“A verdade é a única maneira possível de esquecer”
Juan Gelman não é só um dos maiores poetas contemporâneos, como também um incansável militante da causa contra o esquecimento dos crimes cometidos pelas ditaduras militares que ensanguentaram o cone Sul nos anos 70 e 80. Juan Gelman estremece: com sua poesia, com a memória da repressão que carrega dentro de si e com o combate contra os censores dessa memória e seu empenho por não deixar impunes os responsáveis da barbárie.
Sua história cabe em suas próprias palavras: “Sou pai de um filho de 20 anos, sequestrado, torturado, assassinado em 1976. Sou sogro de sua esposa, sequestrada quando tinha 19 anos, levada de Buenos Aires para Montevidéu grávida de 8 meses e meio e assassinada pela ditadura militar uruguaia dois meses depois de dar à luz. Sou avô de uma neta da qual me roubaram seus primeiros 23 anos de vida”.
Já se passaram quase 30 anos desde o fim da ditadura argentina e Juan Gelman segue buscando a verdade sobre o que aconteceu com seu filho, sua nora e sua neta. Em janeiro de 2010, o coronel aposentado uruguaio Manuel Cordero Piacentini, acusado do sequestro do filho, da nora e da neta Gelman, foi extraditado pelo Brasil para a Argentina. Cordero havia escapado da justiça em 2004, mas foi capturado em 2005, em Santana do Livramento.
Em agosto de 2010, o Supremo Tribunal Federal do Brasil autorizou sua extradição para a Argentina. O militar uruguaio operava dentro da operação Condor, essa multinacional do crime montada pelas ditaduras da Argentina, Uruguai, Brasil, Paraguai e Chile para perseguir opositores políticos. Cordero é acusado de desempenhar um papel central no centro de detenção clandestino conhecido como Automotores Orletti.
O ex-militar uruguaio está implicado em dez desaparecimentos, entre eles, os de Marcelo Gelman, filho de Gelman, e sua esposa, María Claudia García, que estava grávida de oito meses quando foi presa. Sem o empenho do poeta, o rosto dos criminosos nunca teria sido conhecido.
Gelman moveu céu e terra até averiguar que a esposa de seu filho tinha sido transportada a Montevidéu, onde deu luz a uma menina antes de desaparecer. A menina foi adotada por um militar uruguaio e durante muitos anos nada se soube dela. Juan Gelman a recuperou em 2000: “No dia 14 de janeiro de 1977 foi deixada em uma cesta na porta de uma família que pensei serem meus pais até que fiquei sabendo que era filha de desaparecidos”, relatou a neta de Gelman, que hoje se chama María Macarena Gelman García. Macarena nasceu na prisão clandestina do Serviço de Informação de Defesa de Montevidéu, no dia 1° de novembro de 1976.
A obra poética de Juan Gelman é extensa e de uma originalidade e profundidade que lhe valeram numerosas distinções, entre elas o prêmio mais importante em língua espanhola, o Cervantes, obtido em 2007. Gelman, que nasceu na Argentina em 1933 e atualmente reside no México, é um poeta excepcional. Seu primeiro livro, Violino e outras questões, marcou uma fronteira na poesia escrita em espanhol. Sua obra está marcada pela busca de uma linguagem transcendente onde se combinam realismo crítico e intimismo, uma trama verbal deliciosa na qual está presente o compromisso social e político.
Juan Gelman é a busca: buscar, sempre buscar, entre as palavras, na realidade, buscar justiça, buscar que nunca se apague a linguagem da memória, que é justiça, que é restauração.
Introduzo duas perguntas ditadas pela atualidade: o descobrimento no Brasil de documentos que constatam que você estava sob vigilância pela Operação Condor. Qual é sua análise, tantos anos depois, dessas descobertas?
Não há muito o que dizer. A participação do Brasil na Operação Condor é notória. No Rio desapareceram vários dirigentes montoneros em 1979, por exemplo.
O Brasil acaba de criar sua Comissão da Verdade. No sul da América Latina, é um dos últimos países a aceitar as investigações. Na sua opinião, qual o valor e utilidade desse tipo de comissão?
Elas são úteis para averiguar o que aconteceu, coisa que nunca se consegue por completo por causa do silêncio dos repressores e o silenciamento dos arquivos militares que não são abertos. Mas se não servem para dar o passo seguinte, ou seja, fazer justiça, sua utilidade é relativa, ainda que nada desdenhável.
Você acredita que, tantos anos depois dos fatos e com uma democracia já consolidada, esse tipo de comissões da verdade ainda conservam seu sentido?
Absolutamente. A ignorância do ocorrido impede a conquista de uma consciência cívica sadia.
Você segue permanentemente comprometido com a busca da verdade. Há algumas semanas, voltou a se manifestar sobre a causa do desaparecimento de bebês. Essa busca tem sido uma espécie de arqueologia: tudo é clandestino, oculto, tapado por cumplicidades. Como é essa experiência que requer uma vontade inquebrantável e que expõe permanentemente a dor?
Por um lado, é uma experiência dolorosa. Por outro, a busca do destino dos seres queridos o retira, interiormente, do papel de vítima. É muito difícil para muitos, cabe dizer, conseguir algo nesta investigação, mas as pessoas se empenham nela. Outros são vencidos pela impotência.
O que a verdade e o julgamento dos culpados trazem?
Já não estamos na época de Péricles, na qual os cidadãos deviam esquecer por decreto os crimes de uma ditadura.
Você sente que o Estado devolve algo às vítimas ou a seus familiares quando cumpre com sua missão de fazer justiça ou de assumir plenamente as investigações?
Assumir as investigações e fazer justiça são obrigações do Estado. Quando ela as cumpre, faz o que os familiares das vítimas não estão em condições de fazer e abre a eles a possibilidade de esvaziar alguns rincões de sua dor. Em algumas ocasiões permite o encontro dos restos do “desaparecido”, dar-lhe uma sepultura, ter um lugar de memória e homenagem, recuperar sua história.
Você disse no discurso de entrega do Prêmio Cervantes que “a nossa verdade é a verdade do sofrimento”. No entanto, neste mesmo discurso, você destacou que o único tratamento é a verdade e a justiça. Chega-se, assim, ao esquecimento ou ao apaziguamento?
É a única maneira possível de “esquecer”.
Volto a esse discurso, onde você evoca aqueles que, ao contrário, dizem que não se deve voltar ao passado e “vilipendiam este esforço de memória”. O que você diz hoje a esses militantes do esquecimento?
O que disse a eles nesta ocasião: alguns devem estar muito interessados em que não haja memória dos crimes e das ofensas à democracia perpetradas pela ditadura militar. Na Argentina não muitos recordam a participação em, ou a cumplicidade com, ou os benefícios recebidos de, que caracterizam certos partidos políticos.
Você disse em uma entrevista: “Sempre estamos escrevendo para nos inteirarmos do que queremos dizer”. Essa é sua experiência com a poesia?
Eu me refiro aí ao que me leva a escrever poesia, algo que ignoro e que muitas vezes tampouco descubro com o escrito.
Muitos acreditam hoje que a hipermodernidade matou a poesia, ou, em todo caso, nossa capacidade para lê-la. Mas lendo seus poemas, essa afirmação se desfaz. Por acaso a poesia é algo inato no ser humano, algo assim como o amor que precisa ser despertado e explorado?
Pelo que se sabe há 50 séculos de poesia atrás de nós. Seu tempo atravessou catástrofes naturais, desastres provocados pelo homem, regimes políticos e sociais diferentes. E ela segue aí.
Você escreveu: “A poesia é resistência simplesmente por existir”. Em que forma a poesia resiste ou engrandece nossa capacidade de resistência?
Hoje, mais do que nunca, é resistência contra a vil mercantilização desta época em que querem recortar, uniformizar nosso espírito, para convertê-lo em terra abandonada para qualquer autoritarismo. A poesia não muda o sistema social imperante, ela enriquece aqueles que, algum dia, haverão de fazê-lo.
Você recorre muitas vezes a neologismos. Que função eles têm para você: ir mais além do sentido, buscar outro, ou só jogar com o som?
São tentativas de cruzar os limites da linguagem, nunca jogos.
Você escreveu: “Escuto algo no ato de escrever”. É muito bonito, mas fica para mim uma pergunta: “escuta-se mais do que se plasma na escrita”?
Muitíssimo mais.
Fonte: Carta Maior