Espanha: crônica de um país devastado
Não me lembro de momento nenhum da minha vida em que existisse unanimidade tão grande quanto a dos prognósticos sobre a economia no Estado espanhol. O chefe de Estado, Rei Juan Carlos; o novo presidente do governo espanhol; as lideranças de todos os partidos (sejam de esquerda ou direita; as lideranças sindicais dos trabalhadores e dos empresários; os dirigentes do FMI, do Banco Central Europeu (BCE) e da Comissão Europeia; assim como os pesquisadores da OCDE e dos distintos institutos públicos ou privados de pesquisa econômica mundo afora — todo mundo, enfim, garante: “a situação da Europa e da Espanha, já muito ruim, vai piorar!” E, ainda, “não há como saber quando vai recomeçar a recuperação do crescimento”.
Para além de discursos e declarações, a sociedade sabe que todos têm razão. Está na hora de viver na carne o desemprego, sem subsídio algum; e, pior ainda, sem perspectiva real de arrumar sequer algum bico, para ir em frente. Há seis meses, o secretário de Trabalho do governo catalão declarava para um jornal de Barcelona que “50% dos atuais desempregados não vão conseguir mais achar trabalho”.
O senhor secretário referia-se aos desempregados da Catalunha, se bem que há sobrados motivos para assegurar que essa afirmação serve também para o conjunto do Estado espanhol. Em algumas regiões, é até pior, dadas as perspectivas bem menores de investimentos. Sabendo que o número de desempregados é de quase 5 milhões (mais de 20% da população ativa), significa que 2,5 milhões de pessoas não vão conseguir trabalhar mais pra valer na sua vida.
É uma situação muito grave e cheia de conflito. Mas há de considerar ainda que a imposição de políticas de austeridade, sobretudo a partir da diminuição do gasto público e dos investimentos na área “social”, vai ter como decorrência imediata a liquidação dos subsídios para o desemprego e a diminuição do gasto para formação profissional e assistência social em geral. O crescimento do número de pobres, que já foi muito grande durante os últimos quatro anos, de acordo com dados dos governos e de organizações cidadãs, deve aumentar muito ainda.
E não é que faltem estudos e propostas que apontem soluções para tais problemas. Bem ao contrário: são prêmios Nobel de Economia, ex-funcionários do FMI e do Banco Mundial, intelectuais de esquerda, de centro e até da direita; estudiosos, pesquisadores e colunistas de todos os jornais e mídia… advertem que as políticas de “austeridade” e corte do gasto público só vão piorar as coisas. De um lado, deterioram as condições de vida para amplas camadas sociais; de outro, impedem a criação de condições para a retomada do crescimento econômico.
Vejam, por exemplo, Manel Pérez, analista do prestigioso (tanto quanto conservador), jornal diário La Vanguardia, de Barcelona: “A dinâmica continua sendo a da austeridade indiscriminada, a que devem submeter-se todos, tanto os que não têm mais chance, como é o caso dos [países] do sul da Europa, quanto os que desfrutam de um enorme superávit comercial. E isso significa caminhar para a deflação, condenando as economias em crise a endividar-se a cada vez mais…”
Veja-se ainda que o governo da União Europeia aprovou medidas que fazem com que “os bancos tenham, agora ‘barra libre’ (direito de tomar empréstimos sem limite) para comprar dívida pública com um argumento excitante: retiram os fundos do BCE a 1% de juros ao ano para comprar letras a 6%”.
A coisa tem todo o jeito de absurdo. Mas, como poderia ser um absurdo, quando estamos falando dos governos e os bancos da velha Europa – onde nasceu o capitalismo e floresceram os impérios coloniais? Até onde pode-se enxergar, parece meridianamente claro que se consumou a destruição do pacto social que fez possível estado do bem-estar na Europa do pós- II Guerra Mundial. Desde essa perspectiva é possível entender a inversão de prioridades de quase todos os governos, a mudança de agenda e rumos.
A chamada “crise financeira” (o estouro dos jogos especulativos) dos últimos quatro anos pôs em evidência quem tem o poder e a força. Os bancos e especuladores foram salvos com o dinheiro público. Mas não foram os bancos que, em função disso, tornaram-se dependentes dos Estados. Ao contrário: os governos ficam cada vez mais presos aos bancos, aos especuladores e às chamadas agências de qualificação de risco.
A palavra de ordem dos executores das novas políticas de “ajuste fiscal” e “austeridade” é: “vocês viveram acima das suas possibilidades; agora, é preciso cortar os excessos”. Isso mesmo, o que até ontem era quase que unanimemente considerado direitos sociais e ou serviços públicos, agora é chamado de “viver acima das possibilidades”. E os novos governos, ditos de “técnicos”, que na Itália e Grécia nem sequer são produto de processos eleitorais, afirmam: “vocês terão o estado do bem-estar que possam pagar”. Ou seja, já não se preocupam sequer em utilizar eufemismos ou metáforas, para disfarçar as políticas que impõem
Diante desta situação, os grandes sindicatos da maioria dos países vêm tentando manter, pelo menos, o papel de negociador no conflito trabalhista. O problema é que mesmo isso é cada vez menos importante para os empresários e o capital. Na Espanha o novo governo central vai cortar boa parte das subvenções com as quais as confederações sindicais mantêm a estrutura de profissionais e serviços. Enquanto isso, o chamado “sindicalismo alternativo”, continua minoritário e sem capacidade de conflito.
Em outro terreno, os partidos social-democratas sofrem uma doença similar. Sabiam gerenciar o sistema, amortecer de certo modo os conflitos. Agora, pouco ou nada os diferencia dos partidos da direita. O Partido Socialista Francês é o único que, talvez, tente agora fazer oposição às políticas determinadas pelo atual pensamento único. Por sua parte, os velhos partidos comunistas praticamente sumiram (exceto na Grécia e Portugal, onde articulam-se com os Verdes e o Bloco de Esquerda).
Neste cenário de devastação e falta de horizontes, o surgimento dos “indignados” no Estado espanhol evidenciou de novo que o rei está nu! Os indignados deram uma virada na agenda do debate político (não na das políticas reais e concretas). Demonstraram, além disso, que há vida além do capitalismo, e que essa vida chama-se soberania popular, democracia real, justiça social, controle dos capitais e por aí adiante.
O recém-nascido movimento dos indignados fez muita coisa no curto espaço de tempo desde seu nascimento inesperado, em 15 de maio. Mas em 2012, enfrentará desafios mais duros. O lança roteiros e propostas. As forças sociais e políticas da esquerda ficaram na obrigação de dar retorno. Não há muito tempo, é verdade. Mas também é verdade que as políticas em curso devem ser chamadas de destruição em massa. Querendo ou sem querer, os povos terão de articular formas de resistência e para a alternativa.
Fonte: Outras Palavras