao desenvolvimento sem dependência”, destaca.

Já a absorção de valores exógenos na área da economia (produtivos e tecnológicos) seria uma marca da dependência: “É preciso evitar a mimetização dos padrões de consumo para ter autonomia”, defende. De Paula, admitindo que Furtado era visto como um reformista, passando a idéia de que estaria longe de uma postura revolucionária, de ruptura: “Mas a luta de classes é central em sua obra. Isso fica mais visível se destacarmos a dimensão cultural”, salienta.

Construção teórica

Já Bruno Borja, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), argumenta que o núcleo central do desenvolvimento estaria na tecnologia. Esta, por sua vez, é influenciada e influencia no âmbito não material, na visão de mundo e, portanto, na dimensão cultural: “Ao definir subdesenvolvimento como objeto de estudo, Furtado amplia o escopo de análise”, sintetiza Borja.

Para o professor da UFRJ, pode-se dizer que o desenvolvimentismo de Furtado começa no Pós-Guerra, em 1945, e se mantém presente até 1989. Nesse intervalo, pode-se distinguir três períodos marcantes: entre 1945 até 1964, quando Furtado reúne elementos para sua Teoria do Desenvolvimento; de 1964 até 1974, tempo de controvérsia em torno da Teoria da Estagnação, e o intervalo que vai de 1974 a 1989, quando o intelectual conclui que a industrialização pura e simples não resolveria a questão do subdesenvolvimento, diferentemente do que acreditava a Comissão Econômica para a América Latina (Cepal).

“Neste último período, Furtado aperfeiçoa sua teoria para concluir que, no contexto da dependência, a industrialização apenas aprofunda a concentração da riqueza. Ou seja, sem soberania cultural, com a mera mimetização da produção das nações mais avançadas, o desenvolvimento não passaria de um mito”, diz Borja.

Ele acrescenta que, ao observar a dimensão cultural do desenvolvimento, Furtado concluiu ser ela composta por uma base material aliada à estrutura ideológica: “Para tanto, valeu-se da antropologia, para questionar o que é transformação, efetivamente, e para analisar a interligação entre as culturas material (tecnologia) e não material. Esta última seria influenciada pela primeira”, afirma.

Dependência tecnológica

“Em 1974, Furtado aperfeiçoa a ideia de modernização e a dependência desta como expressão do subdesenvolvimento, expresso na geração de excedente a partir da exportação de produtos primários e da diversificação do padrão de consumo baseada na importação, sem desenvolver as forças produtivas”, prossegue o professor da UFRJ.

Nesse contexto, subdesenvolvimento, para Furtado, se materializaria no acesso apenas indireto à civilização industrial:

“A modernização a partir da pura e simples compra de tecnologia determina uma assimilação da cultura material que vem de fora, forçando também uma aceitação da cultura não material”, frisa Borja.

Transnacionais e legislação

O professor da UFRJ diz ainda que as multinacionais são agentes da globalização dos padrões culturais: “E a indústria cultural era destacada por Furtado como fator de desenvolvimento dependente”, completa Borja.

Por sua vez, Gilberto . tratou da “organização jurídica dos espaços de acumulação”, mostrando que o Estado é vital no processo de acumulação capitalista: “O Direito, como mediador das relações econômicas e sociais tem duas vertentes: a da Economia organizada, que traduz o macro, como pensava Furtado, e a do individualismo radical, baseado no proprietarismo, que marcou o neoliberalismo dos anos 90. Esse período trazia a idéia de que a escassez exige máxima eficiência com mínimo de gasto, numa perspectiva microeconômica”, lembra.

“Com Furtado, o Direito Econômico envolve transformação social, não se limita ao processo produtivo, mas também à apropriação do excedente gerado por ele. Nesse sentido, o aumento da desigualdade inviabiliza a própria democracia”, afirma, lembrando que o Estado precisa aplicar políticas de repartição do excedente para ampliar a base social para o avanço das instituições democráticas.

“O que é feito com o excedente econômico é uma radiografia da sociedade. E, para Furtado, as normas jurídicas definem a distribuição da riqueza”, analisa, frisando a importância das idéias do economista para a Constituição Cidadã de 1988, algo pouco comentado, segundo ele.

“O pensamento de Celso Furtado se mantém totalmente atual, limitado apenas pela idéia de que é possível conciliar soberania, democracia e mercado”, finaliza Plínio de Arruda Sampaio Júnior, economista da Universidade de Campinas (Unicamp).

___________

Fonte: Monitor Mercantil