Simplesmente Edíria (1920-2011)*
Nasce a artista e militante comunista
Edíria Carneiro nasceu em 1920 na cidade de Salvador. Sua mãe era muito católica, mas seu pai era um juiz de idéias bastante avançadas para época. Muito cedo ela se interessou pela cultura, por isso ingressou na Escola de Belas Artes. Neste período começou a participar do movimento estudantil e colaborou, como ilustradora, na revista Seiva, dirigida pelo comunista João Falcão. Vendo o seu interesse por temas políticos e sociais, o jovem Mário Alves a recrutou para o PC do Brasil.
Por sua atuação, acabou sendo eleita delegada ao Congresso da UNE, que se realizou no Rio de Janeiro em julho 1945. Comentaria ironicamente: “votaram em mim porque me consideravam mais simpática ou com mais coragem de sair da Bahia naqueles tempos de fim de guerra”.
A viagem de navio foi uma festa. Nenhum dos jovens estava muito preocupado com a ameaça representada pelos submarinos alemães. Apenas o comandante pensava nisso. Quando escurecia, mandava apagar todas as luzes e cobrir as escotilhas para não chamar a atenção de possíveis inimigos. Por segurança, também parava os motores à noite, atrasando a viagem. As famílias dos passageiros acabaram entrando em desespero com o atraso e a falta de notícias. Temiam pelo pior.
A vida cultural e política no Rio de Janeiro cativaram a jovem Edíria que decidiu não voltar mais para Bahia. Passou a morar e militar no bairro de Ipanema. Um dia perguntaram-lhe se queria ser ilustradora do jornal comunista A Classe Operária e ela aceitou de pronto. O editor-chefe era Maurício Grabois da qual se tornou admiradora e amiga.
Na sede nacional do Partido, onde funcionava o jornal, é que conheceria João Amazonas. No início o achou meio reservado. Um belo dia, pensando que todos os dirigentes haviam saído, ela e uma amiga resolveram conhecer os demais andares do prédio. Para surpresa delas, no quarto andar, encontraram João e começaram a conversar. Foi essa a primeira vez que Edíria teve a oportunidade de falar com aquele que seria seu companheiro por toda vida.
Passado alguns meses, em meados de 1947, houve uma festa partidária. As festas eram comuns naqueles anos em que o PC do Brasil desfrutava de legalidade. Edíria estava um pouco deslocada, quando João chegou e, gentilmente, convidou-a para dançar. Ele já era deputado federal e tinha realizado uma brilhante campanha para o Senado, no qual conquistara um honroso segundo lugar.
Ao final do baile, João perguntou-lhe se desejava ir ao cinema. Ela, sem perder tempo, aceitou a proposta.. Naquela noite os dois comunistas assistiram Sempre no meu coração. Nada mais adequado. Assim começou o namoro que duraria cerca de 55 anos.
Contudo, esse tempo de relativa liberdade logo terminaria. Em agosto de 1947, o PC do Brasil teve cassado seu registro e em janeiro do ano seguinte seus parlamentares perderiam seus mandatos, entre eles João Amazonas. Era o início da Guerra Fria e iniciava-se uma dura repressão aos comunistas. Sem mandato e imunidade parlamentar, Amazonas passou a ser procurado pela polícia e entrou na clandestinidade.
Tempos clandestinos
Amazonas foi para São Paulo, contudo, antes de partir, perguntou se Edíria queria morar com ele. Mesmo prevendo a difícil vida que a esperava, aceitou alegremente o convite e também mergulhou na clandestinidade. A ordem do Partido era partir sem dizer nada para ninguém, como se fosse a um passeio. Viajou num trem noturno levando apenas uma bolsa contendo apenas o estritamente necessário.
Alguém havia lhe reservado um quarto de pensão e quando chegou, telefonaram para João avisando que “Amélia” já estava em São Paulo. Alguns dias depois recebeu um comunicado que deveria deixar a pensão e ir ao encontro dele. Daí por diante passaram viver juntos.
Naqueles anos a relação com os outros membros da Comissão Executiva do Partido Comunista dava-se por meio de Apolônio de Carvalho e sua esposa. Os contatos eram feitos através das companheiras desses dois dirigentes nacionais: Edíria e Renée. As duas amigas encontravam-se “casualmente” em igrejas e jardins públicos levando sacolas iguais. Depois de uma rápida conversa uma pegava a sacola da outra. A missão estava cumprida. Dentro dos embrulhos estavam as correspondências secretas, além de livros e revistas.
Em 1950 o casal voltou para o Rio de Janeiro. A vida clandestina trouxe inúmeras dificuldades à família Amazonas. Quando a primeira filha ia nascer, João estava acompanhando uma greve em São Paulo. Edíria, como combinado, foi ter o filho num hospital em Laranjeiras, mas descobriu que não tinha dinheiro para pagar e ninguém estava lá para socorrê-la. Ela fingiu que estava doente e ficou deitada pensando apenas como sair daquela situação embaraçosa. Certo momento ficou tão deprimida que acabou chorando. A enfermeira entrou no quarto, notou as lágrimas e pensou que havia sido abandonada pelo ‘pai da criança’.
Aflita, Edíria esperou a chegada da senhora que morava com ela e lhe pediu que procurasse Déia Paraguassu, companheira de Diógenes Arruda Câmara. No dia seguinte, Déia foi visitá-la e resolveu a situação. Então, finalmente, pode deixar a maternidade com a pequena Zélia, a filha recém-nascida. Somente alguns dias depois, João conseguiu vê-la e soube o que tinha acontecido.
Quando do nascimento do segundo filho, em 1953, Amazonas também estava acompanhando movimentos grevistas em São Paulo. Conseguiu chegar dois dias antes do nascimento de João Carlos. Contudo, menos de um mês depois viajou para a União Soviética, onde permaneceu por dois longos anos. Ele chefiava um grupo de militantes que faria um curso de aprofundamento em marxismo-leninismo.
Edíria ficou com os dois filhos pequenos e foi morar com a esposa de Mário Alves, que também tinha ido para União Soviética. Era uma casinha no pé de um morro que não tinha água. Havia apenas uma bica distante e elas tinham que carregar latas de água na cabeça até a casa onde moravam. Ao contrário do que diziam os conservadores, a vida das famílias dos dirigentes comunistas não era nada fácil.
Neste momento, foi convocada a fazer o Curso Stalin. Não tendo com quem deixar as duas crianças, levou-as consigo. “Foi um sufoco!”, exclamou mais tarde. Saiu-se tão bem que foi convidada por Jacob Gorender para ministrar algumas aulas. Ela resistiu, pois era muito tímida. Contudo, não podia recusar tão gratificante tarefa. O lugar escolhido para sua estréia foi a estratégica base dos marítimos, uma das mais importantes do país.
A sede da Escola dos Marítimos ficava em São Gonçalo, Rio de Janeiro. Além das aulas, a professora Helena — esse era o seu nome de guerra – dava palestras sobre as teses do IV Congresso que se realizaria em 1954. Essas atividades, destinadas aos amigos e simpatizantes, serviam para recrutar novos membros para o PC do Brasil. Ela ficou muitos meses cumprindo esta gratificante tarefa na área da formação. Um dos seus maiores orgulhos foi saber, durante o congresso, que aquela base operária tinha sido a que mais recrutou membros, graças ao seu trabalho de professora.
Quando Amazonas voltou, se opôs que Edíria continuasse dando aulas naquelas condições. Achava que poderia representar um perigo para a segurança dela e do núcleo dirigente. Mas, o secretário de organização, Diógenes Arruda, ainda a enviou para dar algumas palestras aos operários de Morro Velho, Minas Gerais. Cumprida esta tarefa chegou ao fim sua carreira de professora dos cursos partidários. Edíria e seus filhos voltaram à vida nos aparelhos desertos.
João estava novamente na União Soviética quando do nascimento de Helena, a terceira filha. Quem ia fazer o parto era a Maria Grabois, irmã do Mauricio. No entanto, ela atendia num hospital em Copacabana e Edíria morava em Del Castilho, subúrbio do Rio de Janeiro. Quando estava para nascer a filha, tomou um táxi e no caminho parou numa Casa de Saúde para averiguar a situação. O médico bstante preocupado disse: ‘já vai nascer’. Então, ela acabou dando a luz ali mesmo em Piedade, bairro Bonsucesso.
Amazonas e Edíria, por razões de segurança, mudavam-se constantemente. Chegaram a perder as contas do número de casas em que moraram entre 1948 e 1957. Estima-se que foram mais de 16 locais. Isso representava uma dificuldade extra, especialmente para as crianças. Elas viviam trocando de escolas e às vezes até de nome. Não fincavam raízes e nem podiam cultivar amizades mais permanentes.
Comunistas a céu aberto
Em 1958, depois que havia sido destituído do secretariado do Comitê Central, João Amazonas foi transferido para o Rio Grande do Sul. Essa mudança coincidiu com o momento de redução das perseguições políticas e o fim dos pedidos de prisão preventiva. Este era um compromisso que havia sido assumido pelo presidente Juscelino Kubitschek, eleito com apoio dos comunistas. Assim, todos os seus dirigentes puderam voltar à legalidade e colocar sua vida em ordem.
João e Edíria aproveitaram a conjuntura favorável para legalizar sua situação. O casamento civil e o registro das crianças se deram em Niterói, no cartório do camarada Lincoln Cordeiro Oest. O ex-deputado paraense Agostinho de Oliveira, propôs que se fizesse uma festa de casamento e de despedida para a família Amazonas, que estava se mudando para Porto Alegre. O evento foi muito animado. Os convidados dançaram a noite toda ao som de um velho rádio.
Aqueles anos representariam uma verdadeira revolução para eles, pois puderam romper com a angustiante vida clandestina. Em Porto Alegre, fizeram muitos amigos, iam ao cinema e ao teatro. Amazonas dirigia o partido no estado e Edíria integrou-se a uma célula de artistas e intelectuais. Ali pode voltar a freqüentar exposições e tornou-se aluna do renomado pintor Iberê de Camargo.
Contudo, no final de 1961, a decisão de romper com Prestes e reorganizar o PC do Brasil, levou a uma nova modificação na vida de Amazonas e sua família. Afinal, ele era profissional do Partido há muitos anos e precisava refazer sua vida. Necessitava principalmente arranjar meios de sobrevivência para continuar sua ação revolucionária.
João e Edíria passaram por enormes dificuldades materiais. No Natal de 1961 não tinham nem mesmo como dar presentes para os filhos. Foi preciso que um casal de intelectuais comunistas, Riopardense Macedo e Leda Maria, dessem uma festa e distribuíssem brinquedos as crianças. Todos ficaram muito emocionados e jamais esqueceram aquele ato de solidariedade.
As necessidades impostas pela reorganização do Partido levaram que Amazonas deixasse o Rio Grande do Sul e fosse para o Rio de Janeiro. No entanto, estavam sem um tostão. Os móveis e algumas roupas tiveram que ser vendidos para que conseguissem algum dinheiro para as passagens.
Inicialmente, Edíria e as crianças ficaram na casa da antiga babá. Depois, com apoio do pai, foram para Bahia e ali permaneceram menos de dois meses. Neste ínterim João conseguiu alugar um bom apartamento em São Paulo para onde acabou se mudando com a família. A situação financeira, no entanto, continuava crítica. O casal tinha um apartamento, mas ainda não tinha os móveis. Aproveitando os seus conhecimentos de artista plástica, Edíria conseguiu um emprego de estilista numa confecção paulista. Com esse salário começou lentamente a mobiliar seu novo lar.
Ainda no primeiro ano que estava em São Paulo, o SESC organizou o chamado Salão do Trabalho. Edíria enviou três xilogravuras e ganhou a medalha de ouro. A instituição ainda ficou com os três quadros. Com o dinheiro do prêmio e das vendas comprou presentes de Natal para as crianças e completou o mobiliário da casa. Mais tarde Edíria conseguiu um emprego no Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP).
Enquanto isso, Amazonas se envolvia de corpo e alma no trabalho de reorganização do PC do Brasil. A sede d’A Classe Operária ficava no Rio de Janeiro. Por isso, viajava muito e somente nos finais de semana podia estar com a família. Aos domingos ia ao Ibirapuera, onde as crianças andavam de patins e corriam pelo parque. A situação parecia estar melhorando, mas isso não duraria muito tempo. Estávamos nas vésperas do golpe militar.
Tempo fechado, temperatura sufocante e ar irrespirável.
Com a instauração da ditadura, Amazonas entrou novamente na clandestinidade. Eles não podiam mais se ver nos finais de semana. Passaram a ter encontros em “pontos” na rua e às vezes eram levados para algum aparelho partidário, que nem ao menos sabiam onde ficava.
Essa situação não era nada fácil para as crianças. Aos filhos mais velhos Edíria contou tudo o que ocorria. João não podia vê-los porque a ditadura estava atrás dele. O mais difícil era explicar para Helena, a caçula, com apenas sete anos de idade. Um dia ela perguntou: “Mamãe, você não tem arrependimento de ter se casado com o pai? Ele nem liga para nós”. Seguindo a sugestão de João, mesmo sem saber se a menina entenderia, Edíria buscou pacientemente explicar a situação.
O casal Amazonas recebeu a notícia da decretação do AI-5 pelo rádio, quando estava num “aparelho” em São Paulo. Até aquele momento ainda podiam dar-se ao luxo de se encontrar algumas poucas vezes. O recrudescimento da repressão e as necessidades impostas pela montagem da guerrilha no Araguaia levaram que Amazonas se afastasse ainda mais de sua família. De vez em quando, alguém telefonava querendo saber como estavam as coisas.
Quando ocorreu a Chacina da Lapa, em dezembro de 1976, Amazonas fazia uma visita oficial à China. Não podendo mais voltar ao Brasil, estabeleceu-se na França. No exílio foi constatado que padecia de uma doença grave. Edíria foi ao seu encontro e resolveu ficar definitivamente no exterior. Para isso teve que se afastar dos filhos — que já estavam crescidos — e o emprego público.
Edíria resolveu retomar os estudos e matriculou-se no ateliê de Stanley Hayter, um artista gráfico mundialmente conhecido. Além de não ser caro, fornecia atestado para os alunos estrangeiros apresentarem às autoridades de imigração, condição para permanecerem na França. Ela aproveitou o exílio para visitar as galerias e exposições. Chegou mesmo a apresentar trabalhos em várias delas.
Mesmo no exterior, João Amazonas vivia clandestino, com identidade falsa. Passava-se por português cujo sobrenome era Pereira. A segurança ainda era necessária, pois a polícia política brasileira mantinha sob vigilância os líderes oposicionistas no exterior. Uma vez João e sua família — os filhos os estavam visitando em Paris — foram seguidos por vários homens que suspeitavam fossem policiais brasileiros. Quando estavam no metrô, para se desvencilhar deles, ameaçaram descer numa estação parisiense. Foram até a porta e Helena saltou. Os homens saltaram em seguida, mas ela rapidamente voltou ao vagão e os supostos policiais ficaram do lado de fora. Uma verdadeira cena de filme de suspense policial.
Voltando e pintando o amanhã.
A notícia da anistia foi recebida com festa pelos exilados. João ficou eufórico, queria arrumar tudo, distribuir as coisas que não podia trazer ao Brasil. Viajou em 24 de novembro. Edíria seguiria alguns dias depois, pois tinha que organizar os pertences familiares e acertar a entrega do apartamento no qual viviam. Desde que voltou ao Brasil ela foi – ainda que timidamente — retomando sua produção artística, aproveitando-se de tudo que havia aprendido em Paris
Em 2002 o estado de saúde de João Amazonas piorou e ele veio a falecer. Quando estava nos seus últimos momentos de vida, diante da recusa em alimentar-se, foi-lhe perguntado: “Seu João, do que é então que o senhor gosta? E ele respondeu incontinente: “Eu gosto mesmo é de Edíria!”. Em cartas ainda se referia a ela como minha eterna namorada. Este é um lado do grande dirigente comunista que ainda é pouco conhecido.
Apesar das dificuldades crescentes, fruto da idade avançada, Edíria manteve uma ativa militância político-cultural. Extraordinariamente, nos últimos anos, tinha inclusive aumentado o ritmo de sua produção artistica e de participações em exposições. Destaque especial merece as realizadas sob patrocínio da Escola Florestan Fernandes – ligada ao MST — da Fundação Maurício Grabois — vinculada ao PCdoB – e da União Brasileira de Mulheres (UBM). Ela doou várias de suas obras para entidade ligadas às lutas sociais. Sendo, por isso mesmo, homenageada por essas instituições.
Durante toda sua vida — desde que era estudante de “belas artes” na Bahia – sempre procurou vincular sua obra ao projeto de emancipação social. Uma de suas últimas séries de quadros era intitulada As excluídas. Um sensível panorama da opressão que ainda sofre as mulheres trabalhadoras em nosso país e no mundo. Edíria viveu e morreu como verdadeira artista comunista.
– Vejam comunicado do Comitê Central do PCdoB
* Utilizei-me amplamente das entrevistas feitas, em ocasiões diferentes, pela equipe composta por mim, Pedro de Oliveira, José Carlos Ruy, Fernando Garcia e Priscila Lobregati. Aproveitei também de outras entrevistas concedidas a Olívia Rangel, Osvaldo Bertolino e Mazé Leite.
** Augusto C. Buonicore é historiador e secretário geral da Fundação Maurício Grabois