O documentário “Carlos Marighella. Quem samba fica, quem não samba vai embora”, dirigido por Carlos Pronzato, fez sessões de estreia em Salvador (BA) dentro das comemorações de 100 anos de nascimento do revolucionário comunista. O diretor argentino vive em Salvador desde 1989 e se dedica ao cinema político, criando diversos filmes sobre figuras importantes, como Che Guevara ou Salvador Allende, além de abordar movimentos sociais e revoltas populares na América Latina.

Em entrevista à Caros Amigos, Pronzato conta como teve contato com a obra do revolucionário Carlos Marighella e sobre o processo de produção do filme.

 

Caros Amigos – Como aconteceu o seu contato com a vida e obra de Carlos Marighella?

Carlos Pronzato – Eu diria que o meu contato com a obra do velho “Mariga” foi bastante tardio. Moro na Bahia desde 1989, me dedico quase que exclusivamente ao cinema político desde final dos 90 e só fui ter esse contato mais intenso com sua obra política – e poética – há alguns anos, apenas quando comecei a aprofundar o meu interesse pelo período da luta armada na América Latina. Interesse que vem das minhas viagens de carona nos anos 80 pelo continente com uma mochila nas costas passando em muitos dos locais históricos onde essas lutas contra as ditaduras aconteceram. Locais onde retornei para realizar, por exemplo, o meu filme sobre o Che na Bolívia – Carabina M2, uma arma americana. Che na Bolívia. Então, já estava na hora de abordar esse tema aqui no Brasil e tinha, sem atentar para isso, nas minhas raízes na Bahia, um dos principais referentes da resistência armada no país. Outro contato e que talvez seja hoje apenas uma anedota é que estando em Montevidéu em 2002 comprei num sebo o Mini-manual do guerrilheiro urbano em espanhol, a obra mais conhecida internacionalmente do Marighella. Anos depois dei de presente ao Silvio Tendler que fez o primeiro filme sobre o Mariga – Carlos Marighella – retrato falado do guerrilheiro – e nesses dias que estávamos finalizando o filme, precisava urgentemente dele e não o tinha mais. Uma capa ótima, tudo vermelho com um revolver em fundo branco. Obra rara.

CA – O que te motivou a escolher o Carlos Marigelha como tema de um documentário?

CP – Além da proximidade do seu centenário de nascimento, algumas outras coisas. A primeira é que me identifico com a sua proposta de ação constante, a ação faz a vanguarda. Também, foi a tentativa de criar um vínculo nas minhas pesquisas entre Che, sua epopeia da Sierra Maestra junto a Fidel e o povo cubano e os seus reflexos na América Latina e especificamente no Brasil e nas suas organizações de luta armada.

Como meu interesse no Marighella é essa fase da sua vida, que acredito é a que o catapultou a ter a transcendência que tem na História do Brasil – sem diminuir em absoluto sua extensa trajetória de luta como um comunista de lei em outros períodos políticos nefastos do país que o levaram a penar anos nas prisões ditatoriais – para mim era como uma continuação dos meus estudos sobre o Che que morre em 1967, o mesmo ano que Marighella rompe com o Partido Comunista Brasileiro (PCB) para organizar o Agrupamento Comunista de São Paulo que derivará na Ação Libertadora Nacional (ALN).

O outro motivo e que seria o tema do documentário, mas que precisei abandonar depois, era seu perfil poético, um lutador social que encontrava nas letras outras armas de confrontação ao sistema da época. Houve muitos outros que abrigaram suas inquietações revolucionárias não apenas nas armas, mas também na poesia para alentar coragem e isso Marighella tinha de sobra. Como poeta, acredito que esse seja um ponto de fundamental importância na personalidade de Marighella, mas acabei quase nem tocando no assunto no documentário – pelo menos no material editado – abrumado pelo seu projeto político de tamanha grandeza e atualidade, talvez noutra oportunidade utilize esse material para uma outra abordagem dessa personalidade múltipla. Por enquanto transferi todo esse meu interesse pela sua veia poética escrevendo em paralelo à demorada construção do documentário um livro de poemas que está prontinho para ser ofertado á memória do do Marighella: Poemas sem licença para Carlos Marighella.

CA – Como ocorreu a produção do documentário, quais foram as dificuldades enfrentadas?

CP – A produção aconteceu dentro dos parâmetros e das dinâmicas da maioria das minhas produções, ou seja, remar contra um mar de dificuldades: primeiro não poder desenvolver um projeto dessa magnitude e responsabilidade histórica isoladamente de outros projetos já iniciados. Segundo, trabalhar com mínimos recursos, já que não apresentei projeto algum em instituição nenhuma e, portanto, depender de apoios vindos do mundo do trabalho, do mundo das mobilizações sociais e isso, além de ser bem pouco em relação a outras produções realizadas junto à iniciativa privada, também demora muito em aparecer. E em terceiro lugar, tudo isso provoca descontinuidade na elaboração do resultado final tanto é que só hoje, no início de dezembro, finalizamos o trabalho de 1 hora e 38 minutos. Esses são os ossos do ofício do cinema militante ou guerrilheiro como Marighella gostaria de ver. Já uma dificuldade inerente à elaboração foi a pouca literatura e material fílmico – nenhum – e fotográfico existente sobre o assunto em particular e sobre o geral da resistência armada à ditadura. Quanto ao elenco de entrevistados não houve nenhuma dificuldade de comunicação. Mas tive sim uma grande tristeza ao não poder entrevistar o Joao Falcão, baiano militante histórico do velho PCB, falecido no período da produção.

CA – Durante o período de produção, quais foram as lições aprendidas com a obra de Marighella?

CP – No “convívio” de quase dois anos com o tema, tive a oportunidade de conhecer uma época crucial da História deste país, estreitando relações com seus protagonistas que me esclareceram certas dúvidas da constituição das guerrilhas, das suas organizações e dos seus procedimentos de luta. As lições como diz a pergunta, estão sempre em processo, não se impõem simplesmente e com certeza muito do estudado nesse período foi confrontado com outras das minhas obras recentes e depoimentos históricos que constam dessas obras – como os do filme que fiz no Chile sobre Salvador Allende ou o das Madres da Plaza de Mayo que falam do período – o que constitui um rico material de reflexão para compreender melhor a América Latina daquela época e principalmente esta, que é para isso que nós cineastas militantes fazemos estes filmes, como ferramentas de ampla difusão da luta popular e do resguardo da memória, sem abandonar a importantíssima possibilidade de penetração junto ao mundo acadêmico, pelo menos no meu caso, e ao que este trabalho em particular se propõe. Talvez a lição maior fique por conta da atualidade da sua proposta de atingir transformações estruturais na sociedade.

CA – Qual a importância do lançamento de um documentário sobre o Marighella no ano de seu centenário de nascimento?

CP – Considero que a realização de documentários sobre Marighella e sobre a ALN – é importante disser que minha intenção foi não apenas abordar o Marighella senão a ALN e o contexto de enfrentamento à ditadura civil-militar – vem se somar aos novos estudos que aqui e acolá vem surgindo sobre este tema nos diversos campos do saber, novos livros, peças de teatro, etc. E a receptividade que haverá ao tema no período do centenário será importante para popularizar e lançar luzes sobre um dos atores da época – os diversos grupos da resistência armada – do qual pouco ou nada se fala nos planos educacionais governamentais principalmente no segundo grau. Tudo o que for feito nesse sentido, será de grande valor para as futuras gerações. Até hoje, no campo do cinema, tínhamos apenas o documentário do pioneiro Silvio Tendler – Carlos Marighella, retrato falado do guerrilheiro – e alguns filmes de ficção sobre o tema ou relacionados a ele, mas novos materiais vão surgindo.

CA – Qual a importância para a juventude ter contato e se aprofundar sobre a história de Carlos Marighella?

CP – Em primeiro lugar a oportunidade de conhecer a história recente do seu pais e que pulsa atualíssima hoje, vide as Comissões da Verdade e Memória, ter acesso a um período ofuscado propositalmente nos livros de História oficial ou deformado no intuito de diminuir a importância que os grupos armados tiveram no desgaste da ditadura e no advento da democracia. A possibilidade de se tornarem reais sujeitos históricos do seu tempo no estudo daquele período onde os jovens que os precederam lutaram levantando a bandeira da soberania e da liberdade. Inicio o documentário com fragmentos de uma carta que o Marighella dirige aos militantes de São Paulo: “Quem samba fica, quem não samba vai embora”. Seu conteúdo é basicamente guiado pela ação continua dos revolucionários sem pedir licença para praticar atos revolucionários – esta uma famosa frase sua – a persistência na autonomia e na organização de baixo para cima entre outras apreciações de grande atualidade para a época em que vivemos em que as massas no mundo – e principalmente a juventude – voltam a se colocar na frente do processo histórico. Claro que estou me referindo ao período final da sua vida que é o que se foca no documentário e através do qual se traçam linhas de contato com a subjetividade da organização política mundial atual que busca alternativas ao modelo burguês de eleições, sejam indignados organizados ou não. Acho que detectar isso no documentário, no discurso e nas entrelinhas dele seria a mensagem mais marighelista para a juventude e sentiria uma imensa satisfação por ter colaborado para essa leitura de rebeldia.

Pólvora

De Carlos Pronzato, do livro “Poemas sem licença para Carlos Marighella”

Carlos
Poderias ter sulcado
O céu
Com tuas asas

Tocar cúpulas
Sinos

Voar intensamente
Com poesias
Sambas

Ser tão baiano
Como Dorival
Caetano
Amado

Ou o mais velho
Dos Novos Baianos

Ou talvez
Irreverente
Como um Glauber

Desarmado
Ou até um grito renovado
Do Poeta dos Escravos

Mas o espelho
Devolve-te
Como um punho
Clandestino
E apertado

Pólvora
De um sonho
Deslizando
Entre as tuas mãos
Que guarda ainda
Seu último disparo

Fonte: Carta Capital