No dia 18 de março de 1976, o músico brasileiro Francisco Tenório Cerqueira Júnior se tornou, sem saber, um inimigo do Estado argentino.

Saiu do Hotel Normandie no meio daquela madrugada e deixou um bilhete colado na porta do quarte de um dos colegas: “Vou sair pra comprar cigarro e um remédio. Volto Logo”. Não voltou mais.

Pianista do bairro fluminense das Laranjeiras, Tenório acompanhava Vinícius de Moraes e Toquinho em apresentação no imponente teatro Gran Rex, na Avenida Corrientes 857, a menos de 200 metros do Obelisco de Buenos Aires.

Não tinha nenhum envolvimento com questões políticas e, aos 35 anos, já havia lançado um disco (Embalo, 1964). Ao sair para a turnê, deixou no Brasil quatro filhos e a esposa Elisa Cerqueira, grávida de oito meses.

Depois daquela noite, Vinícius, Toquinho e alguns amigos, entre eles Ferreira Gullar, exilado em Buenos Aires, se mobilizaram para procurá-lo em hospitais e delegacias, além de terem buscado ajuda na Embaixada do Brasil.

Foi apenas em 1986 que o ex-torturador argentino Claudio Vallejos, ex-membro do Serviço de Informação Naval, falou sobre o destino de Tenório em entrevista concedida à revista Senhor (n° 270). Abordado por agentes da repressão de uma ditadura que estava prestes a ser instaurada, o pianista foi confundido com um ativista político e colocado em um Ford Falcon verde enquanto caminhava a poucos metros do hotel Normandie.

Segundo Vallejos, Tenório foi levado para a ESMA (Escola de Mecânica da Armada) e apanhou tanto que, quando se deram conta de que ele não era um militante, já não havia mais jeito. Estava tão machucado, que só restou aos repressores a opção de matá-lo.

Após sessões de tortura, o tiro fatal foi disparado por Alfredo Astiz no porão da parte antiga da ESMA.

Nesta entrevista, Toquinho – que homenageou seu ex-pianista com a música “Lembranças” (1981), parceria com o compositor Mutinho – conta de sua relação com Tenório e opina sobre a responsabilidade do Estado brasileiro diante do caso. “A dúvida que paira sobre o assunto não combina com um Estado Democrático”, afirma o músico.

Carta Maior: Qual era sua relação com o Tenório Jr.?

Toquinho: Tenório fazia parte da banda que nos acompanhava naquela temporada pela Argentina, em 1976. Era um excelente pianista, uma pessoa tranquila, dedicada ao seu trabalho e amigo de todos. Minha relação de amizade com ele se dava em consequência de nossa atividade profissional.

Carta Maior: Em que momento o senhor percebeu que o Tenório Jr estava demorando demais para quem havia ido comprar cigarros?

Toquinho: A temporada de shows já havia terminado. Estávamos em Buenos Aires para no dia seguinte embarcarmos para o Brasil. Ele saiu de madrugada para comprar cigarros e não voltou. De manhã demos pela falta dele.

A situação política na Argentina vivia um clima de terror, até a polícia não se entendia, era uma confusão geral. Na época, o ex-genro do Vinicius era cônsul na Embaixada Brasileira.

Deu todo o apoio na procura de uma definição sobre o caso de Tenório. Ficamos lá mais dois dias aguardando uma confirmação sobre o sumiço dele.

Carta Maior: Quando o senhor se deu conta de que ele podia ter sido sequestrado por
motivos políticos?

Toquinho: A própria Embaixada nos alertou para isso. Devido ao desencontro das ações policiais, estavam prendendo todos aqueles que parecessem suspeitos. E Tenório era um tipo original, muito alto, de barba, cabelos longos, usava um capote comprido, foi confundido com alguém.

Carta Maior: Qual foi sua reação quando soube que ele havia sido assassinado?

Toquinho: Algum tempo depois houve essa confirmação de que muito possivelmente ele havia sido executado. No meu entender, ele pode ter sido torturado e, diante da ineficácia da tortura, e pela ação da própria Embaixada brasileira, a polícia deduziu que havia prendido e torturado o pianista da banda de Vinicius e Toquinho.

E o executaram definitivamente porque seria imprudente para o sistema que ele continuasse vivo.

Carta Maior: E como a banda reagiu à notícia?

Toquinho: Com muita tristeza e uma grande dose de revolta.

Carta Maior: O senhor acredita na versão contada por Claudio Vallejos sobre o sequestro e a morte do Tenório?

Toquinho: Não conheço essa versão.

Carta Maior: Claudio Vallejos contou, em entrevista concedida no Brasil, que Tenório foi morto no dia 25 de março daquele ano pelo jovem torturador Alfredo Astiz na ESMA e que teria sido preso por ter estereótipo de um “inimigo do Estado argentino”. O senhor acredita nesta versão?

Toquinho: É bem possível, principalmente pela hipótese de Tenório ter sido confundido com algum “inimigo do Estado argentino”.

Carta Maior: Em sua opinião, o Estado brasileiro foi omisso na época?

Toquinho: Pelo menos no que se refere à Embaixada Brasileira, tudo foi feito para que o caso fosse esclarecido. Recebemos todo apoio para isso. Mas não tenho informações claras sobre outros setores do governo.

Carta Maior: O Brasil poderia, hoje, tomar alguma providência em relação ao caso, em sua avaliação?

Toquinho: Tudo deve ser feito em busca da verdade. Acredito que a Comissão da Verdade possa ser um caminho para esclarecer este caso. A dúvida que paira sobre o assunto não combina com um Estado Democrático.

Carta Maior: O senhor tem alguma relação ou contato com a família dele?

Toquinho: Contato direto não, mas anos atrás apoiei uma campanha para que a família fosse ressarcida em reparação aos danos causados pelo desaparecimento deste músico excepcional.

Em 2006, o Estado brasileiro reconhece ter “feito pouco” para solucionar o mistério acerca do paradeiro de Tenório Jr e o juíz Alfredo França Neto dita a sentença de idenização a Elisa Cerqueira – que nem status de viúva tinha – e aos filhos, por danos morais e materiais.

Em 16 de novembro de 2011, por iniciativa do deputado socialista argentino Raúl Puy, foi colocada uma placa na fachada do hotel Normandie em homenagem a Tenório: “Aqui se hospedou este brilhante músico brasileiro, vítima da ditadura militar argentina”.

Música de Toquinho em homenagem ao pinanista desaparecido:

 

 

Fonte: Carta Maior