Em sessão histórica, Estado anistia 7 heroínas do povo brasileiro
Maria Niedja de Oliveira, Maria Nadja Leite de Oliveira, Maria Angélica Barcelar, Gilda Fioravanti da Silva, Ida Schrage, Hilda Alencar Gil e Darci Toshiko Miyaki foram as sete anistiadas da histórica sessão. Houve também homenagens a “mulheres que tiveram importante papel na redemocratização do país”: Encarnacion Lopez Peres, Maria Auxiliadora Arantes, Marina Vieira da Paz, Joana D´Arc Vieira Neto, Clara Charf, Adoração Sanchez, Consuelo de Toledo Silva, Damáris Lucena, Izaura Coqueiro, Josephina Bacariça e Maria Prestes.
Já Maria Lúcia Petit, assassinada pelo Exército brasileiro na Guerrilha do Araguaia, e Elza Monerat, dirigente histórica do PCdoB, receberam homenagens “in memorian”, a exemplo de Maria Emília Guerra. Segundo o presidente da Comissão de Anistia, Paulo Abrão, todas essas “heroínas do povo brasileiro” se destacaram no combate ao regime de exceção.
“As mulheres tiveram papel relevante na conquista democrática do país. Foram elas que constituíram os comitês femininos pela anistia, que arregimentaram as massas em torno da reconquista da cidadania e dos direitos políticos”, lembrou Abrão, no início da cerimônia.
Antes da sessão, a programação na Cinemateca incluiu um Ato Público em Homenagem ao Dia Internacional da Mulher e a exibição do documentário “Vou Contar para meus Filhos” (do Projeto Marcas da Memória, em parceira com o Grupo Tortura Nunca Mais de Pernambuco).
Desculpas em nome do Estado
O primeiro processo a ser apreciado foi o de Maria Angélica Barcelar, que foi presa e torturada quando estava grávida. Ela sofreu sequelas na coluna e acabou tendo de passar por cirurgia. Na sessão, ela admitiu, ao falar ao microfone, que ainda não superou os dias de tortura. “Apesar de muitos anos, é muito dolorido falar desse período”, disse.
O governo paulista considerou seu sofrimento como tortura de nível mais crítico, e ela já recebeu do estado R$ 30 mil. Na sexta-feira, da Comissão da Anistia, recebeu uma indenização de R$ 100 mil. Embora não fosse ligada a nenhuma organização de resistência, ela conhecia diversas lideranças – já que seus pais adotivos eram comunistas. Ao levar Maria Angélica à prisão, em 1974, a repressão tentou fazê-la contar sobre as organizações com que seus pais tinham envolvimento.
“Quando me prendeu, o (delegado Sérgio Paranhos) Fleury dizia: ‘Você vai ser a pessoinha que vai me contar tudo sobre isso’. As coisas que eu sabia que poderiam ser contadas eu contava. E as que não poderiam, como se diz hoje, eu deletava”, disse ela, que, apesar dos choques e das agressões, teve um bebê sadio, já fora da prisão.
Angélica receberá a indenização em parcela única de R$ 100 mil, valor máximo estipulado por lei. “Quero, em nome do Estado, pedir desculpas por todas as perseguições, prejuízos e dores que a senhora sofreu”, disse Paulo Abrão, a ela, bem como a cada uma das mulheres anistiadas.
CCC
Já a ex-militante Hilda Alencar Gil conseguiu, além da pensão mensal, o direito de retomar o curso de Ciências Sociais na Universidade de São Paulo (USP). Ela teve de abandonar a graduação devido às dificuldades enfrentadas na época da perseguição. Integrante do grupo Polop (Política Operária), Hilda foi mulher do jornalista Pedro Ferreira de Medeiros.
Em 1968, Pedro escreveu um artigo histórico na extinta revista “O Cruzeiro” sobre o Comando de Caça aos Comunistas (CCC). No texto intitulado “Comando do Terror”, o jornalista dava nomes e contava histórias de integrantes do CCC, o que deflagrou uma perseguição ao casal que não teve parada, mesmo com Pedro e Hilda no exílio. “A verdade é que ele (Pedro) sempre se recusou a desmentir qualquer uma daquelas afirmações”, disse Hilda
Ela passou a receber uma pensão de R$ 2 mil e uma cota de R$ 222 mil em relação aos pagamentos retroativos desde que correu o processo de anistia. Sua graduação teve de ser interrompida, e Hilda se exilou para fugir da repressão. Na volta, teve dificuldade para se readaptar. “Era um país com ideias e um jeito de viver que eu não reconhecia mais”, lembrou.
Também emocionada, a antiga militante da Ação Libertadora Nacional (ALN) Darci Toshiko Miyaki protestou sobre a forma como foi estabelecida a Lei de Anistia, que igualou os agentes da repressão aos participantes da resistência contra a ditadura. “Nós [militantes] não cometemos crime nenhum. Nós tínhamos o dever, o direito de lutar contra uma ditadura que cerceou todas as liberdades”, ressaltou a militante, que relembrou detalhes dos métodos de tortura que sofreu.
“Milagre”
Ida Schrage, militante da Ação Popular (AP) nos anos 60, teve de viver na clandestinidade , mas acabou presa em 1969. Ficou quatro meses no Dops, onde sofreu tortura física e psicológica. Foi condenada pelo tribunal militar a seis anos de prisão. Na Alemanha, onde se abrigou, dedicou-se a apoiar as mulheres vítimas de violência do Estado de diversos países.
“Estar aqui é um milagre. Não era humano o que fizeram com as pessoas. O sadismo com que nos tratavam. Eles usaram e abusaram de nós, mulheres, com uma falta de respeito, uma desconsideração. Espero que sejam julgados porque tem gente que merece”, discursou Ida. Segundo ela, “o processo de tortura, de querer quebrar o indivíduo, é internacionalizado”.
Ida recebeu uma pensão de R$ 2 mil, o valor médio das anistiadas, e retroativos de R$ 213 mil. Disse que estava emocionada de reencontrar companheiras de militância e prisão. Uma delas é Dulce Maia, ex-guerrilheira da VPR (Vanguarda Popular Revolucionária) e ex-presa política. “Nos abraçamos e lembramos de quando dormíamos na mesma cama, fazíamos cafuné e curativos, dentro do que era possível.”
Confusão na triagem ideológica
A Comissão julgou em conjunto os casos das irmãs Maria Nadja e Maria Niedja Leite de Olivera, que foram brutalmente torturadas depois de serem confundidas entre si, por terem os nomes parecidos. Maria Niedja, aprovada em 1976 em terceiro lugar no concurso interno para professora de Geografia na USP, não conseguiu tomar posse. Ela foi barrada por perseguição política – uma triagem ideológica acreditou que ela fosse a irmã Maria Nadja, integrante do movimento contrário à ditadura militar.
Já Maria Nadja teve de abandonar os estudos e acabou presa e condenada em Fortaleza, onde as duas faziam movimento estudantil. Clandestina em São Paulo, Nadja foi presa pelo Dops, onde passou quatro meses. Depois, foi levada para a Torre das Donzelas, no Presídio Tiradentes, cumprindo oito meses de prisão ao lado da presidente Dilma Rousseff.
Sob aplausos, Niedja recebeu uma indenização de 240 salários mínimos, por nove anos, que foi o período em que ela ficou à espera da contratação como professora. Maria Nadja, por sua vez, tem direito a uma pensão do governo de R$ 1,4 mil, com retroativos que somam R$ 134 mil. “Vejo minha prisão como um demérito. Me deixei prender na passeata (de estudantes) depois de ter corrido tanto da polícia”, brincou ela, em um dos raros momentos de descontração da cerimônia.
Outra narrativa da história
“O processo de reparação é de construção da verdade ao longo do tempo – e, ao mesmo tempo, um processo de ampla visibilidade das vítimas”, explicou Abrão. “Aquelas vozes que foram caladas no passado agora têm a oportunidade de, por meio de um processo de escuta pública, fazer a narrativa da história sob seu ponto de vista, em contraposição àquilo que foi registrado de forma oficial pelos organismos de repressão.”
Desde 2001, a Comissão de Anistia já recebeu mais de 70 mil requerimentos e apreciou pouco mais de 60 mil. “Um terço dos casos foi indeferido por ausência de comprovação. Em outro terço, a reparação foi deferida apenas em âmbito moral, com pedido de desculpas do Estado, mas sem qualquer tipo de reparação econômica. E no outro terço, além da reparação moral, houve também a reparação econômica”, informou o presidente da Comissão. A média das indenizações, segundo ele, é R$ 2,2 mil mensais.
Mães de Maio
Na plateia da 55ª Caravana da Anistia, ex-presos políticos, ex-guerrilheiros e lideranças dos movimentos de direitos humanos do país se comoviam com as memórias reveladas pelos relatores dos processos. Antes de começar o julgamento, Paulo Abrão homenageou diversas mulheres, a maioria já idosas, que lutaram contra a ditadura, entre elas Clara Charf, viúva de Carlos Marighela.
Entre as homenageadas, estavam também as “mães de maio”, movimento formado por mães que perderam seus filhos na reação aos ataques de facções criminosas em maio de 2006. “A tortura de hoje é a tortura não investigada do passado. É a mesma”, disse Paulo Abrão.
O discurso de Débora Maria da Silva, representante das mães de maio, foi o que mais comoveu a plateia. “Estou chocada com o passado porque não é diferente do presente. Vivemos uma ditadura continuada, uma democracia camuflada. Mais de 600 pessoas tombaram (em maio de 2006). Clamamos que esses crimes sejam investigados para não encobrir os algozes que são do passado também”, disse Débora.
“Exigimos deste país a memória, a justiça e a verdade do que aconteceu em maio e do que aconteceu na ditadura. Exigimos a abertura dos arquivos da ditadura. Somos lutadores e lutadoras que lutam por uma liberdade que não tem, que não veio. Perdi meu filho que era gari. Eu não podia ficar calada”, disse ela, sendo aplaudida de pé pela plateia.
“Repare Bem”
A Caravana teve início na quinta-feira, no mesmo local, com a assinatura do “Termo de Cooperação Técnica” entre a Comissão de Anistia e a Cinemateca Brasileira. O documento estabelece que a Cinemateca – que é ligada a ligada à Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura – passará a receber, guardar, restaurar e divulgar materiais audiovisuais e iconográficos produzidos pela Comissão de Anistia e seus parceiros.
A primeira obra a ser abrigada nesse acervo multimídia é o documentário “Repare Bem”, que teve pré-lançamento durante a solenidade. Dirigido pela cineasta portuguesa Maria de Medeiros e apoiado pelo projeto Marcas da Memória (mantido pela Comissão), o longa-metragem trata da história de três gerações de mulheres perseguidas políticas, a partir do relato das perseguidas Denize Crispim e Eduarda Leite.
“Temos muitos companheiros que, através de sua produção artística, de sua arte, denunciaram o que estava acontecendo, o que precisava ser dito. Por esta razão a cultura foi uma área muito violentada no período da ditadura militar”, discursou a ministra da Cultura, Ana de Hollanda.
“Gostaria de lembrar Zuzu Angel, Norma Bengell, Glauber Rocha e todos os artistas que usaram seu trabalho como ferramenta crítica. A Cinemateca é aliada da Comissão de Anistia para restaurar e preservar esta história. Vamos garantir que as novas gerações tenham acesso ao relato e à perspectiva das vítimas”, completou a ministra.
Para a diretora do documentário, Maria de Medeiros, “não devemos ocultar no escuro as partes mais terríveis de nossa história. É mais saudável reparar, reconstruir sobre a luz e a verdade. Este filme não era, de partida, um filme sobre mulheres. É um filme que fala constantemente de Brasil, de exílio, deste território de sonhos e evocações”.
Realizado pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, a 55ª Caravana da Anistia teve como parceiros a Cinemateca Brasileira, o Núcleo de Preservação da Memória Política, o Fórum dos Ex Presos e Perseguidos Políticos, o Comitê das Mulheres Pela Verdade, a Associação Mulheres Pela Paz, o Grupo Tortura Nunca Mais, a Associação da Madre Cristina do Instituto Sedes Sapientiae, a União Brasileira das Mulheres, o Memorial da Resistência, o grupo Mães de Maio de São Paulo e o Arquivo Público do Estado de São Paulo.
Com agências