Mães da Praça de Maio: 35 anos de vida, paixão e luta
Las Madres fueron como una luz en el cielo negro.
Osvaldo Bayer
Na semana passada, em uma discussão na Universidade de Buenos Aires sobre a questão da luta contra a minimização e esquecimento dos crimes contra a ditadura militar, dizíamos que a diferença entre Brasil e Argentina, o que poderia se estender a todas as outras nações da América do Sul quando comparadas nos termos desta questão, era muito simples e chamava-se: Mães da Praça de Maio. Como disse recentemente o poeta Juan Gelman: “Elas foram a única resistência sólida e constante ao largo de todos estes anos. As Mães não permitiram que este tema [da memória e da justiça] caísse no esquecimento”.
Desde aquele 30 de abril de 1977, no qual Azucena Villaflor propôs reunirem-se na Praça de Maio para forçar que o genocida Videla as recebesse, quando ainda acreditavam “que ele era um homem”, até hoje, toda semana, sem exceção, todas as quintas à tarde estão lá com seus lenços brancos na cabeça numa luta incaudiclável contra o genocídio, contra o esquecimento, contra a tortura e a morte, contra o desaparecimento de 30 mil cidadãos durante a ditadura cívico-militar argentina (1976-1983).
Nessa singular trajetória na luta contra o “Gran Olvido”, quando Villaflor, Esther Ballestrino e Maria Ponce de Bianco, entre muitas outras, numa hedionda covardia dos ditadores, se juntaram aos seus filhos na lista dos desaparecidos, as Mães da Praça de Maio venceram o próprio medo e se converteram no mais ativo grupo de oposição à ditadura. E, se como diz Montalbán, “a primeira vítima de uma guerra é a verdade”, o que pode ser estendido às ditaduras, massacres e genocídios, enquanto Clarín, La Nación e La Razón, respaldados pelos empresários e pela própria Igreja, massacravam a realidade, com audácia, coragem e astúcia, elas souberam criar redes de informação, investigação e comunicação e fizeram saber ao mundo os crimes de lesa humanidade cometidos na Argentina.
Com a democratização do País, as Mães seguiram e, sempre com independência e posição firme, rechaçaram a minimização da CONADEP (Comisión Nacional sobre la Desaparición de Personas) que apresentou, em 1984, como sendo somente 8 mil o número de desaparecidos durante a ditadura. Vibraram com a condenação de Videla e Massera a prisão perpétua, em 1985, no governo de Raúl Alfonsín. Se indignaram com a promulgação das leis de Obediência Devida e Ponto Final, em 1987, no governo do mesmo Alfonsín, que deixava os chamados participantes intermédios dos crimes hediondos livres de julgamento.
E depois, durante o imoral retrocesso nos famigerados tempos de Menem, não se desanimaram e continuaram sem trégua o combate pela Memória, pela Verdade e pela Justiça a partir dos Julgamentos Populares. A tradicional Marcha da Resistência, que era organizada anualmente desde a ditadura, só foi finalizada em 2006, durante o governo de Néstor Kirchner, quando as Mães e Avós da Praça de Maio viram que não era mais necessário o combate, mas uma parceria com um governo democrático que as ouvia sempre e que estava também interessado em intensificar a busca pelos desaparecidos, em levar a julgamento os militares acusados e investigar as mãos civis nos crimes praticados durante a ditadura, mesma linha e parceria em que veem assumir hoje a presidenta Cristina Kirchner.
Depois de tanto retrocesso, o impulso dado por Néstor ao declarar a nulidade das leis de Ponto Final e Obediência Devida, seguida da promulgação pela Corte Suprema do País da imprescritibilidade dos crimes de lesa humanidade, da consideração aos indultos de Menem como inconstitucionais pela Câmara de Cassação Penal e, finalmente, a instituição do dia 24 de março como Dia Nacional da Memória pela Verdade e a Justiça, tudo no mesmo ano de 2006, foi fundamental para pôr em prática a consigna das Mães e Avós de julgamento e condenação para todos os envolvidos em crimes de lesa humanidade durante a ditadura cívico-militar. Na atualidade, existem 1.589 imputados entre militares e civis envolvidos em crimes durante o período, destes 753 estão sendo processados e 82 já foram condenados. 14 julgamentos estão transcorrendo hoje no País.
Assim, depois da coragem e perspicácia necessárias para atravessar os perigos das tormentas videlianas, se não sabiam antes, agora há muito já tinham aprendido que, como diz Karl Marx no 18 Brumário, sempre existem os “representantes políticos e literários de uma classe para a classe que representam”, e que, nesse caso, continuaram – e continuam, sempre que aparece alguma oportunidade – representando-a mesmo após decretado o fim da ditadura.
As Mães e Avós seguiram fazendo uso de uma forma de linguagem que leva uma fundamental concretitude às palavras. No magnífico filme de David Blaustein, Botín de Guerra, uma das filhas de desaparecidos, encontrada pelas Avós, se refere à “solidariedade” destas e faz uma observação: “o que essa palavra significar hoje”. É isso, o que as Mães e Avós da Praça de Maio fazem é não deixar que palavras como “liberdade”, “luta”, “solidariedade”, “democracia”, “memória”, “verdade” e “justiça” tenham o sentido falseado pelo mero uso do significante nas penas a serviço do despotismo e da tirania e preservar-lhes o sentido numa luta prática pela vida que se atualiza e renova todos os dias. Como ouvimos ontem no texto Blancos Pañuelos, do maestro Javier Zentner num recital pela histórica data: “Esses lenços brancos, que sempre tiveram problemas com as palavras.”
Um exemplo dessa linguagem corporificada são os discursos de Hebe de Bonafini, presidenta das Mães. Como a descreveu Victor Heredia numa carta pública a meados do ano passado: “Essa mulher simples, comum como minha própria mãe, de língua rápida e popular nos mostrou o caminho a todos, aos pusilânimes e aos indecisos, aos distraídos e aos inconscientes de toda consciência cidadã, humana e solidária.” Numa continuação a Heredia, quando se fala com Bonafini até parece que estamos conversando com uma velha tia politizada, que não se quer um símbolo, um baluarte ou algo parecido, e que conversa com todos que lhe dirijam a palavra sobre os temas reais e presentes, seja a expropriação da YPF, seja a crise econômica mundial, seja os passos do Brasil na luta contra a infame anistia aos torturadores. Com sua verve irônica, zombeteira e perspicaz, aos 83 anos, até palavrões incorpora em seu discurso, como o fez na quinta passada ao se referir ao passado, quando “o mundo se calava, quando diziam que nossos filhos eram terroristas, quando a muitas Mães lhes preguntavam e diziam ‘meu filho não fez nada’. Sim que fizeram, caralho, e muito e por isso deram sua vida!”.
E assim se pode dizer que, se nem todas as Mães tinham uma percepção ou envolvimento político, como tinham a maioria das 14 que iniciaram tudo, se não era o comum de suas vidas cotidianas, por suas posturas éticas diante da vida, se pode perceber porque deram origem a filhos tão atuantes e comprometidos com os princípios que levaram a ditadura cívico-militar a persegui-los, torturá-los, matá-los e fazê-los desaparecer. E por essa eticidade, assim que tomaram consciência da situação hedionda em que o País vivia, expandiram sua luta para além do luto e dor familiar, esgarçando uma intempestiva potência de agir na luta pelos direitos humanos que hoje reverbera para toda a América Latina e, se pode dizer, para todo o mundo.
Em todos esses anos, as Mães seguiram numa linha contínua de atuação que se atualizava a cada momento, com posições advindas sempre da integridade de sua trajetória, de um pensamento crítico e da percepção de que a questão não é reparar o passado, mas potencializar um presente real. Como diz Estela de Carlotto, presidente das Avós da Praça de Maio, os militares “já haviam cumprido com o seu objetivo: a entrega econômica do País havia ocorrido perfeitamente bem, havia sido implementado um crescimento enorme da dívida externa e o País tinha caído numa deblaque econômica espantosa”. Assim, além das questões ligadas diretamente aos crimes praticados no passado, se envolvem nas lutas políticas e sociais do presente. E é com esse sentido que cerca de dois meses atrás vimos o juiz Baltazar Garzón sentado entre Bonafini e Carlotto na abertura dos trabalhos do Congresso argentino, da mesma forma que aplaudiram a expropriação da YPF por Cristina, da mesma forma que, na quinta-feira dos 35 anos de marcha, levavam a faixa “Las Malvinas son Argentinas” e que no outro dia no estádio do Velez Sarsfield, juntamente com as Avós, estavam presentes no grandioso ato de Cristina pelo Dia dos Trabalhadores e pelo aniversário da vitória de Néstor em 2003.
Ademais de serem conhecidas e respeitadas em todo o mundo, como não pretendem ser reconhecidas apenas como um símbolo discursivo, há muito que as Mães vêm se organizando como uma instituição atuante em setores estratégicos. “As mulheres da Holanda nos escreveram e nos disseram 'estamos a sua disposição', e elas juntaram o dinheiro para que tivéssemos a primeira casa”, lembra Hebe de Bonafini sobre como aproveitaram o Mundial de 1978 para fazer contato e expandir a luta. Desde essa casa, a Associación Madres de Plaza de Mayo seguiu até a fundação de uma universidade popular, em torno do qual passaram a ser incorporados e criados muitos outros projetos. “Nossos filhos haviam nos ensinado o valor da solidaridade. O valor único da vida e o amor à educação. Assim, pouco a pouco fomos plasmando a ideia de começar os cursos e um pequeno café literário, para logo dar o passo de criar-parir uma Universidade Popular”, conta Bonafini ao jornal Página 12. Junto a esta foram criados também uma livraria, uma biblioteca, um periódico, uma editora, uma rádio e, este corrente ano, um bar cultural, todos como espaço para uma “quantidade incrível de projetos com os companheiros das organizações sociais”.
São 35 anos de vida, paixão e luta, e se se observa que muitas dessas mulheres já eram velhas quando organizaram as primeiras marchas na Praça de Maio, é impressionante a vivacidade com que estão lá hoje e como se envolvem em todas as manifestações sociais. As Mães têm ligação com inúmeras organizações sociais e ONG's de toda a Argentina e de outros países, tem relação de amizade e parcerias com uma infinidade de artistas, políticos e intelectuais de todo o mundo e a quantidade de teses, filmes, livros, músicas, pinturas, todos os trabalhos sobre elas é hoje impossível de catalogar dada a abrangência e grandiosidade. E sua luta hoje é pela Memória, a Verdade e a Justiça dos que tombaram na luta durante a ditadura, assim como também carregam nestas três palavras a luta dos trabalhadores, dos explorados e excluídos, a luta pelos serviços públicos indispensáveis, por um mundo melhor. Como sintetizou Inés Vásquez, reitora da Universidade Popular Madres de Plaza de Mayo: “As Mães assumem o antimperialismo como prenda de unidade latino-americana e o socialismo como modo de terminar com o sofrimento múltiplo e máximo do sistema capitalista”.
Os filósofos Gilles Deleuze e Félix Guattari falam de que “há casos em que a velhice dá, não uma eterna juventude mas, ao contrário, uma soberana liberdade, uma necessidade pura em que se desfruta de um momento de graça entre a vida e a morte, e em que todas as peças da máquina se combinam para enviar ao porvir um traço que atravesse as eras”. A atuação das Mães e Avós da Praça de Maio é uma visível e táctil realização desse enunciado na vitalidade de existir. Como disse Cristina no ato de Velez: “Néstor está [no estádio]. Los 30.000 também. Mas o mais importante é que estão vocês Mães e Avós e milhares e milhares de jóvens que se envolvem na luta política”. E para elas, que sempre estão envoltas com cantores e poetas, deixamos aqui mais uma vez as palavras do poeta espanhol Antonio Gala: “Na Praça de Maio, porque lhes deu seu nome, a liberdade sorri. Que a vida lhes bendiga Mães da Praça de Maio.”
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Maurício Colares é mestrando em Literatura Latinoamericana pela Universidade de Buenos Aires.
Fonte: Carta Maior