A morte da Cobra grande
A morte da Cobra grande
Em meio a chuvas do dilúvio nos campos de Cachoeira
a notícia rasteira correu quente esta semana
veio ela lá da aba da serra de Velha Pobre
agitou corações e mentes em todas Amazônias,
estremeceu a linha do equador.
Virou imagem na internet e manchete de jornal
porém o grande público vidrado em casos cabeludos
tais como assassinatos por encomenda
e guerras no estrangeiro não viu nada de mais:
o dragão de ferro duma madereira sem coração
pegou e matou
a cobra grande Boiúna passando qualquer coisa
acima da boca do rio Xingu.
No corpo de reserva da Marinha Cobra Norato está de luto,
todavia a morte da Boiúna é um drama
semelhante ao desespero de Jorge Luís Borges
quando este viu o “Aleph” e não teve a quem contar
dentre tantos quantos videntes pobres de espírito…
Tal qual o espanto de quem decifrou o amazônico mistério
condenado a quebrar a solidão da televisão mundial
diante da infinita ignorância de milhões de telespectadores.
Uns poucos cabocos panemas empregados da firma
salário-mínimo e carteira assinada valendo quase nada
comemoram o fato lá no mato como se fosse paresque
o fim da guerra de Tróia na antiga terra dos Tapuias.
O parrudo e sanguinolento corpo de Maria Caninana degolada,
mana má de Cobra Norato espichada numa grua fria
pra todo mundo ver o grande troféu da Civilização
e quem de fato é o novo rei da floresta
prova da derrota final do Mito face à realidade
ninguém segura mais a magia amazônica
nem há de duvidar do poder da Máquina peito de aço
tampouco do império do mercado no moderno capital
é disto que trata a insólita notícia lá da serra da Velha Pobre.
Um índio daqueles destribalizados asilado na cidade
compreendeu na hora que era chegado o fim da Estória
então ele se deu conta com sutileza de que havia razão
seu irmão maior o poeta cantador da Paraíba
Vital Farias profeta na “Saga da Amazônia”
como que adivinhando já a morte da Cobra grande
causada pela devastação da floresta amazônica.
“Era uma vez na Amazônia a mais bonita floresta
mata verde, céu azul, a mais imensa floresta
no fundo d’água as Iaras, caboclo lendas e mágoas
e os rios puxando as águas…”
O dragão cheio de garras de aço zurrando feito trovão
cuspindo fumaça de petróleo continua a floresta devorar
derrubando árvores pelo pé com o correntão de corte raso
“corre índio, seringueiro, preguiça, tamanduá
corre-corre tribo dos Kamaiurá”…
lá em riba os povos do Tumuc-Humac se alvoraçam
que nem naquele dia que os Wayana frecharam Tuluperê
abaixo da cachoeira, não foi brincadeira
pois o pajé sabe quando se abate animal sagrado
ou espécie em risco de extinção
é sinal que o bicho-homem está a perigo
diante da própria ambição:
pior paresque que o combate de São Jorge e o Dragão.
Então a gente da desvairada cidade das inundações
carece aprender a ouvir o sermão da floresta:
o homem dos trópicos nasceu na primeira noite do mundo
quando do Dilúvio o galo anunciou a primeira manhã
ele veio em forma de peixinhos miúdos em cardumes
de espermatozóides
dentro da barriga duma cobra-canoa chamada Makará
cobragrande que pariu nas pedras da beira do rio
onde a primeira gente secou ao sol equatorial
que nem barro mole sob fogo se transforma em cerâmica.
Os velhos Kalina sabem disto mais que ninguém
portanto têm a Anaconda como totem principal
que nem povo católico reza à Senhora mãe da Concepção.
Os cabocos que ainda não se corromperam de tudo
respeitam tabus da pesca, caça e tiração de frutos das matas
sabem mariscar no mangue respeitando Curupira, Caipora
Matinta perera e todos mais encantados do lugar
por isto não se dão mal na espera da Terra sem mal.
Não é o caso de “índio com amnésia”:
carimbó do caboco doido na leseira amazônica.
O pobre não sabe da passagem da animalidade à humanidade
nem desconfia da travessia do Mito para a Ciência…
Paciência, toda ciência pendente das nuvens
sem limites éticos é fadada a desabar a qualquer hora.
As penas ou bem-aventuranças doutro mundo
terminam no “inferno verde” aqui presente
onde não existe pecado debaixo do equador,
mas porém em compensação não há salvação.
Pelo contrário, na diversidade da cultura orgânica naturalmente
bicho do fundo vem à tona da consciência da gente
no curso evolutivo da biodiversidade.
Quanta dor e desastre na história universal do Trabalho!
É o drama de Sísifo desfeito em suor, sangue e lágrimas.
O estrupício do “H. sapiens sapiens” o revela de pouco siso,
o dito cujo na direção do dragão mecânico é vitória de Pirro
anda à margem da lei e na contramão de verdadeira civilização.
A serra da Velha Pobre agora está mais despossuída de lendas,
de árvores centenárias e bichos encantados ou naturais.
Aí o ingênuo trabalhador de madereira pirata
prepara seu futuro desemprego em troca de um dólar furado:
o besta não se dá conta da mais valia da própria força e engenho.
Ora, ora, ora! A máquina movida a cavalo-vapor
também ela foi produto e mercadoria
da lenta evolução da engenharia ditada pela necessidade
mãe e madrasta da invenção,
mas acabou no mato sem cachorro…
Porém o sumano face ao terror e fascínio que a Serpente
desperta no inconsciente coletivo
reinventa a Cobra grande pelo bom motivo de ter sido deserdado
do testamento de Adão que nem o rei da França,
com diferença que Francisco I mandou invadir o paraíso selvagem
com a cristianíssima idéia de civilizá-lo como colônia sua
como depois também Napoleão invadiria o Egito pagão
e no novo Éden os invadidos ficaram fora da História pra sempre
carimbados como descendentes de Caim batizados pelo coisa ruim
indecisos entre a barbaridade ou a civilização.
Neste paraíso amazônico perdido pra desgosto dos catequistas
não há rio, lago ou igarapé que não tenha lá a sua “cobra grande”,
mãe do rio dispersa em mil e tantas lendas do imaginário do lugar.
Na mata santa quando sem precisar homem mata animal sagrado
afasta-se mais e mais da pura e inocente animalidade ancestral
sinal da morte de deus segundo Nietzsche:
ou seja o Mito criador se extingue como a chama duma vela…
há quem diga porém que esse deus está morto
por que a divindade ainda não nasceu na humanidade
e para tanto o mundo careceria de santidade…
O deicídio implica culpa igual ao fundamental complexo de Édipo:
com certeza o filho mata o pai a fim de “conhecer” a mãe natureza
que nem macho alfa no rebanho…
taí a origem do machismo deste mundo: só o matriarcado cura!
No planeta Amazônia tudo é da mãe:
inclusive o pai, o filho e os espíritos santos ditos caruanas.
Mas o crime ecológico traz a reboque o castigo
se não imediato porém a prazo certo sobre as futuras gerações
tal qual as atuais pagam o pato da conquista das Amazonas.
O que salva esta gente sem eira nem beira é o rito de ressurreição:
pela arte do Kuarup os mortos viram árvores
e árvores viram gente e voltam ao mundo dos viventes.
A vida vence a morte e rende este mundo mais interessante
com infinitas possibilidades de recomeçar todos os dias.
Tudo que é sólido desmancha no ar:
não há bem que sempre dure nem mal que não acabe…
das ruínas, rupturas e fragmentos do tempo pisado ao chão
levantam-se projetos e revoluções…
muitas vezes avançar é retroceder até à raiz das coisas
através da espiral evolutiva do espaço-tempo.
A arte primeva dos Wayana transforma pele mítica de Tuluperê
em objetos concretos e fantasias,
dá até teses supimpas com exemplo de Lúcia Hussak van Velthem
que não me deixa mentir.
Por aí se descobre a verdadeira cobra grande metafísica
suspensa no espaço ideal por um cinturão de asas de borboleta
que nem a serpente Oroboro ou dragão que morde a própria cauda.
O mito da cobra grande habita o mundo sub-aquático
seu ícone mora na arquitetura de casas coletivas do Tumuc-Humac,
que nem mandala em riba do teto, um céu miniatura dita “maruana”
riqueza imaterial que vem de novo transformar matéria-prima
uso e arte da roda do tempo circular em diversas luas e sóis.
Como então os sábios não sabem disto também, gente bem?
A cobra grande é mãe do rio, ela manda chuva
guarda o segredo da primeira noite do mundo num caroço de tucumã.
Ao sábio de Coimbra disse um índio marajoara
que as voltas que o rio Arari dá diz-que se devem à mãe do rio.
Que na ditadura da água é, sucessivamente, a cada seis meses
dilúvio e estio súbitos
depois que o sol bebe toda lâmina d’água que restar à ilha grande
filha da pororoca nas marés se sizígia
côncava como um grande prato nos mondongos e baixios do Lavrado.
Aí infinitas cobras sucuris que existiam pelos centros se desesperaram
no passado e abriram caminho à força em direção ao mar
cujos rastos são os rios e igarapés hoje em dia…
O Nilo profundo guarda mistérios da antiga Núbia,
seu irmão o gigantesco rio Babel esconde segredos dos Andes
fechando a boca do rio-mar cerca às ilhas dos Marajós.
A cobra sucuriju passará pouco mais de dez metros de comprimento
ao longo duma vida que não é pequena cumprindo sua missão
no topo da cadeia ecológica,
ela é uma draga natural na limpeza de rios, portos e canais.
Porém desde que o homem branco trouxe bois, cavalos e búfalos
aos pantanais do estuário amazônico abriu ele guerra franca à natureza
com isto desapareceu peixe-boi, tartarugas, pirarucu, capivaras, onças, jacarés e os bichos encantados até…
Aí veio erosão dos rios e colmatagem dos lagos,
a fome ingrata deu as caras por aqui e fez ladrão de gado,
praticou trabalho escravo, trouxe doenças desconhecidas, a miséria da velhice e mortalidade infantil
onde paresque teria sido talhada a ser a Terra sem males procurada…
O totem sagrado da cultura marajoara é a Bothropos jararaca
mestra das matriarcas em três mil anos de ciência do veneno e remédio
do mundo semi-aquático onde a Cobra grande é rainha…
Nós estamos falando de 1500 anos de civilização neotropical
destruída pela conquista acidental.
Enfim a morte do mito amazônico prenuncia a vitória de Pirro
do rude colonizador e seus lesados herdeiros.
José Varella, Belém-PA (1937), autor dos ensaios “Novíssima Viagem Filosófica”, “Amazônia Latina e a terra sem mal” e “Breve história da amazônia marajoara”.
autor dos ensaios “Novíssima Viagem Filosófica” e “Amazônia latina e a terra sem mal”, blog http://gentemarajoara.blogspot.com