Cidade Amazônia, urbefloresta: cidade-mulher
Cidade Amazônia, urbefloresta: cidade-mulher
Uma vez estando eu prisioneiro de uma cidade estranha
que nem o aventureiro “manco de Lepanto” no cárcere
tendo escutado dizer que já não se salvarão mais as florestas
senão por cidades-florestas e aldeias-globais
nas quais homens, mulheres, crianças e animais
tiverem direitos, deveres e princípios iguais
paresque a política antiga da arca de Noé durante o Dilúvio
e agora a tal mudança climática ou seja lá que for
tive eu mais um sonho impossível: vencer o inimigo invencível
me sagrar cavaleiro andante no reino das amazonas
que nem Dom Quixote de la Mancha e com ele por camarada
sair caminhando pelo sertão deste devastado mundo
até finalmente encontrar dentre a mulherada perdida
na zona equatorial minha Dulcineia ideal
voar num limite improvável arriba de los Andes
n’América do sul e Caribe
tal qual o Libertador Bolivar
tocar o inacessível chão, um outro mundo possível
assim com o engenhoso cavaleiro fazer minha própria lei
virar este mundo, cravar este chão…
Por momento embriagado deste desconforme sonho
deu-me ganas de arquitetar uma cidade nova amazônica
capaz de abrigar todas cidades e ilhas do mundo
e preservar o desertão deste mundo velho prestes a se acabar
não me importei de saber quantas guerras terei de vencer
só por um pouquinho de paz
nem tampouco igual ao louco cavaleiro da triste figura
se amanhã ou depois de amanhã este chão que beijei
será meu leito e perdão
só assim hei de saber ou não
se valeu a pena delirar e morrer de malária ou paixão…
Então na cela desta cadeia compreendi que há mais quixotes
do que compete minha vã filosofia
por toda eternidade há só duas idades
para ler o velho fado de cavalaria de Cervantes
a primeira é na mocidade para rir e se divertir da arte medieval
depois dá pra chorar e compreender, enfim
que a antiga Mancha armorial se acha em todo mundo espalhada.
Após tamanha meditação achei-me pronto a cometer a façanha
por arte mágica aprendida dum pajé-açu sem escola do qual fui aprendiz
fiz o homem da Mancha engabelar seu criador
e aliciar Sancho Pança com promessa de doação
da capitania hereditária da ilha Barataria (pra não dizer Marajó)
dizendo ele ao outro ser o paraíso perdido
e depois achado por acaso na terra dos Brasis
ou seja a justa e perfeita Terra sem males abaixo do equador
que o piloto Vicente Pinzón dizia ter achado primeiro e guardado
a sete chaves (justo a aldeia dos Aruãs que veio a ser Vila de Chaves):
já não sei mais os detalhes da fuga de Dom Quixote d’além mar
nem vou enfadar o leitor com explicações desnecessárias
quando a lógica tem muito valor para a ciência
mas, paciência, ela não garante final feliz a nenhuma história.
Aí de mim! Só sei que foi assim:
Dom Quixote de la Mancha veio parar no rio das almazonas
a bordo da galera dos turcos encantados
quando a caravela mágica fez escala em Gibraltar
embarcando ele como cruzado de Dom Sebastião rumo ao Maranhão
com sua pífia cavalaria a bordo e a bagagem carregada de sonhos.
Confesso:
Fui aproveitador pois carecia tomar emprestado alta dose de loucura
Juro pela fé da mucura! Com Dom Quixote por consultor e Sancho gerente
pensei em me atrever a dar melhor acabamento à história mal contada
do projeto e construção
da enfezada Belo Monte, outrora Kararaô mais feia ainda,
atravancando a Volta Grande do Xingu
inventando final feliz pra toda gente, principalmente os índios
e cabocos meus parentes
edificando ali com arquitetos Bororo
sob chancela de Lévi-Strauss na ponta da prancheta cósmica
já visto por acaso no teto de aldeias Wayanas, no Tumuc-Humac,
o emblema sideral da Cobragrande Tuluperê descida à terra do Xingu…
Mas é preciso praticar o Kuarup lá no alto da cabeceira do rio
pra saber se ainda há salvação à civilização para todos
se é possível conviverem todas gerações bárbaras ou não
passado, presente e futuro encarnado numa mesma criatura
sob figura e fundo duma renascida cidade-mãe gentil
do coração da antiga e venerável terra Tapuya sacrificada
no altar da Civilização industrial.
Um plano urbano muito louco, mas não doido com diz a canção!
A travessia do velho ao novo continente foi rápida como um raio:
Mas porém cada milionésimo de segundo valiam séculos e séculos…
só esta magia arrebatadora poderia explicar tão boa companhia
entre a pinta sebastiana e a pilotagem de alto curso
busca de muiraquitã no País de Ofir
o rei mouro Pai Turquia no comando da nave encantada
prenúncio de paz mundial em embaixada a casas de Mina
e terreiros de umbanda do Maranhão e Grão-Pará
Mariana e Herundina troçando da insustentável magreza
de Rocinante
Guerreiro de Alexandria dizia gordo é o Vento
e mais rápido que um árabe puro sangue o Relâmpago
mas porém, ‘mea’ mana Sherazade das mil e uma noites
ultramarinas contadas pelas margens do Salgado
barrancas do Nhamundá e sobradinhos de Óbidos
Manaus acima até Barcelos
o magriço Pensamento é o mais ligeiro de todos cavalos alados
que há no céu, na terra e no fundo do rio-mar
inclusive mandinga de cavalo marinho
assim como são infindas as famílias encantadas
ou não
por terras, mares, oceanos, lagos, rios, igarapés e igapós
do vasto e ainda desconhecido mundo achado e por achar.
José Varella, Belém-PA (1937), autor dos ensaios “Novíssima Viagem Filosófica”, “Amazônia Latina e a terra sem mal” e “Breve história da amazônia marajoara”.
autor dos ensaios “Novíssima Viagem Filosófica” e “Amazônia latina e a terra sem mal”, blog http://gentemarajoara.blogspot.com