Entrevista com Vera Paiva
Poder Online – Até agora a presidenta Dilma Rousseff faz suspense sobre os sete nomes que indicará para a Comissão da Verdade. Como tem que ser a composição dessa comissão?
Vera Paiva – O principal ponto é que a comissão tenha o apoio de pessoal, tenha uma boa estrutura de ajudantes de todas as áreas: de investigação, de análise jurídica, passagens de avião para viajar por todo o Brasil.
Ou seja, tem que ter recursos pessoais e materiais. Além disso, é preciso focar no período mais recente, no período mais duro da ditadura militar. Não pode ficar expandindo para o Brasil do século 20. Tem que focar porque é mais fácil reunir elementos da história com fatos mais recentes. É importante resgatar a memória para que a história não se repita.
Poder Online – No discurso que faria no dia que foi instalada a Comissão da Verdade, divulgado posteriormente, você afirma que a Comissão da Verdade precisa de autonomia e soberania.
Vera Paiva – Sim, a comissão tem que ter garantia de autonomia e soberania. Não pode ter militar, não pode ter jornal, não pode ter intervenção da imprensa. Não pode ter nenhum tipo de poder. Nenhum tipo de poder! Ninguém do Congresso Nacional. Não pode, claro, fazer nada à revelia da lei. Mas tem que ter autonomia e soberania para investigar. Os militares têm menos condições de participar porque eles não têm autonomia.
Poder Online – As famílias de desaparecidos e torturados devem fazer parte da comissão?
Vera Paiva – Seria bom, mas acho difícil colocarem alguém que represente as famílias dos desaparecidos. Mas, por outro lado, acho impossível colocarem pessoas neutras como se tem tido. Ninguém ficou neutro diante da ditadura. Não tem “em cima do muro” diante do que aconteceu.
Não tem em cima do muro para o Apartheid na África do Sul. Não tem em cima do muro para o Holocausto. Acho impossível colocar pessoas neutras na Comissão da Verdade. Mas consigo aceitar que não tenha nenhum familiar desde que essa comissão seja composta por pessoas que queiram investigar o que de fato aconteceu.
Poder Online – Um dos nomes que circula nos bastidores como um dos possíveis integrantes do grupo é o do diplomata Paulo Sérgio Pinheiro. É um bom nome?
Vera Paiva – O Pinheiro é um nome altamente adequado porque ele não é uma pessoa que tem experiência com o tema, amplamente falando, inclusive nos dias de hoje. Uma das questões é: por que a gente precisa resgatar a memória? Porque essa brutalidade continua nos dias de hoje.
Especialmente com os mais pobres, os pretos e os homossexuais. O caso da juíza Patrícia Acioli, brutalmente assassinada, é emblemático. Quem está acostumado a pensar sobre a violência, será muito bem vindo. É importante que sejam pessoas que conhecem os recursos para trabalhar com esse tema.
Poder Online – É possível definir um perfil ideal para os integrantes da Comissão da Verdade?
Vera Paiva – As pessoas que estarão nessa comissão tem que ser estadistas. Devem ser pessoas que não são partidárias e tenham ligação com os diretos humanos. Não dá para colocar alguém como o Bolsonaro [o deputado Jair Bolsonaro]. As pessoas não podem ser escolhidas por suas posições políticas, ideológicas, racistas, machistas ou sexistas. Essas pessoas não podem entrar na comissão. É fundamental que todos tenham o compromisso com os direitos humanos.
Poder Online – Preso e torturado na ditadura, o assessor especial do Ministério da Defesa, o ex-deputado José Genoino afirmou recentemente que ex-presos políticos não devem ser indicados para a comissão. Concorda?
Vera Paiva – A presidenta Dilma é uma ex-presa política, mas ela é também uma estadista. É capaz de pensar em benefício do país, do futuro do país. Acredito que os integrantes da comissão tenham que ser pessoas que, assim como ela, pensem no futuro do Brasil e cuja Bíblia – vou usar essa analogia – seja a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Eles têm que acreditar nos direitos humanos. Não dá para incluir alguém que acredite que algum grupo não tenha direito. Não dá para colocar o [Paulo] Maluf, por exemplo, que dizia que há humanos com direitos e humanos sem direito.
Poder Online – Depois de identificados os torturados, o que deve ser feito?
Vera Paiva – O título do discurso que eu faria no dia em que a presidenta Dilma sancionou a Comissão da Memória e da Verdade é Quem cala, consente porque depoimentos e narrativas sobre as torturas e as prisões têm aos montes. Não temos propriamente a documentação. O título é porque as pessoas que se calaram, naquele momento com medo, têm agora a chance de vir a público.
O que precisamos de fato é do resto da história, aquela que a gente não acompanhou. Depois que o Brasil tiver acesso à história e estiver concluído o relatório da comissão, cabe ao Brasil decidir o que quer para o Brasil. Nós vamos esquecer e dizer tudo bem? E vamos perdoar quem fez? Ou vamos dizer que isso é inaceitável hoje, ontem e no futuro? Será um segundo debate político e democrático para traçar o futuro do Brasil.
Poder Online – E qual é a sua expectativa?
Vera Paiva – A minha expectativa é que nós, que vivemos isso no passado, nos juntemos a quem vive isso todos os dias e consiga punir e dizer isso é inaceitável. É inaceitável esse grau de violência. Nós queremos o Brasil com paz. E precisamos cobrar de quem está constitucionalmente no direito e na obrigação de fazer um país de paz. Eles têm que cumprir seu preceito constitucional. Não podem ser mais uma força a provocar a guerra, a matar, a torturar e a fazer pessoas desaparecer.
Poder Online – O fato de a Comissão da Verdade ser sancionada sem a revogação da Lei da Anistia pode gerar problemas no futuro?
Vera Paiva – A política é sempre dinâmica. Vamos esperar o resultado que a comissão vai apresentar. Depois a gente vê o que faz com isso. Se um militar pode proibir quem fala, isso na verdade começou mal. Sem autonomia, sem soberania. Mas se tudo puder ser investigado, tudo puder ser apurado, com autonomia e soberania, pode ir muito bem.
Poder Online – A sua família deve participar da Comissão da Verdade?
Vera Paiva – Nós não estamos reivindicando um espaço na comissão. Não acho que a minha família tenha que fazer parte. Mas se a minha mãe estivesse com saúde, seria capaz de cumprir esse papel de estadista.
Ela tem espírito estadista. Ela é advogada, fez Direito. Tem uma foto importante da minha mãe abraçando um general, logo que começou a discussão sobre a Comissão da Justiça, no início do governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Por que ela fez isso? Na época, ela falou: “Este general que está na minha frente não foi o general que torturou e matou o meu marido, que autorizou a minha prisão”. Ela sabia fazer a diferença entre a instituição Exército e as pessoas que mancharam a instituição.
Eu até defenderia [a nossa presença], mas não sei se alguém de nós poderia fazer parte da comissão. Eu sou professora da USP, trabalho numa outra direção. O meu irmão [Marcelo Rubens Paiva] é jornalista, não sei se ele aceitaria. Minhas irmãs moram fora. Acho que temos que pensar em pessoas capazes e estadistas.
É importante que as pessoas envolvidas na comissão tenham habilidade profissional, pessoal, expertise, atitude estadista e compromisso com os direitos humanos. Porque, como já disse, não acho que tenha alguém neutro. É impossível ter alguém que não tem lado. Acho que o lado que todos os integrantes da comissão têm que estar é na defesa dos direitos humanos.
Fonte: Portal IG