O essencial da privataria tucana
Na campanha de Alckmin, um de seus assessores, Luiz Carlos Mendonça de Barros, ex-ministro das Comunicações e ex-presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) na “era FHC” — um daqueles baluartes da tribo que ajudava a manter no exílio gente como Fernando henrique Cardodo (FHC) e José Serra, defendeu abertamente a privatização da Petrobrás. “Se eu estivesse no próximo governo, trabalharia forte na privatização da Petrobras. Esse não é um projeto simples. Tem de ser muito bem estudado, muito bem planejado. Mas acho que deveríamos quebrar esse monopólio que hoje não se justifica. Privatizar ou não é uma questão que tem de ser avaliada de maneira objetiva, não ideológica”, disse ele.
Para uma compreensão mais clara do problema, basta recorrer às proclamações do ex-presidente neoliberal FHC e seus blue caps. Já nos dias que antecederam a posse dos fanáticos financistas, deixaram bem claro que a missão seria acabar com a “era Vargas”. As raízes plantadas pela Revolução de 1930, que brotaram, floresceram e frutificaram desde então, teriam de ser extirpadas. Com roupagens “modernas”, a era ideológica das oligarquias da Republica Velha começou a ser restaurada assim que o fanatismo neoliberal ocupou os palácios e gabinetes de Brasília. Governo e mídia se juntaram para promover o desmonte do país.
Dizia-se que seria necessário privatizar para “abater” a dívida pública e liberar “bilhões de dólares” das despesas com juros para financiar investimentos sociais. O mitomaníaco FHC insistia que a taxa de retorno social seria substancialmente mais elevada do que a que o governo obteria em seus investimentos na mineração, na telefonia e na tecnologia industrial. “Cada um que prega contra as privatizações deveria ser obrigado a escrever mil vezes por dia, enquanto houver uma empresa estatal, um analfabeto ou uma criança mal nutrida no país: a democracia exige as privatizações para reduzir a dívida e liberar as despesas com os juros para gastos nas áreas sociais”, disse ele em um de seus arroubos de fanatismo.
Corte na evolução reacionária
Como se sabe, o dinheiro das privatizações desapareceu, a dívida pública explodiu e a taxa de juros continua estratosférica. Na verdade, o fundo da questão é ideológico. A “era FHC” não fez nada além de repetir os ideais da elite brasileira, forjados em séculos de reinado despótico sobre os interesses do país e do povo. Na torre de comando político dos tucanos — a mídia —, estão expostos os fios condutores que ligam as práticas de hoje com essa história de mandos e desmandos. Revela os mesmos ideais desde que o Tratado de Tordesilhas, de 1494, reconheceu a posse da coroa portuguesa sobre gorda porção da América recém-descoberta, com seus direitos reconhecidos pela vizinha e poderosa Castela.
A maior obra do El-Rei dom Manuel foi realizada três décadas depois pelo filho João, que repartiu todas as terras que lhe couberam na partilha do Ocidente entre súditos fiéis. Por esse plano, a metrópole doou 3 milhões de quilômetros quadrados a quinze particulares e forjou um país de relações sociais complexas. Por extensão, o que foi incorporado a oeste do meridiano primevo também foi registrado em nome de particulares, numa operação de grilagem sem paralelo. A imensa maioria do solo brasileiro tem dono desde o descobrimento.
A Revolução de 1930, ou a “era Vargas” que os tucanos tentaram demolir a golpes de picaretas, representou um corte nessa evolução reacionária — antes abalada pela Abolição e pela proclamação da República. A dívida que o país acumulou com seu povo, que ainda vive as seqüelas da escravidão e de outras modalidades de servidão adotadas nas capitanias hereditárias pelos donatários de dom João I e mantidas por gerações de sucessores, começou a ser paga com a intervenção movida por um espírito político radicalmente novo. Novas forças sociais entraram em ação, obrigando a elite a ceder parte dos anéis para não perder os dedos.
Falta de rigor e de integridade
Mas é uma dívida que continuou sendo rolada pelas posturas violentas da direita. Getúlio Vargas, Juscelino Kubitscheck e João Goulart enfrentaram interesses dessas elites e pagaram o preço — um com a vida, outro com duas tentativas de golpe e o terceiro com a ação bandidesca do grupo militar-midiático-oligárquico em 1964. Como bem definiu Miguel Arrais, os governos neoliberais que sucederam os golpistas representaram a continuação do mesmo projeto político. Só que com sorrisos, ironizou — FHC e seus sequazes gostavam de aparecer na mídia rindo, o que motivou Leonel Brizola a lembrar que rico ri à toa.
Vargas, Kubitscheck, Goulart e Lula ousaram mexer na estrutura de poder que foi erigida para mandar no Brasil, mesmo que timidamente. A reação da elite foi contundente. Eram medidas, para ela, inaceitáveis. FHC deixou isso claro em uma entrevista ao jornal suíço Le Temps. Segundo ele, a esquerda ”ainda pensa que precisa ocupar a máquina estatal para reformar a sociedade”. “É exatamente por causa dessa promiscuidade que nasceram os escândalos em que (o governo) está implicado”, afirmou. Na avaliação do ex-presidente, a “sociedade” deve ser independente do Estado. “O PSDB faz menos retórica e tem uma visão mais republicana na relação entre partido e Estado”, disse
A falta de rigor e de integridade da direita se justifica pelo fato de ela existir unicamente para preservar seus próprios privilégios. Mais ou menos na mesma época, Lula mostrou o que a direita quer dizer com seu “ideal republicano”. Em uma referência à figura de Tiradentes (Joaquim José da Silva Xavier, 1746-1789), ele disse que estava na hora de tirar do alferes famoso a pecha de ”inconfidente”. Era, na verdade, um ”revolucionário”. Lula estava invocando a necessidade histórica dos ideais da Revolução Francesa e da Independência Americana, impedidos de prosperar no Brasil pela ação do “ideal republicano” proclamado por FHC.
O Brasil, segundo Lula, precisa valorizar a sua luta pela independência. ”Vejo muita gente falar o seguinte: aqui nasceram, aqui moraram os inconfidentes. Inconfidentes para quem, cara pálida? Para quem Tiradentes era inconfidente? Ele era inconfidente para a Coroa portuguesa. Na verdade, eles eram revolucionários, que lutavam pela independência do Brasil, para que as riquezas produzidas nesta região ficassem aqui”, disse. ”Acho que quem sabe seja um bom tema para que os nossos historiadores comecem a discutir daqui para a frente. Porque, veja, ele foi um homem que pensou na independência do Brasil. Foi morto. Esquartejado, salgaram a sua carne. Mas as idéias dele continuaram”, afirmou.
Espaços aos conservadores na República
Não é possível negar que havia um movimento pré-revolucionário nas Minas Gerais. Tanto que os “inconfidentes” aguardavam a “derrama” para iniciar a insurreição. Aquela seria o ponto culminante da crise que atravessava a capitania e que iria aumentar a indignação do povo, facilitando o levante. Basta recordar a feroz repressão das autoridades coloniais ao movimento liderado por Tiradentes para reconhecer o que ele representava. A República a que aspiravam os partícipes daquele ato patriótico era um símbolo de independência e progresso. Eles planejavam industrializar o país, acabar com os monopólios coloniais, cessar a exportação do ouro e aproveitar as riquezas minerais do país.
Certamente, as autoridades coloniais — como os donos do poder hoje em dia — não eram imbecis. Sabiam perfeitamente o que faziam. E ao punir com tamanho rigor a “inconfidência mineira”, ao arrastar seu processo por três longos anos, ao fazer a execução de Tiradentes uma vasta encenação pública — como uma severa advertência aos sonhadores da liberdade — tinham perfeita consciência que aquele movimento havia conquistado a simpatia do povo. E a melhor prova disso é que entre ele e a independência política do país medeiam pouco mais de três décadas. Proclamada a República, o país continuou a conviver com a disputa entre o progresso e o atraso.
A tentativa inicial de conciliar aspirações das forças conservadoras e progressistas, traduzida nas vacilações do marechal Deodoro da Fonseca, encontrou réplica enérgica em Floriano Peixoto. Os florianistas se consideravam, com razão, os revolucionários do novo regime. Foram eles que deram base para iniciativas como a tarifa protecionista de Rui Barbosa para favorecer a fundação da indústria brasileira (taxava entre 45% e 60% cerca de 300 artigos de importação). E, segundo o historiador Pedro Calmon, chegaram a sonhar com a expulsão do capital estrangeiro do país. Logo depois houve um recuo — ao impulsivo Floriano Peixoto substitui o chamado “homem moderado”, Prudente de Morais. Ele é o retrato escandaloso da história de concessão de espaços aos conservadores na República.
Primeira ação de gangsterismo
Hoje, a direita continua com o mesmo pensamento. Quando o oligarca Jorge Bornhausen, um dos capos da “era FHC”, falou em se livrar dessa “raça” (a esquerda) ele não fez mais do que repetir o barão de Cotegipe, quando, contrariado com a Abolição, disse que dom Pedro II havia ”redimido uma raça”. Falaram do povo que, como “raça”, não pode ir além do limite que a direita estabeleceu para a sua mobilidade na pirâmide social. As privatizações e o papel do Estado dizem muito a respeito dessa diferença de ideais lembrada por FHC e confirmada por Bornhausen, tão bem retratados pelos propósitos prudentinos e florianistas.
O ideal progressista defende que o Brasil entrou firme em sua fase moderna quando o Estado deu prioridade à acumulação de capital físico (máquinas, equipamentos e instalações industriais) — política adotada sobretudo pela “era Vargas” basicamente por meio do BNDES, da Telebrás, da Eletrobrás, da Siderbrás, da Nuclebrás e da Petrobrás. O outro ideal, o conservador, é abertamente contrário à participação do Estado na economia. Para os conservadores, as estatais se chocam com as capitanias hereditários dos dias atuais — os monopólios privados — e por isso devem ser eliminadas. Os tucanos executaram essa premissa com requintes de perversidade.
A primeira ação de gangsterismo ocorreu quando José Serra arquitetou a privatização do Banco do Estado de São Paulo (Banespa). Tudo começou no dia 29 de dezembro de 1994, quando o governador tucano Mário Covas recebeu a visita do então presidente do Banco Central (BC), Pérsio Arida, com uma carta pela qual o Estado pedia a intervenção no Banespa — a mesma que havia sido aceita, pouco antes, pelo então governador carioca, o também tucano Marcelo Alencar, e que resultou na intervenção no Banco do Estado do Rio de Janeiro (Banerj).
Covas recusou a trama e exigiu de Arida uma justificativa para a proposta da equipe econômica. A resposta nunca veio e o imbróglio acabou com a demissão de Arida. Mas a intervenção aconteceu e o Banespa acabou em mãos privadas. Ao longo do processo, holofotes poderosos varreram o caso e revelaram a essência de como a “era FHC” administrou a economia do país. O então editor da revista CartaCapital Carlos Drummond reconstituiu o caso com a minudência de um arqueólogo.
Truque de Mandrake
A reportagem, baseada em depoimentos e documentos fartamente reproduzidos, é uma minuciosa descrição da reunião de 7 de agosto de 1995, na sede do BC em São Paulo, quando foi apresentado o relatório da comissão de inquérito que durante sete meses apurou “irregularidades” no banco. Com nomes, locais, datas e diálogos, a revista divulgou que naquele dia a comissão anunciou duas decisões: denunciar algumas irregularidades ao Ministério Público e arquivar o inquérito. “O processo tem de ser arquivado porque não há patrimônio líquido negativo e o devedor principal é o próprio governo do Estado, que está negociando com o BC uma forma de amortização da dívida”, receitou, segundo a revista, o funcionário Carlos José Braz Gomes de Lemos, relator da comissão de inquérito.
Mas o então diretor do BC Alkimar Moura, presente à reunião, achou pouco e aceitou uma sugestão: avermelhar falsamente o balanço do Banespa. O artifício foi considerar toda a dívida do governo paulista com o banco como crédito em liquidação. Segundo a apuração de Drummond, o BC praticou uma repreensível “manobra contábil”: no dia da intervenção, o Banespa tinha um patrimônio líquido positivo de R$ 1,7 bilhão e a dívida do Estado, no total de R$ 9,4 bilhões, estava em dia, com a exceção de “uma pequena parcela de R$ 25 milhões vencida”. “Isso significa que, no dia em que se fez a intervenção, não havia passivo a descoberto, ou seja, créditos sem perspectiva de recebimento”, afirmou a revista.
Em um truque de fazer Mandrake parecer aprendiz, um saldo de patrimônio líquido positivo de R$ 1,7 bilhão foi transformado em patrimônio líquido negativo de R$ 4,2 bilhões. Os principais protagonistas da trama eram basicamente tucanos paulistas, que começaram a se organizar numa espécie de confraria ainda no governo estadual de Franco Montoro, eleito em 1982 pelo PMDB.
Revoada de tucanos
Na ocasião, Orestes Quércia já era o principal líder do PMDB no Estado e aceitou, em nome da unidade, ser vice de Montoro. FHC foi eleito senador pela sublegenda, de carona. Mário Covas foi nomeado prefeito de São Paulo e José Serra assumiu como o poderoso secretário de Planejamento. Sérgio Motta — ministro das Comunicações no governo FHC —, assumiu a presidência da Eletropaulo. Paulo Renato e Bresser Pereira ficaram com o controle das finanças.
Na sucessão de Montoro, o empresário Antônio Ermírio de Moraes, pelo PTB, era um dos concorrentes de Quércia ao cargo de governador e não lançou candidatos ao Senado. Covas e FHC eram os candidatos a senadores pelo PMDB. A deputada peemedebista Ruth Escobar — que mais tarde virou tucana de carteirinha e num banquete chamou Lula de “aquele mecânico” — criou um grande comitê Ermírio, Covas e FHC. Em seguida, pipocaram comitês semelhantes pelo Estado. Foi a senha para a criação do PSDB.
Em 1995, a revista VIP publicou uma reportagem com relatos surpreendentes. Em 1990, quando Covas ficou fora do segundo turno, disputado entre Luiz Antônio Fleury e Paulo Maluf, houve uma revoada de tucanos para a candidatura do PMDB. José Serra foi um dos primeiros a apoiar Fleury. Segundo a VIP, Vladimir Rioli foi um dos caixas da campanha do PSDB e sempre transitou pelas cercanias das finanças do Estado. Com a vitória de Fleury, Antônio Cláudio Sochaczewski, o Socha, veio de uma das diretorias do BC para assumir a presidência do Banespa e Rioli, que havia sido diretor do banco na gestão Montoro, assumiu a vice-presidência de finanças — de onde saiu, misteriosamente, em 1993.
Atentados à Constituição
Como integrante da Comissão de Privatização da Cosipa (Companhia Siderúrgica Paulista), Rioli havia sido acusado pelo Tribunal de Contas da União (TCU) de desviar US$ 14,1 milhões. Rioli declarou à VIP: “Não havia um apoio formal do PSDB ao governo Fleury. Era um canal aberto de um grupo de pessoas dentro do partido com o governo.” A VIP fez uma lista enorme de casos de negócios irregulares dos economistas do PSDB à frente do Banespa. Pouco tempo depois, dia 7 de agosto de 1996, CartaCapital denunciou a monumental fraude para intervir no banco e mais tarde privatizá-lo.
Segundo a revista, no dia 7 de agosto de 1995 Carlos José Braz Gomes de Lemos, o relator da comissão de inquérito, leu os trabalhos da comissão de inquérito que investigou as causas da intervenção, que indicavam algumas operações de crédito a empresas privadas (empréstimos concedidos pelos economistas ligados a José Serra no governo Fleury) e mostravam indícios de irregularidades. Os detalhes da fraude nunca foram contestados de maneira convincente. Segundo CartaCapital, por mais de uma vez o diretor do BC Alkimar Moura disse que o objetivo era “pegar o Quércia” — então inimigo visceral dos tucanos.
Os tucanos também respondem pelo copioso capítulo de atentados à Constituição de 1988 na “era FHC”. Além do fim do monopólio do petróleo, acabaram com a aposentadoria, liquidaram direitos sociais e desmontaram a infra-estrutura do país com as privatizações. Como resultado, o Brasil, assim como outros países da América Latina, cumpriram penosamente o ciclo neoliberal. E deu no que deu.