Na sexta-feira à tarde, no edifício da Procuradoria da República, em São Paulo, foram ouvidos novos testemunhos no caso Edgard de Aquino Duarte, um dos nomes que integram a lista de 156 casos de desaparecimento forçado ocorridos na ditadura. Foi a segunda audiência realizada no ano para tratar desse caso. De acordo com testemunhas que estiveram presas na mesma época, Duarte foi visto pela última vez numa cela da antiga carceragem do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), no bairro da Luz, em junho de 1973.

Os procuradores concentram as atenções em quatro casos. O segundo nome da lista, abaixo de Duarte, é o de Aluízio Palhano Ferreira, que desapareceu em 1971, em São Paulo, após ter sido detido por agentes do Destacamento de Operações de Informações/Centro de Operações de Defesa Interna, organização militar que se tornou mais conhecida pela sigla DOI-Codi.

O objetivo é reunir o máximo de provas para ajuizar ações contra os eventuais responsáveis pelos crimes. O trabalho focaliza essencialmente sequestro e ocultamento de cadáver, que são crimes permanentes. Quando se fala, por exemplo, em homicídio, existe a possibilidade de se alegar prescrição da pena.

Os procuradores paulistas não são os únicos empenhados na abertura de processos contra agentes da repressão. Sob a coordenação do Grupo de Trabalho Justiça de Transição, da 2ª Câmara Criminal, em Brasília, representantes do Ministério Público Federal trabalham com o mesmo foco em várias regiões do País. Segundo o coordenador do grupo, procurador Ivan Claudio Marx, de Uruguaiana (RS), a primeira
ação do gênero está prestes a ser ajuizada. Segundo ele, os esforços nessa direção começaram em 2008.

“O raciocínio com o qual trabalhamos, aceito pela maior parte dos países que viveram situações semelhantes, é de que o crime de sequestro e ocultação de cadáver, agravado por maus-tratos, é um crime permanente”, explica o procurador. “Isso significa que continua sendo perpetrado enquanto a pessoa não é localizada, enquanto não se esclarece o que aconteceu. Como se trata de um crime que ainda não se consumou, ele não pode ser abrangido pela Lei da Anistia de 1979. Ela não se aplica a atos posteriores àquela data.”

A discrição e o alto nível de atenção com que os procuradores tratam os casos se devem à polêmica jurídica que envolve o tema e ao receio de que as denúncias não sejam aceitas pelos juízes. Paira sobre o debate a sombra do Supremo Tribunal Federal (STF), que, em 2010, definiu que a Lei da Anistia beneficiou também os agentes de Estado.

Na opinião do procurador que coordena o Grupo Justiça de Transição, o STF já deu sinais de que casos de crimes permanentes devem ser tratados de forma diferenciada. Em 2009, por exemplo, o Supremo aceitou o pedido de extradição do coronel reformado uruguaio Manuel Cordeiro. Acusado pelo desaparecimento de dez pessoas e o sequestro de um bebê, além de envolvimento com torturas, no ano de 1976, Cordeiro viveu clandestinamente em Santana do Livramento (RS) até 2009, quando foi localizado por organizações de defesa dos direitos humanos.

No debate sobre sua extradição, solicitada pela Argentina, a defesa alegou que os crimes haviam sido prescritos e citou a anistia. “Mas o STF decidiu pela extradição, por entender que o sequestro é um crime permanente”, diz Marx. “O mesmo critério foi utilizado em 2010 no debate sobre a extradição de outro militar, desta vez argentino.”

A estudiosa Glenda Mezarobba, doutorada em Política pela USP e especialista em justiça de transição, observa que o conceito de crime permanente é aceito em países vizinhos que também enfrentaram ditaduras. Um dos primeiros a adotá-lo na região foi a Argentina. “Com o passar do tempo, parte do judiciário chileno também tratou de considerar como sequestro permanente vários desaparecimentos ocorridos no período contemplado pela anistia no país, de 1973 a 1978”. No cerne da questão está o argumento de que a anistia não se aplica a casos em que se desconhece a data do fim do crime.

A movimentação do Ministério Público mobiliza atenções tanto no meio dos militares quanto entre familiares de mortos e desaparecidos. Na avaliação do advogado Aton Fon Filho, que atua na área de direitos humanos, trata-se de um debate diferente daquele que existe em torno da Comissão da Verdade. “O desafio da comissão é sobretudo político, de exposição do que ocorreu na ditadura. No caso do Ministério Público, o foco é criminal”, distingue.

Para o ex-preso político Ivan Seixas, a estratégia dos procuradores tem melhores chances de levar à responsabilização dos agentes de Estado do que tentativas anteriores. Ivan conviveu com Edgard Duarte na prisão e foi chamado a depor na sexta-feira, em São Paulo.

Com informações do O Estado de S.Paulo