O fascismo de mercado
A crise econômica capitalista, em especial nos Estados Unidos e na zona do euro, começa a dar lugar a golpes e contra-golpes entre os seus principais atores. Entre eles o receituário apresentado liturgicamente desde os anos 1990. As reuniões de cúpula que os chefes de governo ocidentais realizam não se caracterizam pelos seus aspectos resolutivos, mas pelo vazio de suas proposições.
Ao propor que os orçamentos dos países sejam aprovados primeiro pela UE, antes de ir para seus Parlamentos – com punição a quem não cumprir metas de redução de dívida e déficit – a chanceler alemã Ângela Merkel deixa claro que soberania nacional é um conceito em desuso, uma velharia a ser removida. Frente à crise imposta pelos princípios liberais globalizantes, notadamente o “salve-se quem puder” e o “que sobreviva o mais capaz”, que apareciam como mantras nos melhores manuais de desregulamentação, a única saída é a “fuga para frente” proposta pelos neoliberais radicais. Deixando governos de pés e mãos amarrados, a falsa solução passará pela perda de prerrogativas governamentais de conceber e executar políticas econômicas que atendam aos legítimos interesses dos países e dos povos.
Na verdade, chegou-se a fórmulas gerais que podem ser interpretadas de várias maneiras e que, de qualquer forma, não envolvem compromisso algum com qualquer esfera que não seja a do mercado. Insistir nas privatizações do que resta de estatal (quase nada), em ajustes fiscais, e no maior enfraquecimento do Estado, é consolidar o poder do FMI, do Banco Mundial, das instituições financeiras internacionais e a chantagem das agências de classificação de risco.
Todo cuidado é pouco para não tropeçar nas palavras e escorregar nos conceitos. Mas essas transformações e essas metamorfoses significam um “retorno” ao império das leis do funcionamento da economia mercantil- capitalista, temporariamente represadas por obra e graça da rebelião democrática do imediato pós-guerra, que ensejou a Grande Transformação.
Como recordou o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, “em sua essência, as práticas do Estado intervencionista e do Bem-Estar buscaram, por meio da aplicação política de critérios diretamente sociais, encontrar soluções para os problemas de satisfação das necessidades humanas e da vida decente para a maioria, negando, assim, as condições de existência impostas ao cidadão pela “ratio” do capital, cujo único propósito é acrescentar o seu valor.”
A vitória do reformismo liberal fez recuar as tentativas de domesticar a mercantilização universal e a concorrência sem quartel. Na Europa, a social-democracia passa a ocupar uma posição de centro-direita rasgando a máscara da “terceira via”, que fez grande sucesso e gerou expectativas em toda a esquerda do continente. Antes mesmo da crise do euro, os serviços públicos , como saúde, educação e transporte, conheceram uma considerável piora. Ainda no final do século passado, críticos de esquerda acusavam o então primeiro-ministro britânico Tony Blair de impor ao Reino Unido um “thatcherismo” com rosto humano.
Quando o capital financeiro estabelece sua supremacia, a cidadania é suprimida. Os sistemas de crédito e os dispositivos do mercado passam a se encarregar dos desígnios despóticos do capital sobre a massa de trabalhadores e os países mais fracos. É isso ao que estamos assistindo no sul da Europa. Algo que, guardadas as devidas proporções, vivemos na América Latina durante duas décadas. Por meio de disciplinas e sanções, sempre legitimadas na grande mídia, o fascismo de mercado se instala.
Fora da política não há salvação. Como bem sabemos por aqui.
____________
Gilson Caroni Filho é professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), no Rio de Janeiro, colunista da Carta Maior e colaborador do Jornal do Brasil
Fonte: Carta Maior