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    Comunicação

    O homem que pinta Niemeyer

    No seu ateliê, no charmoso bairro da Mouzaia, em Paris, Benoit guarda alguns dos cerca de 60 trabalhos, entre telas em vinílico, gravuras e serigrafias, que criou nos últimos 17 anos, todos inspirados em projetos de Niemeyer, sobretudo no conjunto arquitetônico da Praça dos Três Poderes, em Brasília. Nascido em Argel, quando a Argélia ainda […]

    POR: Redação

    7 min de leitura

    No seu ateliê, no charmoso bairro da Mouzaia, em Paris, Benoit guarda alguns dos cerca de 60 trabalhos, entre telas em vinílico, gravuras e serigrafias, que criou nos últimos 17 anos, todos inspirados em projetos de Niemeyer, sobretudo no conjunto arquitetônico da Praça dos Três Poderes, em Brasília.

    Nascido em Argel, quando a Argélia ainda estava sob domínio francês, Benoit e sua família chegaram à França nos anos 60, ao mesmo tempo em que, no Brasil, o golpe militar de 1964 corroborava o fim do sonho ideológico de Brasília. Mas isso ainda não preocupava o menino de 9 anos, que descobria nas revistas assinadas pelos pais fotos em preto e branco daqueles estranhos edifícios, construídos no meio do nada, num país cuja localização no mapa ele não sabia indicar.

    “Eu não tinha a menor ideia de onde ficava o Brasil. Mas, depois, pesquisando nos livros, eu descobri o país e, sobretudo, os nomes Niemeyer e Kubitschek. Eu fiquei intrigado pelo exotismo daqueles nomes. Como alguém chamado Kubitschek poderia ser presidente do Brasil? E Niemeyer? Que nome fascinante, misterioso”, relembra Benoit.

    As fotos de Brasília publicadas na imprensa da época não foram a única referência à nova cidade disponível aos franceses. De certo modo, pode-se dizer que foi o galã de cinema Jean-Paul Belmondo quem, na França, introduziu Brasília às massas. Em 1963, Belmondo e a equipe do diretor Philippe de Broca viajaram ao Brasil para rodar “O Homem do Rio”, um filme de aventura que tem como cenário os mais importantes marcos arquitetônicos do Rio de Janeiro, incluindo o Palácio Gustavo Capanema, onde Niemeyer começara a sua carreira de arquiteto. Do Rio, a filmagem segue para o Eixo Monumental. Na França, o filme fez um estrondoso sucesso, atraindo milhares de espectadores, entre eles o próprio Niemeyer, que, saudoso do Brasil, assistiu a “O Homem do Rio” num cinema em Paris e se emocionou ao ouvir os aplausos do público na sequência filmada em Brasília.

    “É um filme maravilhoso, que contribuiu para essa mistificação de Brasília na minha vida”, explica Benoit. “Belmondo correndo naquele imenso canteiro de obras, se equilibrando sobre os andaimes, fugindo dos bandidos, tendo, como pano de fundo, a Esplanada dos Ministérios e a Praça dos Três Poderes: aquelas foram as primeiras imagens de Brasília que muitos franceses viram nos anos 60.”

    Apesar de ser presença constante em sua obra, não foi Niemeyer quem levou Benoit às telas. Suas primeiras incursões pela arte da pintura partem das suas interpretações visuais do trabalho da cantora canadense Joni Mitchell. Mais tarde, Benoit estabeleceria, através da pintura, uma relação entre sua musa inspiradora e as ideias de Niemeyer.

    “Existe um forte paralelo entre Mitchell e Niemeyer”, sugere Benoit. “Assim como Niemeyer decanta a sensualidade das nuvens do cerrado na sua biografia [“As Curvas do Tempo”], Mitchell fala de amor e nuvens em “Both Sides Now” [do álbum “Clouds”, 1969]. E, melhor ainda, Mitchell descreve em “Paprika Plains” [do álbum “Don Juan’s Reckless Daughter”, 1977] a sina dos povos indígenas da América do Norte, que tem muito a ver com a desventura dos primeiros candangos, enaltecidos por Niemeyer, mas alienados de Brasília depois da chegada da elite política.”

    Obcecado por Brasília, era natural que, mais cedo ou mais tarde, Benoit chegasse lá. Em 1994, depois de passar alguns dias no Rio de Janeiro, o pintor desembarcou no Planalto Central. “Parecia um sonho. Eu fiquei muito emocionado quando cheguei à Praça dos Três Poderes. Tive vontade de chorar. Não havia viva alma nas ruas, o que só reforçava aquela imagem da minha infância. Brasília, uma cidade do futuro, como num filme de ficção científica. Só mais tarde eu fui entender: era um domingo de carnaval!”

    O impacto emocional da viagem ao Brasil mudaria os rumos da carreira de Benoit para sempre. De volta a Paris, ele se dedicou de pincel e alma à obra de Niemeyer. As primeiras telas ficaram prontas em 1996, sempre fiéis às proporções arquitetônicas, “em absoluta reverência ao mestre”, mas livres na combinação de cores fortes e saturadas. Figuras humanas, homens, mulheres e crianças, quase sempre nus, davam um toque onírico às telas, numa referência à sensualidade das curvas expressas no traço de Niemeyer.

    Nove anos e muitas pinceladas depois, Benoit estava pronto para organizar sua primeira exposição exclusivamente dedicada à obra do arquiteto. Mas não antes de realizar um segundo sonho: conhecer Niemeyer pessoalmente. Para isso, acionou conhecidos na França e no Brasil, com os quais conseguiu apoio para a produção de um documentário sobre Niemeyer, então com 97 anos. Numa manhã de verão, Benoit aterrissou no Rio com uma equipe de quatro pessoas, indo direto para Copacabana, onde o arquiteto trabalha em seu escritório com vista para o mar.

    “Minhas pernas tremiam”, confessa o pintor. “Quando eu apertei a mão de Niemeyer, eu só conseguia dizer que eu estava muito, muito comovido. Ele foi bastante gentil em nos receber, mas não me deu muita bola. Afinal, havia duas mulheres muito bonitas na nossa equipe de filmagem, e ele só tinha olhos para elas. Só depois nós conseguimos nos sintonizar, quando ele me deu mais atenção, e até respondeu às minhas perguntas em francês”. No fim da entrevista, que durou três horas, Benoit presenteou Niemeyer com a tela “Aeroporto de Brasília”, representando o projeto de aeroporto para a capital rejeitado pela ditadura militar, uma das maiores frustrações na carreira de Niemeyer.

    Fim semelhante teve o projeto de documentário de Benoit: encalhou por falta de recursos para a pós-produção na França. Em compensação, a primeira exposição em Paris, “Brasília de Carne e Alma”, atraiu a atenção do Partido Comunista Francês (PCF), cuja sede fora projetada por Niemeyer durante o seu exílio voluntário na França. Uma nova exposição foi planejada, a pedido do PCF, para estar pronta em 12 meses. Às pressas, Benoit voltou ao ateliê, com vontade de inovar.

    “Eu não queria somente aqueles personagens nus, sensuais e oníricos, nas pinturas de Brasília. Eu queria ter também uma relação mais direta com Niemeyer. Mas, claro, eu não poderia pintá-lo nu”, brinca Benoit, apontando as telas nas quais figura o arquiteto.

    Desse segundo ciclo datam as telas em vinílico que vão além de Brasília, abrangendo, principalmente, as três grandes obras de Niemeyer na região metropolitana de Paris: a sede do Partido Comunista Francês, a Bolsa do Trabalho (um centro de atividades sindicais) e a antiga sede do jornal L’Humanité, associado ao PCF. Em muitas delas, a figura de Niemeyer aparece só ou acompanhada de Lúcio Costa, Kubitschek ou até mesmo Stanley Kubrick, circulando pelo saguão da sede do partido.

    Nas festividades oficiais dos 50 anos de Brasília, em 2010, Benoit foi convidado para expor sua obra no Espaço Cultural Renato Russo, no Distrito Federal, o que lhe deu a oportunidade de apresentar uma série inédita sobre o período da construção de Brasília, com técnica mista sobre papel, e suas últimas telas inspiradas na capital. Fechando por completo mais um ciclo Niemeyer na sua carreira, Benoit voltava às raízes da sua inspiração com a tela “O Homem de Brasília”, em referência a “O Homem do Rio”. “Por ora me despeço de Niemeyer e de Brasília com Jean-Paul Belmondo correndo pela cidade. Resta saber se ele corre de Brasília ou ao encontro dela.”

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    Fonte: Valor

     

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