O cerco ao Irã
O Departamento de Estado dos EUA declarou no final do mês de dezembro que o Irã estava manifestando “comportamento irracional” ao ameaçar fechar o estreito de Hormuz, ponto de passagem de 20% do petróleo mundial. Algo improvável já que grande parte dos 2,2 milhões barris/dia (mais de 50% de sua receita) que o Irã exporta passa pelo Estreito e sua obstrução viria causar sérios danos em sua economia que já sofre com as sanções internacionais. Na verdade, a declaração do vice-presidente do Irã, Mohammad Rahimi, foi que “não passaria uma só gota de petróleo pelo Estreito SE o Ocidente impusesse sanções sobre as exportações de petróleo de seu pais”.
Como já é de costume, quando se trata dos países rotulados como rogue-states, a questão hipotética de uma agressão dos EUA foi simplesmente suprimida na grande imprensa internacional. O que fez com que a declaração do iraniano aparecesse como uma ameaça e não como uma provável reação a um ataque. Claro que não se trata de um simples problema gramatical, mas de sim de linguagem típica de um poder hegemônico.
O Irã voltou a ser objeto de preocupação da chamada comunidade internacional – isto é EUA, Inglaterra, França e Israel – após a divulgação do novo relatório da AIEA (Agencia Internacional de Energia Atômica), no dia 8 novembro 2011, sobre a possível construção de instalações nucleares para fins bélicos, em um momento de eleições nos paises envolvidos. Em março, o Irã realiza eleições parlamentares que se espera ser um confronto entre radicais e moderados, enquanto nos EUA os candidatos do Partido Republicano nos EUA já anunciam a necessidade de bombardear o Irã ao mesmo tempo em que criticam a “fraqueza” do presidente Obama.
A grande imprensa norte-americana, como sempre, deu sua prestimosa colaboração para acionar os tambores da guerra. The Washington Post e The New York Times estamparam em sua matéria de capa, um dia após a divulgação do relatório, a informação de que os investigadores da AIEA acumularam uma coleção de novas evidências de que o Irã manifestou objetivos bélicos em seu programa nuclear. No entanto em matéria publicada na revista The New Yorker (November 18, 2011 Iran and the IAEA.) Seymor Hersch, após entrevistar uma série de especialistas sobre o tema, concluiu que as alegações básicas no relatório não continham nada substancialmente novo.
Robert Kelley, ex-diretor da AIEA, Greg Thielmann, ex-funcionário do Departamento de Estado e especialista no tema, e a organização Arms Control Association, cuja missão é incentivar o apoio público para o controle de armas de destruição em massa, observaram que a AIEA apenas reforçou o que a comunidade internacional já sabia desde 2003. Ou seja, que o relatório da AIEA apenas aponta indícios preocupantes e não há nada que indique que o Irã está realmente construindo uma bomba.
Portanto, “um Irã com armas nucleares ainda não é iminente e nem é inevitável. Aqueles que querem angariar apoio para um ataque ao Irã estão deturpando o relatório”.
Patrick Pexton, ombudsman do Washington Post, e Arthur Brisbane, editor do New York Times, responderam às objeções dos leitores, dois meses depois, concordando que, em nenhum momento a AIEA chegou a fazer uma declaração conclusiva clara. Brisbane declarou ainda que a linguagem utilizada pelo NYT estava equivocada e que o NYT deveria corrigir sua matéria porque trata-se de um caso que uma frase não faz justiça a um conjunto de nuances reveladas pelos fatos. Sendo que a distinção a ser feita é importante porque “o programa iraniano tem aparecido como um possível casus belli (ver NYT Public Editor: IAEA ‘Stops Short Of Making A Clear Conclusive Statement’ On Iran Nuke Program http://thinkprogress.org/ By Ali Gharib on Jan 10, 2012).
Na retórica de muitos políticos e comentadores americanos e judeus, a República Islâmica do Irã é retratada como um regime que não pensa sua política externa em termos de interesses nacionais. Invocam cenários apocalípticos de um pais inclinado a usar armas nucleares contra alvos israelenses ou europeus, sem se importar com as conseqüências sugerindo que o Irã aspira, na verdade, à autodestruição. Pois é suficientemente conhecida a capacidade militar de Israel. Aliás, como já observou o analista do Air Force Research Institute, Adam Lowther, não apenas os judeus, mas os palestinos teriam razão de sobra para preocupação, porque um ataque nuclear contra Israel iria devastá-los também.
Na verdade todo esse alarde por parte dos EUA e Israel é insustentável e serve para camuflar aquilo que realmente é motivo de preocupação: a crescente importância estratégica do Irã e sua liderança na região do Grande Oriente Médio. Longe de ser o arauto do apocalipse, o sonho do Irã, que sempre foi um “ator racional”, é alcançar a hegemonia regional. Nos últimos oitos anos, o Irã construiu uma enorme rede de influência com xiitas e sunitas após os EUA derrubarem seus dois principais inimigos: o Talebã no Afeganistão e Saddam no Iraque; consolidou suas alianças com Hamas e Hezbollah, legitimados por seus êxitos eleitorais, tornando-se peça decisiva na Palestina e no Líbano.
No mesmo mês em que o relatório da AIEA foi publicado, os EUA anunciaram a assinatura de um acordo de venda de armas, munições, peças de reposição, treinamento de pessoal militar com a Arábia Saudita no valor de $30 bilhões. De acordo com oficial do Departamento de Estado, Andrew Shapiro, “essa venda irá enviar uma forte mensagem aos países da região que os Estados Unidos estão comprometidos com a estabilidade no Golfo e Médio Oriente.” Cabe lembrar ainda a fala do príncipe Turki al-Faisal (chefe de inteligência na Arábia Saudita ) em reunião ocorrida em uma base militar da OTAN no Reino Unido (os documentos foram revelados pelo Wall Street Journal 22/07/2011) que “o Irã é muito vulnerável no setor de petróleo, e é nele que mais poderia ser feito para coagir o atual governo”. Argumentou que “a Arábia Saudita tem plena capacidade de produção [reposição] de quase 4 milhões de barris/dia – que poderíamos quase instantaneamente substituir toda a produção de petróleo do Irã”.
Qualquer que seja o perfil de uma nova ordenação nuclear esta deverá ser o resultado da interação dos motivos pelos quais um Estado persegue a energia nuclear, a legitimidade das restrições e, principalmente, que o país possa ter sua segurança garantida. Assim, é compreensível que Israel não vai desistir de suas armas nucleares (elemento de dissuasão) até que as suas preocupações mais amplas de segurança sejam resolvidas (e talvez nem assim). Mas por quais motivos o Irã poderia ser convencido a suspender o enriquecimento nuclear sem que, da mesma forma que Israel, suas preocupações com sua segurança sejam levadas em consideração? (Stephen Walt, A non-proliferation puzzle. S Foreign Policy , May 6, 2010).
Portanto, a polêmica questão nuclear envolvendo o Irã só poderá ser realmente discutida se a comunidade internacional vinculá-la ao processo de paz na região. Por falar nisso, onde estão Brasil e Turquia que exerceram papel fundamental de mediadores da crise com Irã, em 2010, impedindo uma ação militar que parecia iminente?
* Reginaldo Nasser é professor de Relações Internacionais da PUC-SP e do Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp e PUC-SP)