Na madrugada de 27 de janeiro de 1922, a cidade de São Paulo foi acordada por um tremor. Janelas trepidaram, frascos de remédio pularam das prateleiras, ornamentos caíram de fachadas e animais entraram em alvoroço. “Terremoto”, estampou a “Folha da Noite” na manchete da edição daquela sexta-feira. O “movimento sísmico”, informava o vespertino, havia sacudido quase todo o Estado de São Paulo, atingira parte do sul de Minas e propagara-se até o Rio de Janeiro.

No dia seguinte, o jornal “O Estado de S. Paulo” dedicou uma página aos acontecimentos. Dizia que o fenômeno, “o primeiro na capital de tal intensidade”, provocara “impressionante rumor”. Muitos saíram às ruas, e o corre-corre sonâmbulo, em horário tão avançado, teria proporcionado, de acordo com a reportagem, um espetáculo “muito interessante”. Eugenio Egas, membro do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, comentou o “grande susto” de ver tudo “a oscilar” e classificou o episódio de “desagradável e perigoso”.

Embora as primeiras avaliações indicassem prejuízos superficiais, a “Folha da Noite” voltou ao assunto para dizer que danos mais graves poderiam ter ocorrido. Suspeitava-se que o viaduto do Chá, já mal das pernas, tivesse sido golpeado pela “manifestação telúrica”. Também parecia inspirar cuidados, de acordo com o jornal, a situação das edificações da avenida Angélica, no bairro de Higienópolis. Casas estariam balançando perigosamente à passagem de veículos carregados, num sinal de que os alicerces perdiam solidez.

A “Folha da Noite” cobrava inspeções técnicas dos órgãos competentes e aproveitava para lamentar que o Observatório Astronômico e Meteorológico, na avenida Paulista, se encontrasse “à míngua de sismógrafos e outros aparelhos”. Mal equipado, não conseguia prestar esclarecimentos detalhados – ao contrário do que era comum nas capitais da Europa.

O tremor, é claro, virou o assunto da cidade. Falava-se da ação de gatunos durante o rebuliço, dos estampidos de armas de fogo que ecoaram nos quatro cantos, do infeliz que sofreu um ataque cardíaco, do princípio de pânico em Ribeirão Preto e dos telhados tombados no Espírito Santo do Pinhal.

Alguns se divertiam e faziam piada; outros dramatizavam. Seria possível comparar o fenômeno aos que abalavam cidades da Itália ou do México? Houve quem escrevesse carta à imprensa para considerar exagerado o uso do termo “terremoto”; e também quem garantisse que alguns segundos a mais de vibração teriam reduzido tudo a “um montão de ruínas”.

Agitação

O jovem artista carioca Emiliano Di Cavalcanti, então com 24 anos, que voltava a São Paulo depois de uma temporada no Rio, sentiu seu leito deslizar enquanto dormia. Hospedava-se num hotel no centro da cidade e havia chegado tarde, acompanhado pelo advogado Vicente Rao, seu amigo, após uma noite “boemiando”.

Di recordou a agitação daquela madrugada em livro de memórias publicado em 1955: “Assim que me deitei senti a cama correr para a frente. Logo depois gritos de hóspedes, correria no corredor. Vesti-me depressa e, quando cheguei no meio da confusão enorme à porta da rua, um italiano gritava glorioso: ‘Eu sei o que é. É terremoto!'”.

Ainda atordoado, o pintor diz ter saído em disparada na direção do elegante Grande Hotel da Rôtisserie Sportsman, que ficava junto ao viaduto do Chá, no endereço em que depois seria erguida a sede das indústrias Matarazzo, hoje sede da Prefeitura da cidade. A Rôtisserie recebia o eminente escritor e diplomata Graça Aranha, que retornava ao Brasil após alguns anos na Europa. Segundo o relato do pintor, Graça já tinha pulado dos lençóis e bradava radiante: “É o Cosmos. O Cosmos!”.

A cena deve ter sido divertida – se realmente aconteceu. Em outra ocasião, Di afirmou que apenas telefonou para o ilustre visitante. A versão cômica das memórias parece corresponder à incontível vontade do pintor de fazer piada com as famosas elucubrações filosóficas do personagem, que pregava a integração do espírito humano à unidade do cosmos.

Trinta anos mais velho que o desenhista carioca, Graça Aranha estava em São Paulo naquele 27 de janeiro de 1922 para cuidar dos preparativos de um festival de artes, música e literatura que se realizaria no Teatro Municipal, intitulado Semana de Arte Moderna. Ele próprio faria a conferência inaugural do evento, que prometia marcar época.

No domingo, dois dias depois do terremoto, o “Correio Paulistano” noticiava que “diversos intelectuais de São Paulo e do Rio, devido à iniciativa do escritor Graça Aranha”, pretendiam apresentar no Municipal uma demonstração do que haveria de “rigorosamente atual” no mundo artístico, da escultura à literatura, passando pela música, pela arquitetura e pela pintura. O programa transcorreria “de 11 a 18 de fevereiro próximo” – e já se divulgava uma primeira lista de participantes.

O time paulista seria representado pelos escritores Guilherme de Almeida, Menotti del Picchia, Mário de Andrade e Oswald de Andrade; pelo escultor Victor Brecheret; e pela pintora Anita Malfatti, entre outros. Tarsila do Amaral -não é demais lembrar- encontrava-se em Paris, e não participaria da Semana.

Sinal dos tempos, os dois arquitetos da lista publicada pelo “Correio Paulistano”, Georg Przyrembel e Antônio Garcia Moya, eram, respectivamente, polonês e espanhol; o pintor John Graz, suíço; o escultor Wilhelm Haarberg, alemão; e Brecheret, embora “nosso”, um filho da Itália.

Diante de nomes nem sempre conhecidos, a reportagem destacava a presença, nas atividades musicais, de Guiomar Novaes, a grande celebridade paulista e nacional do piano, que nada tinha de modernista mas era garantia de presença de público. O jornal ressaltava também a oportunidade de São Paulo enfim conhecer o “extraordinário compositor brasileiro Villa-Lobos”, que chegaria com a caravana carioca, em companhia de poetas e artistas, como Ronald de Carvalho e Oswaldo Goeldi.

Mário x Cândido

Um press release distribuído pelos organizadores e divulgado por alguns órgãos da imprensa afirmava que a notícia da Semana fora recebida “com um frêmito de curiosidade” nas rodas intelectuais e “altamente mundanas” de São Paulo, o que seria natural, pois se tratava da primeira tentativa de realizar no Brasil “um certame dessa natureza”. O texto anunciava que o presidente do Estado, Washington Luís (ainda não se usava o termo “governador” naquele tempo), compareceria ao vernissage da exposição, que aconteceria no saguão do teatro. Previam-se agora – como de fato ocorreu – três apresentações, nos dias 13, 15 e 17 de fevereiro – respectivamente segunda, quarta e sexta.

A primeira delas seria dedicada à pintura e à escultura; a segunda, à literatura, e a terceira à música. O comunicado prometia para breve um programa mais detalhado e, no final, alertava: “Escusado será dizer que, desde já, grande é a procura de bilhetes”.

No dia 3 de fevereiro, a “Gazeta” retornava ao assunto com uma nota intitulada “A semana futurista”. Na mesma linha do release, dizia que a proposta vinha “agitando de tal forma o meio artístico e intelectual” que ignorá-la seria dar provas de um “parti pris” incompatível com o progresso da imprensa. O diário aproveitava a ocasião para apresentar um colaborador, o poeta Mário de Andrade, que nas edições seguintes escreveria “em defesa da arte moderna”.

O articulista tinha, então, 29 anos incompletos, era autor de artigos sobre música, literatura e arte e professor do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo. Depois de uma estreia conservadora, seus primeiros versos modernistas já haviam sido divulgados pela imprensa e lidos em rodas literárias, mas seu livro “Pauliceia Desvairada” ainda estava por sair -o que aconteceria alguns meses mais tarde.

Na “Gazeta”, Mário faria contraponto com os artigos de um jornalista que escrevia sob o nome de Cândido e bombardeava, sem piedade, os profetas da nova estética. Por trás do pseudônimo voltairiano estava a figura de Salisbury Galeão Coutinho. Tinha 25 anos e era natural de Curral del Rey, hoje Belo Horizonte. Seu nome homenageava o primeiro-ministro do Império Britânico. Começara a trabalhar em jornalismo na cidade de Santos, como redator da “Tribuna”, em 1915, de onde se transferiu para a “Gazeta”, na capital – e lá fez carreira.

Cândido era um daqueles que, embora lidos e cultos – ou talvez por isso mesmo -, não engoliam a pregação espalhafatosa do italiano Filippo Tommaso Marinetti, líder do movimento futurista, que pretendia substituir a arte do passado por outra, moldada pelo mundo da velocidade e da máquina. Em 1909, o italiano havia publicado seu manifesto beligerante no jornal francês “Le Figaro”.

“Até hoje a literatura tem exaltado a imobilidade pensativa, o êxtase e o sono. Queremos exaltar o movimento agressivo, a insônia febril, a velocidade, o salto-mortal, a bofetada e o murro”, dizia o texto, que glorificava a guerra – “única higiene do mundo”. É da Itália, anunciava Marinetti, “que lançamos ao mundo este manifesto de violência arrebatadora e incendiária com o qual fundamos nosso futurismo, porque queremos libertar este país de sua fétida gangrena de professores, arqueólogos, cicerones e antiquários”.

Futurismo

O efeito foi explosivo. A expressão “futurismo” resumia um sentimento de época, e incendiou a imaginação de artistas e escritores dentro e fora da Europa. A primeira exposição da nova corrente aconteceu em Milão, em abril de 1911. Outra, realizada na galeria Bernheim-Jeune, em Paris, em fevereiro de 1912, circulou depois pela Inglaterra, França e Holanda, com impacto nos meios artísticos.

Na literatura, os futuristas lançaram o brado de “liberdade para as palavras”, sugerindo a exploração do design tipográfico da época, da linguagem publicitária e da escrita fragmentada. Mas com a participação da Itália na guerra o movimento se dispersou. O escultor Umberto Boccioni foi morto, e o músico e pintor Luigi Russolo, seriamente ferido. Embora continuasse a se autodenominar “futurista”, o círculo em torno de Marinetti, a partir de 1918, já não tinha o mesmo vigor e se aproximava da caricatura -e do fascismo.

Os modernistas de São Paulo, em especial Menotti del Picchia e Oswald de Andrade, usavam habitualmente o termo “futurismo”, mas o faziam em sentido elástico, para designar as propostas mais ou menos renovadoras que se opunham às receitas “passadistas” e “acadêmicas”. A polarização “futurismo x passadismo” servia como tática retórica eficaz – mas também simplificadora. Esse aspecto do discurso modernista, que se apresentava como ruptura com o “velho”, acabava por atirar na lata de lixo do “passadismo” manifestações variadas, às quais, diga-se, não raro os próprios “novos” estavam atados.

O rótulo “futurista” gerava incompreensões e facilitava ataques por sugerir subordinação à escola e às ideias de Marinetti. Por esse e outros motivos, Mário de Andrade preferia, “bandeirantemente”, recusar em público a batuta do vanguardista italiano.

Sendo assim, o novo colaborador da “Gazeta”, escalado para defender o “futurismo”, começou por negar a filiação do grupo à corrente europeia. Mário não queria que ele e seus colegas fossem associados ao credo “contraditório, embora às vezes admirável” de Marinetti. Os “rapazes modernistas”, como preferia vê-los chamados, desejavam apenas “ser atuais, livres de cânones gastos, incapazes de objetivar com exatidão o ímpeto feliz da modernidade”.

A expressão “ímpeto feliz” vinha como um grito de frescor e juventude em oposição à sisudez “passadista” e ao ambiente soturno dos anos anteriores, imposto pela guerra. Era um traço do movimento. Mário gostava de citar a “mocidade alegre” e Oswald, alguns anos depois, em 1928, sentenciaria no “Manifesto Antropófago”: “A alegria é a prova dos nove”.

O poeta de “Pauliceia Desvairada” reconhecia em Cândido “firme e profunda erudição” para fornecer a seus leitores “notícias exatas sobre a nova e muitas vezes simpática renascença italiana”. O problema, a seu ver, era que ele nada dizia sobre “a renascença paulista”, da qual a Semana deveria ser “um divertido e porventura magnífico estalão”.

Por sua vez, Cândido não economizava tinta com pilhérias. Desenvolto, apontava as incongruências que via no movimento italiano e fustigava a turma de Mário. Percebendo que as alianças se tornavam mais amplas para as jornadas do Municipal, Cândido partia para o ataque. Alegava que teria partido de alguns dos próprios “rapazes modernistas” o uso do termo “semana futurista” – que constava, aliás, do recibo de aluguel do Municipal.

Não seria, portanto, culpa sua se agora preferiam chamar a festa de Semana de Arte Moderna, quem sabe com o propósito de melhor acomodar, “num largo abraço, românticos, parnasianos, simbolistas e místicos”. Diante da amplitude da lista anunciada, Cândido considerava que os “soi-disant futuristas de São Paulo” haviam caído, “mais depressa do que se supunha, nos braços dos representantes de ideais estéticos, se é que os tem, totalmente diversos dos seus”. E sentenciava: “Acabou-se a intransigência dos primeiros tempos”.

“Aberrações”

A intransigência, na verdade, não se manifestara exatamente nos “primeiros tempos”, ou seja, cinco ou seis anos antes da Semana, quando um núcleo de jovens artistas, jornalistas e intelectuais, com ideias estéticas vagamente modernizantes, começou a se formar em São Paulo. Naquela ocasião, os mais sectários eram justamente os que se opunham às “aberrações” da arte moderna – caso do escritor e crítico Monteiro Lobato, autor do célebre ataque à exposição de Anita Malfatti, em dezembro de 1917.

Foi só a partir de 1920, 1921, que os moços “futuristas”, sobretudo Oswald, Menotti e Mário, passaram a elevar o tom para insuflar na imprensa e em outras frentes a retórica contra o “passadismo” nas artes.

Menotti, em 1922, tinha 30 anos, era autor de um famoso poema “regionalista” intitulado “Juca Mulato”, e preparava o lançamento da novela “O Homem e a Morte”. Ganhava a vida como jornalista prestigiado, responsável pelas notas e editoriais políticos do “Correio Paulistano”, órgão oficial do Partido Republicano Paulista (PRP), que mandava e desmandava na política brasileira. Despachava diretamente com Washington Luís, no palácio dos Campos Elíseos. No mesmo jornal, com o pseudônimo Hélios, assinava crônicas e artigos em defesa da renovação artística. Orgulhava-se de ter convencido o futuro presidente da República, homem educado, historiador, com interesses culturais, a permitir que o “Correio” apoiasse o movimento modernista.

Oswald, o mais velho, que chegava aos 32 anos, era pai de um garoto de oito e figura conhecida nos meios jornalísticos, boêmios e intelectuais de São Paulo e do Rio. Já havia comandado uma revista político-literária modernizante e descontraída chamada “O Pirralho”, e sua estreia em livro datava de 1916, com as peças “Mon Coeur Balance” e “Leur Âme” – tradicionalmente escritas em francês, em parceria com o poeta Guilherme de Almeida. Filho único de família abastada, Oswald era sobrinho do acadêmico Herculano Inglês de Sousa, radicado na capital federal, cidade que ele visitava regularmente -e onde frequentava rodas de escritores como Olavo Bilac, João do Rio e Emílio de Meneses.

Em 8 de fevereiro de 1922, a cinco dias da inauguração da festa, Oswald iniciou no “Jornal do Comércio” uma série de artigos em que detonava alguns monumentos da cultura oficial e repisava argumentos que já vinha esgrimindo nos últimos anos. Desesperava- se com as defasagens do meio artístico nacional -“haveremos de andar sempre 50 anos atrás dos outros povos?” – e escarnecia dos “analfabetos letrados” que só compreendiam a pintura como cópia da realidade: “Qualquer imbecilzinho saído da repartição em que trabalha durante o dia, pega um pincel, tintas, borra telas com intenções absolutamente fotográficas, e fica sendo pintor”.

Blagueur afiado, inteligência fulgurante, o jornalista e escritor promovia os novos e fulminava medalhões, como o pintor Pedro Alexandrino e o compositor Carlos Gomes. “Carlos Gomes é horrível, todos nós o sentimos desde pequeninos”, escreveu na véspera da Semana, num artigo que causou indignação entre os muitos entusiastas do autor da ópera “O Guarani”.

Oswald dizia que, “de êxito em êxito, o nosso homem conseguiu difamar o seu país, fazendo-o conhecido através dos Peris de maiô cor de cuia e vistoso espanador na cabeça, a berrar forças indômitas em cenários terríveis”. Contra as patuscadas e a “cantarolice nefanda” do celebrado compositor, o polemista apontava para Heitor Villa-Lobos, que em sua opinião faria estalar, na Semana, o “nosso velho e caduco” ambiente musical.

Apesar das ambiguidades da programação da Semana, a linguagem de Oswald era, como se vê, de provocação e ataque. Considerava impossível naquele momento – como escreveu num de seus artigos – “refletir atitudes de serenidade”. Sentia-se em meio a um combate: “Somos boxeurs na arena”, avisou.

Fonte: Folha de S.Paulo