O povo brasileiro, tal qual ele é
Todos os povos fazem festas, porém o Brasil é o povo da festa. Do Oiapoque ao Chuí tudo é pretexto para festa, seja reunindo multidão ou pouca gente. Datas religiosas ou profanas, patrióticas, de frutas, legumes, peixes, animais; tudo pode ser pretexto. É simbólico que diversos municípios disputem a titularidade da Festa do Jumento. O pretexto pode ser de uma festa relíquia do passado ou, então, a adaptação de um plágio importado. A festa também pode surgir de um fato particular ou, simplesmente, pela busca de convívio de um pequeno grupo.
Festejar o Ano Novo tem múltipla origem religiosa. Essa festa vem atravessando inovações tecnológica e sociais. Como carioca, quero sublinhar que, no Rio, se realiza a mais prodigiosa festa de Ano Novo.
A festa do Rio apresenta, sem qualquer arrogância, o povo brasileiro, tal qual ele é. Convivial, amistoso
Em todo o Brasil, tradicionalmente há a tendência a se aproximar da água na passagem do Ano Novo. Sem qualquer pretensão histórica quanto à festa do Rio, pode-se afirmar que é antiga, mas não custa relembrar que o salto tecnológico do festejo em Copacabana com a inclusão do festival de fogos de artifício foi iniciado há menos de 25 anos, por um hotel. A inovação foi rapidamente adotada pela rede turística e a praia foi sendo, sucessivamente, povoada por palcos musicais.
O prefeito de Nova York sublinhou que quase dois milhões de espectadores participaram com a maçã na Times Square; nesta mesma noite, no Rio, debaixo de uma forte chuva, mais de dois milhões de brasileiros reuniram-se na praia de Copacabana. É um prodígio de festa de multidão; a região metropolitana de Nova York é muitas vezes maior que a do Rio. Também houve festa nas praias atlânticas do Leme até Recreio, no Flamengo, Sepetiba, Guaratiba, Paquetá e no Piscinão de Ramos. Quem não chegou a uma praia ficou pela praça, como na Penha. Obviamente, em todas as cidades brasileiras houve festas intensas na passagem do ano.
O povo carioca ocupa, mansa e pacificamente, os quilômetros quadrados de areia. Todas as idades, gêneros, tribos, famílias “ampliadas”, grupos de amigos e religiosos convivem com violência zero. Tudo isso mostra que é uma grosseira mentira dizer que o Rio é violento.
Esse ano, todas as comunidades debruçadas sobre o mar acolheram espectadores nas suas lajes (antes, as plateias se acumulavam nos apartamentos do colar art-deco que envolve Copacabana). É lindo ver a ampliação da plateia festeira para as lajes das habitações populares.
A festa do Rio apresenta, sem qualquer arrogância, o povo brasileiro, tal qual ele é. É a moldura de suas dimensões: sem preconceitos em qualquer dimensão, convivial, tranquilo com as diferenças, sem inibições, amistoso, cordial e acolhedor, e com repudio a qualquer violência. Quem participa da festa brasileira toma um banho de civilização.
Não necessitamos de arrogância, nem de auto-exaltação. Está fora de moda exaltar as características de nosso povo, que tem, dentro de si, uma linda promessa de civilização, mas precisamos, sim, perceber as potencialidades de nossa identidade.
A preliminar para um projeto nacional de desenvolvimento civilizado exige a integração de todos os brasileiros no estilo do Ano Novo. É necessário reconhecer que, no espírito festeiro está nosso futuro. É conveniente que, sem orgulho e mansamente, explicitemos as qualidades de nosso povo como o ingrediente-chave de nosso futuro.
A festa não é um ópio, que retira energia e produtividade de nossa gente; ao contrário, ela é reposição, reiteração e amplificação de nossa identidade. Foi, historicamente, o ritual de confirmação da pertinência do brasileiro às vizinhanças de seu lugar de moradia, no popular que diz “lá, todo mundo me conhece e eu conheço todo mundo”. É com esta frase que o popular brasileiro apresenta sua identidade.
É um sonho, porém não é uma utopia, imaginar que o brasileiro, amante de seu lugar de moradia, faça do Brasil o espaço de sua identidade nacional. Quem organiza enormes festas, quem se arregimenta nas esfuziantes torcidas de futebol, quem (nas palavras de Nelson Rodrigues) se converte na “Pátria de chuteiras”, tende a evoluir para o projeto civilizatório do futuro desenvolvimento nacional.
A festa é uma aula sobre a nação, e a juventude, dela participando, poderá ser a alavanca do amanhã.
* Carlos Lessa é professor emérito de economia brasileira e ex-reitor da UFRJ. Foi presidente do BNDES
Fonte: Valor Econômico