Muitos simplesmente se deram por vencidos e desistiram de uma carreira no mundo das letras. Outros fizeram das recusas estímulos para se superar e escrever melhor. Esse parece ter sido o caso do escritor português José Saramago, morto em junho do ano passado. Em 1953, quando o único Prêmio Nobel da língua portuguesa tinha 30 anos e ganhava a vida como calculador de pensões na Companhia Previdente, seu romance “Claraboia” foi recusado por uma editora que nunca devolveu o manuscrito. Não seria seu livro de estreia. Seis anos antes, publicara, sem repercussão, “Terra do Pecado”.

Quatro décadas depois, a obra teria sido encontrada durante uma mudança e, diante da fama do autor, o editor lhe propôs publicar o romance. Saramago recusou, mas autorizou a família a fazê-lo após sua morte. Agora, o volume sai simultaneamente em Portugal e no Brasil e permite ao menos duas questões ou reflexões: por que a recusa do escritor em lançar o livro em vida? Teria sido ele mais uma vítima da incompetência de um editor? As respostas nos dois casos podem ser: a insegurança quanto à qualidade do texto fez o grande escritor da idade adulta vacilar e, sim, o editor tinha razão e “Claraboia” não deveria ir para as livrarias como estava.

O romance se passa num prédio de classe média baixa de Lisboa, onde mais de duas dezenas de personagens ocupam seis apartamentos, distribuídos em três andares. Ali, tipos dos mais diversos se relacionam com seus familiares, sem deixar de se interessar pela vida dos vizinhos e até de se intrometer com fofocas e intrigas. Um fio de angústia parece unir todos. E um tom de desespero também, quase claustrofóbico, em contraste com o título esperançoso da obra. Como o diálogo em que o sapateiro Silvestre chama a mulher, Mariana, para lhe perguntar se o relógio na parede está mesmo certo, enquanto espera ansioso, e sem nenhum motivo aparente, pelo inquilino Abel. Deseja apenas sua companhia num carteado – e desabafar a vida. Ou Lídia, que vive a esperar o amante rico que lhe dá uma vida confortável, mas incerta e insegura.

Saramago fragmenta essas vidas em momentos do cotidiano para mostrar certo fatalismo e dificuldade em se libertar de casamentos decadentes e infelizes, com casais que se recusam a romper com uma realidade imposta por certa moralidade – apesar de se tolerar uma amante como vizinha. São famílias de mulheres oprimidas por regras que o autor, com certa sutileza, pretende criticar, até com alguma veemência. O problema é que tudo isso aparece num emaranhado confuso de personagens, que intercalam capítulos, apresentados sem a vivacidade e a dramaticidade que grandes histórias exigem. Ele até tenta organizar essa teia de tipos tão comuns para o leitor, sem muito êxito, lá pela página 120.

“Claraboia” tem um caráter existencialista até interessante. Saramago, entretanto, escreveu um romance zeloso quanto ao rigor técnico, porém sem nenhuma ousadia de estilo – que muitas vezes faz lembrar “O Cortiço”, de Aluísio de Azevedo. Há um esforço de sua parte em construir uma narrativa convencional, legível, correta, dentro da tradição de Eça de Queiroz, citado por um dos personagens. O resultado não vai além da boa intenção de um escritor ainda em formação.

“Claraboia”

José Saramago Companhia das Letras 384 págs., R$ 46,00

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Fonte: Valor Econômico