Tecendo a manhã

 

 

“A educação é um ato de amor, por isso, um ato de coragem. Não pode temer o debate. A análise da realidade. Não pode fugir à discussão criadora, sob pena de ser uma farsa” (Paulo Freire).

 

 


Hoje eu acordei com o cantar dos galos da minha primeira viagem ao lago Arari, centro da ilha do Marajó; presa à lembrança. Com ela a certeza de que já existe a universidade federal multicampi que todos nós esperamos ver a Presidenta Dilma Rousseff oficializar num ato histórico acerca dos estudos do trópico úmido na Amazônia brasileira desde sua invenção há 400 anos.

Há 189 anos, neste 14 de abril, o povo paraense manifestou vontade política em dar um basta ao regime colonial para promover a adesão à independência do Brasil; como ficou patente na proclamação de Muaná de 28 de maio de 1823, que às vezes até os muanenses esquecem por falta de educação em homenagem à farsa da adesão de 15 de agosto. Na verdade esta “data magna” foi ou deveria ser capitulação das forças coloniais. Mas, de desgosto em desgosto, o cambalacho entre o agente inglês e os portuguesistas levou à convulsão popular e guerra-civil de 1835-1840 dita a Cabanagem: a revolução paraense sufocada pelo Império do Brasil a um custo dantesco de 40 mil mortos numa população de 100 mil almas.

Os alicerces da democracia, na lição imortal de Nelson Mandela, repousam sobre a verdade e a reconciliação. Para que isto aconteça de fato não pode faltar a Educação. Pois não basta se abrirem as portas das prisões: carece saber ser livre e libertar também… Muitos dos nossos avós eram pobres operários e camponeses da Europa que bafejados pela sorte ao cruzar o oceano se tornaram por acaso senhores de terras e escravos e esquecidos da antiga pobreza empobreceram os nativos e importaram escravos. Um tal esquecimento não poderia levar a porto seguro.

O Brasil e a França, por exemplo, fazem fronteira na Amazônia, todavia mal sabem da vizinhança do Oiapoque, e o Amapá e Pará estão metidos até o pescoço nesta velha história que vem antes do “testamento de Adão”, em Tordesilhas (1494). Cada cidadezinha da área cultural guianense estendida de Trinidad e Tobago até o arquipélago do Marajó tem uma aldeia subterrânea onde história e estória fazem limites no país imaginário da encantaria e do El-Dorado, no reino das amazonas.

Eu gostaria de convidar pensadores e professores da região a considerarem desde já a “Universidade Federal do Marajó”, como de fato ela é: os atuais campi da UFPA em Breves e Soure fadados a ser verdadeira universidade multicampi integrando outras universidades públicas na área mediante cooperação de ensino, pesquisa e extensão. Esta compreensão, acredito, deveria ser passo fundamental para o desenvolvimento solidário e sustentável que desejamos.

Onde está a maior carência em educação nas ilhas do Marajó? É claro, na educação fundamental conforme manifestado pela Carta de Portel de 30 de março último, do CODETEM: um olhar marajoara sobre a educação ribeirinha. O analfabetismo é a chaga exposta da Pobreza no delta-estuário da maior bacia fluvial da Terra… Para erradicá-lo não precisaria criar a Universidade Federal do Marajó, todavia até hoje em trinta anos de interiorização universitária não se logrou êxito se não na pequena burguesia das dezessete cidades marajoaras. Então, sim um projeto de universidade federal com o especial compromisso de erradicar o analfabetismo das ilhas poderia ser a injeção de ânimo para autonomia aos campi da UFPA no Marajó, de modo que desde já e nesta ainda se estabeleça o comando da erradicação do analfabetismo e da pobreza como primeiro passo a uma missão de ensino superior e pesquisa na Amazônia.

A criaturada grande de Dalcídio não pode esperar mais. Que se comece imediatamente a trabalhar neste sentido. A força do símbolo e evocação da memória marajoara deve assinalar o movimento em curso com um “Projeto Aricará” destinado a realizar as indicações da Carta de Portel de 30 de março de 2012: lembro que a aldeia de Aricará, fundada em 1659, pelo padre Antônio Vieira com índios de Mapuá (Breves) pacificados entre 22 e 27 de agosto de 1659; foi a primeira missão após 44 anos de guerra desde a tomada de São Luís do Maranhão (1615). Com a fundação de Aricará (transformada em vila de Melgaço em 1758) e de Aracaru (vila de Portel em 1758), o povo marajoara pôde finalmente se integrar ao Pará depois da tomada de Mariocai (Gurupá) em 1623. E assim foi dado encerramento ao antigo conflito que as ilhas sofreram antes mesmo da presença dos europeus.

Sem perda de tempo, os campi da UFPA no Marajó devem logo implantar sistema de rádio, TV e internet especializado para educação ribeirinha a vir depois ser repassado à futura Universidade Federal do Marajó no enfrentamento ao velho analfabetismo. Não basta, já se sabe, ensinar a ler e a escrever: é preciso que este aprendizado se prove útil como ferramenta de melhoria de qualidade de vida, promoção social, crescimento econômico local e segurança alimentar. Um tal projeto ora chamado Aricará (como provocação de debate a respeito da identidade do território insular) seria um passo à frente à regularização fundiária e aos plano de manejo agroextrativista para produção familiar. Portanto, a Universidade como um todo (incluindo UFPA, IFPA, UEPA, etc.) estaria ligada ao ensino médio e fundamental de modo que o campus flutuante a que se refere a Carta de Portel supracitada como parte integrante da futura UnM, venha a fazer ensino presencial mediante calendário adaptado dentro de um sistema de ensino à distância integrando escolas locais, estabelecimentos profissionalizantes de nível médio em distritos e sedes municipais, além de diferentes cursos de terceiro grau e pós-graduação.

Começando de ontem para amanhã e de baixo para cima este percurso leva a convicção de que uma estrada de mil léguas começa com o primeiro passo. Neste caso, o primeiro passo já foi dado com o CRUTAC em Marajó, lá pelos anos 70… O CRUTAC é invenção do Rio Grande do Norte que chegou ao Pará, “Centro Rural Universitário de Treinamento e Ação Comunitária”, programa pioneiro na UFRN, implantado pelo reitor Onofre Lopes, na cidade de Santa Cruz-RN, em 1966. A maternidade municipal daquela cidade estava fechada e por insistência de uma brasileira do lugar nasceu o CRUTAC e se espalhou a outras universidades, inclusive a UFPA com Camillo Viana iniciando a extensão em Ponta de Pedras. Daí começou a interiorização da UFPA que, em 1986, instalou o campus de Soure.

Em 1981, o Dr. Onofre Lopes falou sobre a criação do CRUTAC: “Eu me encontrava na reitoria quando chegou uma senhora de Santa Cruz me pedindo para fazer funcionar a maternidade de lá, que estava fechada há seis anos, porque não tinha médico. Respondi-lhe que isso não era possível… […]. Não era da nossa obrigação. Não era dos nossos projetos. Não era uma missão da Universidade. A Moça ficou muito triste, muito decepcionada e vi que ela queria chorar…. Então eu disse, para consolá-la, que iria estudar o problema e ela saiu com uma certa esperança. E eu, efetivamente, naquele tempo, já sofria daquela doença terrível que se chama velhice, que tira o sono do indivíduo. Então comecei a pensar que os estudantes da última série, os doutorandos de medicina poderiam fazer um estágio naquela maternidade, supervisionado pelo corpo docente. Assim como os estudantes faziam o estágio na maternidade, poderiam fazê-lo no interior, acompanhado de um assistente, de um auxiliar de ensino, ou até mesmo pelo titular. E fiquei pensando que isso seria viável.Mas aí fiquei pensando, também, que no interior o problema não é somente de mulher que vai ter criança. Há crianças abandonadas e há adultos que precisam. E fiquei pensando: mas o problema não é só de saúde, não é somente de clínica médica, não é somente de meninos que estão precisando receber uma medicação para uma verminose; o problema não é, somente, conselhos de puericultura, é preciso uma coisa maior. É o problema, inclusive de odontologia. Aquela gente de dentes estragados que é, muitas vezes, o ponto de partida para outros estados patológicos. Aí fiquei pensando, também, que o problema não era apenas de saúde. Aquela gente, também, não tinha educação cívica, aquela gente também não tinha educação sanitária, não tinha orientação para alfabetização bem segura, que o trabalho era rotineiro, que o trabalho não dava rendimento para a manutenção de sua própria casa, para as necessidades alimentares; não tinha dinheiro para a compra de roupas e sapatos para o menino ir à escola, e isto condicionaria, naturalmente, o aumento do analfabetismo. Também aquelas cidades do interior, aquelas povoações cresciam desordenadamente. E se aquelas comunidades passassem a ter uma assistência da Escola de Engenharia, haveria um crescimento já planejado, já convenientemente orientado. Então eu fiquei pensando. É a universidade toda. E por que não a Universidade toda? Por que todos os estudantes não podem fazer estágio de Medicina, de Farmácia, de Odontologia, de Serviço Social, de Educação, de todas as unidades que fizerem a Universidade? Por que não se pode fazer uma equipe de estudantes, convenientemente supervisionados pelo corpo docente para prestação de serviços e para educar o povo? Por que não se pode fazer isto? Então, daí nasceu a idéia de transportar a Universidade, com os seus conhecimentos, com a sua prestação de serviços para o interior”.

Pelos anos de 1970 (década do milagre econômico, da guerrilha do Araguaia e da abertura da Transamazônica) a UFPA através do CRUTAC dava início à interiorização chegando a Ponta de Pedras, terra natal de Dalcídio Jurandir. A Prelazia católica de Ponta de Pedras (1967) chegava com os ventos das bulas “Mater et Magistra” (1961) e “Populorum Progressio” (1967) esta especialmente saudada por Wall Street como “marxismo requentado”… Começava em Ponta de Pedras uma experiência kibutziana (as “cooperativas” de Dom Ângelo) que iriam sacudir remanescentes da colônia agrícola de Mangabeira com imigrantes nordestinos assentados então pelo ex-prefeito Fango Fontes há uns trinta anos antes. Nesse impulso o padre Giovanni Gallo foi mandado a Santa Cruz do Arari criar uma cooperativa de pesca: começava então a discórdia com o bispo e com o prefeito, este pela crítica que o padre fazia sobre a causa primária do roubo de gado e aquele pelo desobediência do pároco decidido a empregar os recursos da cooperativa na construção de um posto de saúde e a criação do museu visto que a comunidade não parecia capacitada bastante para gerir uma cooperativa.

Escrevo coisas que parecem estranhas e para uns “experts” parecem até suposições ou delírios de um mente febril… Mas a culpa não é minha por desencavar defunto. O problema é que estas coisas não interessam a quem as enterrou. Sabe-se que houve tempos em que fazendeiro educado e diplomado pressionava prefeitos a não abrir escola perto de fazenda para que vaqueiros e filhos destes aprendendo a ler e escrever não abandonassem o campo para ir morar na cidade… Então, a pergunta que não quer calar: se uma simples escola primária já fazia estrupício imaginem que barulho pode fazer uma universidade de verdade!

Educação para quem? Ou para que no antigo feudo das sesmarias hereditárias? Em 1972, a Academia Brasileira de Letras (ABL) concedeu o Prêmio Machado de Assis ao maior escritor que a ilha do Marajó já produziu e neste mesmo ano, por coincidência, o padre italiano Giovanni Gallo provocado pelo conflito social aceso entre pescadores do lago Arari e fazendeiros inventava o Museu do Marajó com “cacos de índio” (fragmentos de cerâmica marajoara deixada ao redor de sítios arqueológicos arrombados e devastados).

Vem do passado distante a luz da aurora de uma primeira manhã tecida por muitos galos, no porto da vila de pescadores do Jenipapo, lago Arari, na ilha do Marajó, depois da lendária primeira noite do mundo… Ano de 1956. Governava o estado do Pará o médico Edward Catete Pinheiro e meses depois, no dia 10 de junho, eleito para cargo assumiria o poder pela última vez o famoso coronel Magalhães Barata que iria falecer como governador em 1959.

Até ali o caboco que vos fala, embora sabendo ler e escrever graças ao déspota Barata durante seu segundo governo (1943-1945) obrigando normalistas a começar no interior a carreira, era eu um perfeito analfabeto político. Tal qual o parceiro de marretagem, ao qual chamarei de Manduquinha; pois a última vez que me referi a sua pessoa ele reclamou, com razão, desta minha mania de falar a verdade nua e crua. Ele não era mais um caboco sem eira nem beira; mas se havia auto promovido a marreteiro na feira do Ver O Peso, respeitado por bem ou por mal. Enfim salvo de um destino pior graças à igreja Adventista do Sétimo Dia que, provavelmente, o livrou de se tornar alcoólatra e arruaceiro e ao florescente mercado de açaí na capital.

O suposto Manduquinha e eu, seu camarada, éramos dois jovens cabocos metidos numa canoa a remo chapada de mercadoria fiada para pagar no apurado, três dias e três noites, acima e abaixo do rio até o lago Arari praticando o escambo em busca de peixe seco e salgado para sobreviver naquelas paragens como qualquer outro “goiaba” analfabeto das margens da História. Entre a subida e a descida do rio, apurada a venda e descontado o aviamento a gente esperava o lucro da viagem. Neste caso, o saldo foi mais um ataque de malária no resultado da sova de carapanãs e muriçocas… Até então eu não conhecia o rio Arari nem um palmo acima da foz e Manduquinha só havia chegado até Cachoeira a um dia de viagem: dali em diante era só por ouvir dizer.

Naquele tempo, a gente andava tão por fora que não sabia que aquele era dia de eleição para governador. E, portanto, a lancha a vapor “Aida” que costumada rebocar canoas até o Lago fora a Cidade buscar eleitores para votar em Cachoeira… Ninguém sabia o motivo desse nome da lancha e aos nossos ouvidos a palavra ressoava graciosamente como “A ida”… Sem ida  nem volta perdemos o reboque, por fim no retorno por imperícia na abordagem, quando o companheiro caiu n’água e nós ficamos para trás no meio do rio e da noite escura entre gritos de deboche dos canoeiros que iam a bordo das geleiras levar peixe ao mercado do Ver O Peso. Eu não sabia do causo que me contou, mais tarde, outro companheiro que veio a ser capitalista na vila. Este um surpreendeu o padrinho patrão, lá dele; a dizer a outro comerciante da antiga freguesia esta frase reveladora: “que seria de nós, os ricos; se não fossem os pobres”…

Diabo era quem queria ser pobre naquelas redondezas onde Judas perdeu as botas. Cada um foge como pode, o empregado do comércio logo quis ser patrão; Manduquinha meteu-se a bordo de igarité freteira decidido a montar banca na feira do Ver O Peso. Fomos sócios ainda desta vez mas, decididamente, eu não levava jeito para o negócio… De modo, que fui tratar da malária em casa de minha avó no Marajó e da tia em Belém oscilando de uma margem a outra da baía e aprendendo naquela grande escola da vida ribeirinha.

Foi aí que a minha avó (na verdade tia, irmã e mãe adotiva de meu pai) me apresentou Dalcídio Jurandir. Ou seja, este meu tio vivia no Rio de Janeiro e era polêmico por causa de um tal de “comunismo”. Tragédia na família católica praticante… A avó esperou tempo para dar leitura ao neto daquele livro impróprio chamado “Marajó”… Caíram-me as escamas dos olhos. Vi pela primeira vez a criaturada grande hoje chamada populações tradicionais, embora eu mesmo estivesse com pés descalços metidos da lama do barro dos começos do mundo.

Da expedita marretagem da feira passei rapidamente num estágio de empregado do comércio e “office boy” em escritório de advogado até que fui acabar numa redação de jornal como foca e depois repórter policial. Era o breve “Jornal do Dia” da família Carneiro. Em 1961, lá estava eu de novo no lago Arari e desta vez como repórter ao lado do senador Catete Pinheiro, que acabava de ser ministro da Saúde do renunciante Presidente Jânio Quadros; e de seu suplente Pedro Carneiro, patriarca da família dona do jornal. Havia apenas cinco anos que eu tinha chegado ali a cabo de remos.. Dez anos mais tarde peguei a “rodovia das onças” (Belém-Brasilia) e fui morar na capital federal. Alguém me disse que o senador Catete poderia me arranjar uma vaga  de trabalho na gráfica do Senado. Fui vê-lo e ele me recebeu, não como eu esperava nem tão cordialmente como depois o senador Jarbas Passarinho, que eu conheci em Faro e atendeu a meu pedido para ser removido da COBAL para o MEC, afinal desnecessário, pois o MRE me chamou a entrar em exercício do cargo que disputei em concurso público.

Que havia acontecido que o amigo dr. Catette Pinheiro não pode me empregar em Brasília e que, com menos dificuldade, eu consegui depois? A Educação ainda que tardia… Estou contando o ‘causo’ com pensamento na possibilidade de vir a ser criada a Universidade Federal do Marajó. Descontados os muitos analfabetos políticos e funcionais que compõem a Criaturada grande, temos ainda algo como 50% da população do Marajó classificados como completamente analfabetos. Mais uma vez a força impetuosa do passado vem me perturbar o sonho do futuro: que será dessa acariciada idéia de uma universidade federal multicampi nas 1700 ilhas do Marajó, com campos do Arari e florestas de Breves e Portel, se aquela criaturada ainda tiver que esperar por décadas para sair do limbo como outrora seus antepassados faladores da “língua ruim”, os Nheengaíbas?

Em artigo da professora Débora Alfaia da Cunha sobre a luta dos marajoaras para que a UFPA assegurasse ensino superior através de Soure e Breves, ficamos sabendo da insuficiências de meios e da competição entre as duas microrregiões da ilha, sendo a microrregião de Portel uma aliada natural de Breves por razões geográficas precisas. De modo, que me parece oportuno juntar gregos e troianos em busca de um consenso para criação da nova universidade federal, porém concentrando mutirão para que a UFPA não saia antes de cumprir completamente sua missão.

 

 

   José Varella, Belém-PA (1937), autor dos ensaios “Novíssima Viagem Filosófica”, “Amazônia Latina e a terra sem mal” e “Breve história da amazônia marajoara”.

autor dos ensaios “Novíssima Viagem Filosófica” e “Amazônia latina e a terra sem mal”, blog http://gentemarajoara.blogspot.com