“As Cidades Invisíveis de Ítalo Calvino despertaram em mim o desejo de também falar as cidades por onde andei, falar da sua fotografia, do tempo, dos acontecimentos, dos momentos vividos: lembranças que valem um tesouro. Assim como o autor das Cidades Invisíveis, também dei nomes de mulheres para as minhas cidades, que chamei de imaginárias, cinquenta e três foram as escolhidas, uma homenagem àquelas com um significado muito especial na minha vida”, explica a escritora.

Piauiense de Pedro II, Lúcia Ana de Mélo e Silva é assistente social formada pela Universidade Federal do Piauí. Mora em Brasília há 22 anos. Declarando amar a política e a poesia, a autora assume-se como uma “encantada aprendiz das letras”.

Para o poeta Adalberto Monteiro, presidente da Fundação Maurício Grabois, “Cidades Imaginárias” mostra que “para realizar aquela viagem que nos queima de desejo não basta se deslocar, não basta comprar uma passagem”. É preciso “romper com a rotina que aniquila o direito ‘de ir e vir’”, de tal modo que “a existência seja intensa, participativa, que nos motive a exaltar suas diversas fases e os cenários onde elas transcorreram”. 

Confira abaixo o prefácio de Cidades Imaginárias

As cidades são as raízes das pessoas

Por Adalberto Monteiro*

Quando a carta de Pero Vaz Caminha chegou ao seu destino, os olhos de Lisboa se deram conta, assustados, de que “o sonho existia”. Estas crônicas de viagem que Lúcia Ana, agora, resolveu, neste livro, nos franquear causam, também, espanto, pois revelam os tesouros vistos e vividos nas incursões por ela empreendidas a 53 cidades imaginárias, de um país inusitado cujos municípios todos eles têm o nome de mulheres.

A beleza das cidades femininas descobertas por Lúcia Ana é de tal grandeza que somos tomados pela ambição de desfrutar de seus múltiplos encantos. Ela nos dá notícia de um lugar em que se mergulha nas águas salgadas, e delas emergimos perfumados pela plenitude da vida.  Fala de uma serra que é um museu ao aberto: um jardim silvestre de orquídeas e bromélias raras, flores delicadas que brotam do miolo das pedras. Narra um litoral de mar azul: lá vive um povo belo, de uma generosidade extrema. “Hospitalidade e carinho em cada sorriso, em cada informação colhida”. “As cidades são as raízes de um país”, proclama Lúcia Ana. Vivenciando-as somos enriquecidos e quando dela regressamos nos tornamos maiores. São, portanto, também, as fontes geradoras das pessoas. Uma a uma se impregnam em nós, formando camadas de lugares e idades.

Tantos são os deslumbramentos e raios de felicidade que somos tomados pela ganância de conhecer, incontinente, essas cidades. Possessão que nos faz interromper a fluência da leitura e empurrar os olhos para o mapa mais próximo. Onde se localizam? Como viajar até elas, se a narrativa mescla real com imaginário? A geografia das paragens se mistura com o mapa da memória. Como numa tela digital ou na arte cinematográfica dos sonhos, as cidades se fundem, baralham bairros e acontecimentos, calcinam as bebidas e os amores, o passado e o presente se misturam com o visgo do futuro, dando origem a uma surrealidade.

Este livro nos diz que para realizar aquela viagem que nos queima de desejo não basta se deslocar, não basta comprar uma passagem. Embora, antes de tudo, seja preciso aquele impulso libertador que nos faz jogar uma mochila nas costas, arrancar tempo da falta de tempo, esporar as ancas de nós mesmos e galopar pelos mundos…

Contudo, com os olhos embrutecidos, com os sentimentos enclausurados, com a consciência colonizada, elas permanecem imaginárias. Se a poluição do tédio nos cega as retinas, se a rotina estressante e incessante nos aliena, não adianta adquirir o “pacote” que nos promete uma excursão parasidíaca.

O imaginário não se tornará real para quem não tiver a coragem de romper com a rotina que aniquila o direito “de ir e vir”.  Para que se tenha acesso a essas cidades é preciso que a existência seja intensa, participativa, que nos motive a exaltar suas diversas fases e os cenários onde elas transcorreram.

A cartografia das cidades imaginárias

O torrão no qual nascemos. Por que não realizar uma viagem pelos espaços onde estão deitadas nossas raízes e que de modo tolo muitas vezes desprezamos ou delas não nos ocupamos? As cidades que nos povoaram a vida e as que foram habitadas por nós. As cidades a que fomos conduzidos pelas mãos do destino, pelo assobio dos encontros, pela sede de diversidade de paisagens e culturas, pela seda das alcovas, pelas ordens do trabalho, pela liberdade dos passeios, pela febre da busca e dos devaneios. Os deslocamentos para localidades do interior e do exterior e para as profundezas e fronteiras de nós mesmos.

Dessa cartografia, aleatoriamente, podemos citar: Bernadete, onde os trabalhadores transformam o ouro bruto em peças extraordinárias. Lucinara enfeitiça e energiza com seus cristais. Clara é uma clareira “um verde infinito recortado pelas curvas dos rios” da floresta amazônica. Aurineide fica onde a amizade marca para se reencontrar. Em Sófia, reino da poesia, as pessoas se comunicam em versos, os poetas declamam nas praças, no dia da grande sarau é feriado municipal. Lourdes irradia consciência. Quem contempla seus épicos e belos murais, expostos na sua fantástica rede de metrô, descobre a árdua batalha pela construção da Nação. Depois de tanta busca, em Lourdes se deu o encontro. Foi feita a escolha: a vida comprometida com a luta pelo mundo novo.

Nos campos da infância

Os lócus sagrados e encantados da infância onde nos gestamos nos casulos das famílias.  Terezinha, Zulmira, Astréa, Etelvina e Emídia podem ser as cidades piauienses: Pedro II, cidade natal da escritora, e Teresina, onde viveu com a família na juventude. Mas, pode ser a cidade da minha, da tua infância, ou a de qualquer pessoa. “Fico garimpando na memória pedaços dos tempos deliciosos que vivi. Aspereza e beleza, casas de chão batido e casarões de ladrilhos, o suor no rosto dos trabalhadores (…). Uma senhora de vestido longo, acocorada, mascando fumo, em seu rosto sereno um sorriso de certeza – o próprio retrato da simplicidade”. Etelvina , a cidade na qual uma dúzia de janelas trouxe-me o mundo em todas as cores e dimensões”.

Os lugares impactados pela juventude

As cidades que tiveram a sorte de ser o cenário de nossa juventude o quão foram enriquecidas por um coletivo que se movia pela consciência e a fúria de querer mudar o mundo. A geração de Lúcia Ana teve o privilégio e a responsabilidade de empreender a ofensiva final contra a ditadura militar. Enquanto a liberdade não fosse resgatada, enquanto a democracia não fosse instaurada, as passeatas, os atos, as campanhas, os combates não cessariam. A história, igual a um técnico de futebol, à beira do gramado, ordenava: ao ataque, ataque! Ela, nesta época, estava em Amália e alhures, onde sopra um “vento que vem lá do meio do oceano trazendo pedaços de contos (…) um sol forte, as discussões exaltadas, disputa de ideias e unidade de ação. Meninos e meninos, jovens determinados para construir o novo (…). Lembranças de uma juventude iluminada”.

Noutra dimensão, a generosidade de Antônia: “Doa conhecimento… Impossível sair sem uma graduação em história.” Quem não guarda no fundo do afeto as cidades que nos deram o alfabeto ou foram nossas universidades?

As arenas da luta por um mundo novo

As localidades que simbolizam nossas convicções políticas: Zita, Zulmira, Elza, Renata, Maria.  Assim, como um mulçumano precisa ir a Meca ao menos uma vez na vida, é recomendável àqueles que lutam por um novo mundo regido pela solidariedade irem a Zita. Essa Ilha rebelde do Caribe, dotada de oceânica bravura que resiste mesmo que os arpões rasguem o seu dorso exposto de animal marinho. Zita, “o seu chão era um chão de igualdade (…). A minha paixão pela ilha, um encontro sonhado, um alimento que me mantinha viva, o profeta da alvorada e eu ali paralisada pela emoção”.

Em Zulmira: “(…) Deitada em tuas terras olhava para o céu azul de estrelas s e sonhava com um mundo novo que não tardava. Como te esquecer, Zulmira, se tudo em ti despertas em mim um sonho louco de igualdade”. Elza banhada pelo rio Araguaia que, além de açúcar, possui sangue em suas águas por conta de uma guerrilha na qual perto de cem tombaram lutando por democracia e liberdade. Maria: quando a bandeira da esperança foi desfraldada, suas ruas foram alagadas pela diversidade da cultura. Renata, cidade imensa, numa casa simples, situada numa rua que homenageia um major, pela vez primeira, frente a frente, com uma destacada personalidade da esquerda brasileira: “uma voz doce paralisou o meu coração, contrastando com a fala de um ato que incendiou meu corpo…”

Os santuários da fé

Odete e os santuários da fé. Ela pode ser Roma, Jerusalém, pode ser Aparecida, Juazeiro, Uberaba, e pode ser todas elas. Odete, santuário de uma fé ecumênica, de uma fé religiosa e terrena: “(…) diante do Sacrário, Odete é fé. É fé nas noites de cruviana, quando os amantes dormem abraçados. É fé quando o sol clemente queima a pele dos vaqueiros. É fé nas mãos calejadas do agricultor do sertão, e prossegue fé no badalar do sino na hora da Ave-Maria”. Fé que nos dá o atributo de andar “de mãos dadas com o vento”, andança que nos “enche o peito de esperança”.

Nos domínios de Eros e Dionísio

Thamar, Adélia, Conceição, Elizabeth, Francisca, Gizelda, Raimunda, Neyla, Sérgia… territórios livres, sobre a libertina ditadura de Eros e Dionísio. Alcovas quentes e macias para acolher dóceis pares, para hospedar paixões e amores. Ponto de encontro nos becos do carinho. Vinhos de todas as etnias. Em Sérgia, por exemplo, é possível, depois de um espetáculo de dança, se beber um decente Dei, Nobile de Montepulciano Bossano, da Toscana. Em Adélia, cidade serrana, suas encostas avermelhadas por plantações de morangos. “a janela emoldurava, no restaurante, um penhasco que despontava do fundo de um rio”, e as mãos se tocando, quentes – achas incandescentes de lenha. “Entre uma taça e outra de champanhe o brilho da noite aos poucos chegou mudando o tom da conversa (…). A música, a fala, o carinho e a beleza do encontro (…). Pois além do teto de flores, o chão também era um tapete de ouro. E, neste amanhecer de luz, beijamos-nos acariciados pela brisa fresca da aurora…” Em Conceição houve uma noite superlativa. “(…) Após muitos sóis e luas, a fruta, talvez não completamente amadurecida, mas o suficiente doce para o momento. Conceição era luz! E entre encantos e certezas, vivi a melhor noite da minha vida”.

Absolutamente nada contra, vez ou outra, ir às cidades sofisticadas e luxuosas, como Cecília. “Grandes hotéis – verdadeiros palácios com as suítes mais caras do país”. Partilhar, à pequena distância, no café da manhã, a companhia de princesas europeias e chefes de Estado e celebridades, sobretudo quando se tem ao lado alguém que exerce extraordinários poderes sobre a carne e a alma.

Comer com prazer e sem pecado

Por Tereza, Carlota, Hygina, Celina, Tiana, Rosa e tantas outras “as viagens gastronômicas onde as cores e sabor deram o rumo do roteiro”. As papilas ficarão loucas ante a variedade da culinária. São tantos cheiros e sabores, tantos pratos exóticos e refinados que “o paladar dá saltos”.  “Panquecas salgadas de ricota com nozes e uma sopa quente com batata e alho poró. Lagosta ao molho de jabuticaba, banana cozida. Ravióli de filé curado, e maxixe. Peito de codorna defumado com geleia quente de pimentões. Pastel de siri com ‘perola’ de sagu de tapioca marinadas na caipirinha e ao molho de bacuri. Batata baroa assada com sal grosso. Cachaça de alambique, som de viola lá no fundo e um cardápio pra lá de especial: galinha caipira ao molho pardo, carneiro cozido com arroz, paçoca de carne seca com cebola…

A diversidade das cores e dos cheiros dos temperos. “Como passeio principal, a visitação às plantações de pimentas, alecrim, cravo e manjericão. Verdadeiros quadrados de cheiros que brotavam do chão”. Em Rosa tudo de importante tem como testemunha um café. A porcelana branca mornando as mãos e o café “aquecendo a vida e o coração”.

Para Lúcia Ana, gastronomia, “somado ao profissionalismo, dedicação de anos, o diferencial está, sem dúvida, no carinho, nas porções de amor com que se tempera a comida. Se você está triste, o prato assim se apresenta, mas se a felicidade te ocupa a mesa vira encantamento”.

Atlas com estradas falsas

Como já foi dito, as cidades são muitas sendo uma. É o caso de Anfrisina e de tantas outras. Ela é São Paulo, Teresina e, provavelmente, a capital de Santa Catarina. O nome de um restaurante, a esquina de duas ruas, são rastros propositadamente deixados. Mas, não tome essas indicações como absolutas. É verdade sempre há uma pista, uma data, um nome de rua, um sabor, um episódio histórico. Lúcia Ana quer partilhar conosco as belezas de suas descobertas, por isto nos dá dicas. Mas, não as tenha como absolutas. As cidades como as pessoas têm semelhanças, por vezes são sósias. E atenção: a cartografia do imaginário contém indicações falsas, dissimulações, armadilhas, igual os mapas dos tesouros. Cuidado que se adota para que suas riquezas não sejam saqueadas por piratas.

Agora, comece você mesmo, leitor, leitora, essa inusitada aventura pelas cidades imaginárias de Lúcia Ana. Quem sabe a leitura te impulsione a narrar tuas próprias viagens ou planejar e realizar novas jornadas pelas terras de ti, do teu país e do mundo.

* Adalberto Monteiro, jornalista e poeta, é autor de três livros de poemas: Os Sonhos e os Séculos; Os verbos do amor & Outros versos; e As delícias do Amargo & Uma homenagem. É editor da revista Princípios e presidente da Fundação Maurício Grabois.