O samba como resistência
O livro resgata o trabalho cultural de Jorge Coutinho e Leonides Bayer, dois guerreiros da cultura popular, oriundos do CPC da UNE, que se uniram para tornar realidade este que foi um dos maiores empreendimentos culturais e políticos da década de 70. Beth Carvalho, inclusive, foi uma das participantes de peso dessas noitadas que aconteciam todas as segundas-feiras no Teatro Opinião, em Copacabana, no Rio de Janeiro, no período que vai de 1971 a 1983, e que se consagrou como um dos fenômenos lapidares da resistência cultural à ditadura militar. Foi lá que ela lançou um de seus mais importantes LPs, Canto por um novo dia, de 1973, pela gravadora Tapecar; e no ano seguinte, seu novo disco Pra seu governo, produzido pelo próprio Jorge Coutinho.
O livro foi concebido e coordenado pela produtora cultural Cely Leal, baiana de Salvador, que apesar de ter estudado história e jornalismo, viria a se tornar “bilheteira” do Teatro Opinião, sendo o texto de recriação histórica de autoria da jornalista Márcia Guimarães. O trabalho foi incrementado a partir de um projeto aprovado pela Petrobrás Cultural e que incluiu também um longa-metragem com o mesmo nome, lançado no Festival Internacional de Cinema do Rio de Janeiro do mesmo ano. A edição é excelente, reunindo um acervo fotográfico inédito e da maior importância, boa parte de autoria do já falecido fotógrafo Manuel Paixão Pires, encarregado de registrar o evento e homenageado nesta edição.
Cartola, Dona Zica, Elton Medeiros, Nelson Cavaquinho, Elizeth Cardoso, Ismael Silva, Nescarzinho do Salgueiro, Xangô da Mangueira, Clementina de Jesus, Dona Ivone Lara, Paulinho da Viola, Beth Cavalho, Clara Nunes, Baianinho, Aniceto do Império, Zé Kéti, João do Vale, João da Baiana, Martinho da Vila, Leci Brandão, João Nogueira e tantos outros sambistas cariocas, só alcançaram projeção nacional depois de passar pelo palco da Noitada. E não só os cariocas, mas também os de outros estados, como, por exemplo, Adoniram Barbosa, Batatinha e Lupicínio Rodrigues. Sambistas, compositores e intérpretes. Talvez nenhum intérprete de importância para a MPB tenha deixado de marcar sua presença na Noitada, que além de projetar os novos, ressuscitava os antigos, como Ademilde Fonseca, Carmem Costa, Jorge Goulart, Emilinha Borba, Dircinha Baptista, Nora Ney, Tito Madi, Doris Monteiro, Cauby Peixoto, Marlene e uma infinidade de outros.
Quanto ao público, mostra-se que muita gente vinha até do exterior especialmente para assistir a um espetáculo na Noitada, num Teatro Opinião abarrotado de gente. No dizer de Cely Leal, os pontos turísticos mais importantes do Rio de Janeiro na época eram “Maracanã, Pão de Açúcar, Cristo Redentor e Teatro Opinião às segundas-feiras”. A Noitada era, de fato, conhecida nacional e internacionalmente. Não só pelo seu samba de raiz, mas também pelo seu significado político. Embora o teatro só contivesse 300 lugares, geralmente recebia 600 pessoas por noite. Sobre este público dizem as autoras:
“A platéia da Noitada de Samba era temida até mesmo pelos mais calejados artistas. Irreverentes, explosivos, indomáveis, aqueles jovens freqüentadores não toleravam repressão de qualquer espécie. E se manifestavam livremente, fosse qual fosse o resultado. Na fila que dobrava o quarteirão, esperavam pacientemente a abertura da bilheteria às 16:00 hs. Depois, espalhavam-se pelos arredores, aboletando-se nas barricas da Adega Pérola, bebendo cerveja e aguardando a abertura do teatro (…) Às pressas, viravam os últimos goles de cerveja e, como uma horda de bárbaros, lançavam-se escada acima, empurrando uns aos outros, rindo, xingando, esbravejando, e correndo para garantir posição nos bancos de madeira. Não havia lugar marcado. Era um salve-se quem puder, um Deus nos acuda, entre gargalhadas e urros. Lá dentro, um zumbido percorria o ar. Barulhentos, cantavam com seus artistas favoritos, aplaudiam freneticamente, ou vaiavam sem dó nem piedade. Amavam ou odiavam, sem meios termos. Quando não gostavam, ou se havia qualquer conotação política indesejada, xingavam mesmo. Gritavam ‘sai… sai… acaba logo.’ Foi o que aconteceu com Wilson Simonal.”
O início da Noitada se deu num momento em que a cultura brasileira era sufocada pela censura. Numerosos artistas eram perseguidos e processados e a repressão política atingia o seu auge, capitaneada pelo seu ditador de plantão Garrastazu Médici, o mais sanguinário de todos. Em janeiro de 1971 Rubens Paiva tinha sido seqüestrado e “desaparecido”. Em junho o estudante de economia da UFRJ Stuart Angel Jones fora assassinado de forma selvagem nas dependências do Cenimar. Em setembro o líder guerrilheiro e ex-capitão Carlos Lamarca fora cercado e assassinado no sertão da Bahia. Milhares de pessoas eram presas e processadas. A tortura campeava à solta nos órgãos de repressão e nos quartéis. Os assassinatos se sucediam. No plano internacional, estava no auge o movimento de massas contra a Guerra do Vietnam. Na área cultural, o mínimo que se podia esperar era uma rigorosa censura, que exigia dos artistas muita criatividade para colocar suas criações nas ruas, quando podiam. O próprio Bayer tinha sido vetado de trabalhar em certa rede de televisão, por ordem militar. O ator e escritor Rafael de Carvalho, que fizera grande sucesso com a peça Se correr o bicho pega – Se ficar o bicho come, de Vianinha, passara momentos difíceis no Cenimar e, depois de solto, viu-se obrigado a viver de frete, utilizando uma Kombi velha que comprara, pois não conseguiu mais trabalho. O próprio Tom Jobim fora detido e obrigado a se explicar nas dependências da Polícia Federal. Talvez uma frase a ele atribuída seja a mais adequada para traduzir o momento difícil em que vivia o país: “A melhor saída para o músico brasileiro é o galeão”.
Foi nesse clima, à sombra da repressão política mais desgovernada de que se tem notícia em nossa história, que Jorge Coutinho e Leonides Bayer resolveram encarar o projeto da Noitada de Samba. Os dois já eram amigos desde os tempos do CPC da UNE. A repressão, a perseguição e a longa convivência estreitaram esta amizade. Dizem as autoras que uma aventura daquele porte só poderia ter sido realizada “por aqueles dois jovens que se completavam à perfeição. Não era a cor da pele que caracterizou a dupla com o apelido de ‘café-com-leite’, mas, sim, a combinação única de duas personalidades diferentes entre si, mas que se mesclavam de tal forma, que não se sabia o que era branco e o que era negro, o que era decisão de Coutinho, qual era a de Bayer. Misturavam-se completamente como café ao leite.” O fato é que a proeza não teria sido possível sem certa dose de coragem e desprendimento, virtudes comuns aos dois personagens. E também de perseverança e estoicismo, que garantiu a sobrevida da Noitada por 12 anos seguidos.
A Noitada de Samba não chegou ao fim por esgotamento, mas por problemas com a produção e a falta de espaço. O Teatro Opinião fora vendido em 1981 para o empresário Adauri Dantas, que o renomeara Teatro de Arena e o transformara num espaço modernoso, de certo modo incompatível com o espírito da Noitada, que no período da reforma já havia funcionado precariamente no Teatro Tereza Raquel, no mesmo prédio. Além disso, Cartola havia falecido em 30 de novembro de 1980, vítima de câncer e a Noitada perdia seu apresentador e maior ídolo. Por último, os novos compromissos daqueles artistas agora de projeção nacional que haviam convivido com a Noitada por tantos anos, dificultavam o trabalho da produção, que não mais conseguia reuni-los como antes. O crescente mercado fonográfico que os projetara criava agora alguns entraves naturais para que os produtores prosseguissem com êxito. Eram os novos desafios. E também os estertores da ditadura militar.
A ousadia do empreendimento da Noitada de Samba tem, portanto, de ser creditada também a João das Neves, o teatrólogo e diretor do Teatro Opinião que apostou no projeto e cedeu o espaço à dupla produtora. Na verdade, o Teatro Opinião tornara-se palco de um sem-número de atrações artísticas e atividades culturais da cidade, e em última instância podia, já naquela época, ser chamado de um palco de resistência. Sobre ele dizem as autoras:
“O teatro Opinião já tinha a marca de ser foco de resistência, política e cultural. Os espetáculos que lá se encenavam, falavam da miséria e da desigualdade social, e seu endereço ─ Siqueira Campos 143 ─ havia fincado raízes como local de discussão e luta pela redemocratização do país.”
Ninguém que viveu aqueles tempos pode esquecer da peça “Liberdade! Liberdade!…”, um marco histórico do Opinião, assim como a Noitada. Infelizmente, este mesmo espaço de passado tão glorioso, que teve papel tão relevante na resistência cultural à ditadura e que deveria ter sido preservado e tombado como monumento histórico, perdeu todas as suas características populares. Adauri se encarregou de apagar toda a sua memória, conforme relata Coutinho, com amargura. Hoje o local não passa de uma reles sede de Tribunal judiciário.
Pela importância da Noitada, o trabalho de Cely Leal e Márcia Guimarães tem um valor memorialístico inestimável. Que o digam os saudosistas e os que tiveram a sorte de assistir a pelo menos uma de suas apresentações. Naquele clima de sufocação que era o ambiente ditatorial, ir à Noitada tornara-se um ato de libertação. As pessoas se comunicavam, trocavam idéias espontaneamente, manifestavam suas opiniões, se sentiam em casa. O palco não era mais que uma extensão da platéia. O expectador, se quisesse, podia ir até ele e participar da roda de samba. A proximidade era completa. Os artistas e compositores também saíam da escuridão e da reclusão. Aquele era um território livre, que atendia ao chamamento de Vinícius e Carlos Lira em sua Marcha da quarta-feira de cinzas:
E no entanto é preciso cantar
Mais que nunca é preciso cantar
É preciso cantar e alegrar a cidade.
O grande valor do trabalho das autoras certamente foi o de identificar e ressaltar a Noitada como um foco de resistência à ditadura, e mostrar como ela contribuiu para jogar para fora toda uma gama de produção musical que tinha origem e inspiração nos morros cariocas e nos redutos de samba de outros estados. A Noitada de Samba defendeu um legado artístico que talvez não tivesse chegado incólume a nossos dias. Projetou artistas insubstituíveis e divulgou composições importantíssimas que marcariam a história de nossa música. Este foi um verdadeiro ato de resistência cultural. Mas o foi também de resistência política. Sem a Noitada muitos dos artistas participantes não teriam tido a oportunidade de dar o seu recado. Naquele espaço intimista e aconchegante, para não dizer apertadíssimo para um público cada vez maior e ávido de samba e de cultura autêntica, era possível falar, dizer coisas que não podiam ser ditas em outro lugar. O espírito reinante sempre foi o de resistência. A ditadura não podia simplesmente impedi-la, apesar das freqüentes ameaças, veladas ou abertas de invasão do teatro e de prisão de seus produtores. Teve que aceitá-la para não cair numa desmoralização completa. Quem poderia admitir um Cartola preso? Ou uma Clementina de Jesus, os seus dois principais protagonistas?
Por esse e outros motivos o livro de Cely Leal e Márcia Guimarães deveria fazer parte de todas as bibliotecas do país, para manter viva a memória da Noitada de Samba. Ou talvez o samba, e a sua história, devessem se tornar matéria obrigatória nas escolas primárias e secundárias do Brasil. Noel Rosa já ensinava que “ninguém aprende samba no colégio”. Mas sua história sim; e isto fica demonstrado neste livro. Ela é inseparável das grandes lutas de nosso povo e de nossa história como um todo. E que história gloriosa.
* Paulo Martins, escritor, é autor de “Jacques Brel – A magia da canção popular”