“A Guerra dos Pelados” é um filme-referência na cinematografia brasileira. Lançado em 1971, trata de um sangrento conflito por posse de terras na divisa entre Paraná e Santa Catarina. Durou quatro anos, de 1913 a 1916, mas mesmo assim é um episódio pouco conhecido da história do país.

Quarenta anos depois, o diretor Sylvio Back voltou à região para uma nova filmagem e dessa viagem resultou “Contestado – Restos Mortais”. Uma espécie de antidocumentário, define seu autor, que além de estudiosos e gente da terra recorreu a médius para recontar o episódio. O filme deve ser lançado no segundo semestre. Back espera que o Contestado volte a ser visível.

 O sr. diz que, apesar de inúmeros estudos, a Guerra do Contestado vem sumindo. Por quê? O interesse histórico é evidente. A quem interessa apagá-lo?

 

A Guerra do Contestado (1912-1916), às vésperas do seu centenário em outubro próximo, continua uma espécie de “filho enjeitado” da historiografia brasileira. Ainda que se constitua no maior e mais sangrento conflito pela posse e pela usurpação da terra no século 20, a impressão que sempre retorna, seja como catarinense e brasileiro, seja como cineasta que frequenta com sua obra a nossa míope história recente e remota, é que o Contestado vem desmilinguindo, está se tornando cada vez mais invisível.

E essa invisibilidade não é apenas nacional, ela é regional, cobre feito uma enferrujada mortalha praticamente todo o Centro-Oeste de Santa Catarina.

Ali, durante meses, pesquisei, entrevistei herdeiros da memória bélica, recolhi preciosa e inédita iconografia, além de revisitar os principais sítios do teatro de operações, um território do tamanho do Estado de Alagoas. Inúmeras vezes fui surpreendido pelo total desconhecimento da população sobre sua própria biografia e o passado pisado pelos seus maiores.

Triste constatação, sim. Há uma confluência de opiniões de especialistas que creditam todo esse borramento histórico e mediático do Contestado a um separatismo que começou a tomar corpo entre os líderes dos fanáticos, uns inspirados no ideário autonomista da República Piratini (1835-1845), outros, na Revolução Federalista (1893-1895), a ponto de “inventarem”, literalmente, porque não saiu das conjeturas e de um polêmico édito fundador, uma Monarquia Sul-brasileira, com imperador coroado e até uma Constituição que previa liberdade de imprensa.

Claro, a petulância provocou a ira a repressão implacável da neo-República, ainda traumatizada com o banho de sangue ocorrido em Canudos (1896-1897).

Assim, a palavra de ordem do general Setembrino de Carvalho, comandante em chefe que liquidou com o Contestado, repicava a evocação fúnebre do Senado romano (150 a.C.): Delenda est Carthago!  (Carthago deve ser destruída), referindo-se à potência fenícia do norte da África (atual Tunísia) disputando a hegemonia do Mediterrâneo com Roma.

Não nos esqueçamos que coube à matreirice geopolítica-religiosa e à expertise armada de Portugal manter este país-continente unido desde 1500, liquidando, de norte ao sul, toda e qualquer tentativa separatista.

O Contestado era uma ameaça, uma “nação cabocla independente”, e isso, a meu ver, ainda que impensável hoje em dia, regurgita nos porões do inconsciente coletivo nacional. Não nos esqueçamos do movimento “o Sul é o meu país”, que volta e meia ressuscita na ânsia de emplacar sua “verdade” racista e segregacionista!

Voltar ao tema 40 anos depois foi como ver “um cadáver perdido no mar”. É possível comparar a perturbação causada nesse contato e no primeiro, em 1970? O sr. diz que o filme de 1971 e o que será lançado no segundo semestre parecem ter sido feitos por cineastas opostos.

Talvez eu seja, com este “O Contestado – Restos Mortais”, o primeiro cineasta brasileiro a fazer um novo filme sobre o mesmo tema, com pegada paradocumental, que intitulo de antidoc, e não ficção pura como “A Guerra dos Pelados”, para desfazer equívocos pessoais de um ideário datado e, na outra ponta do pensamento, alumiando novos meandros históricos sobre e em torno da Guerra do Contestado.

Tanto que acabei me confrontando com as próprias convicções e certezas de outrora, como consegui formatar um discurso cinemático único e inimitável, o transe mediúnico como fio narrador do filme. E, onde através dele, busco o âmago de uma saga esquecida que o Brasil precisa homenagear com as devidas exéquias morais.

Isso só foi possível sobrevoando e dando vôos rasantes não apenas, literalmente de helicóptero, aos principais redutos da resistência cabocla e da repressão militar (Taquaruçu, Caraguatá, Calmon, São João dos Pobres (hoje, Mattos Costa), Perdizinhas, Santa Maria etc.), mas tateando no imaginário que resta vivo e pulsante entre os sobreviventes da tragédia, para atualizar e identificar sombras diluídas e provectos balbúcios, reações esquivas, lembranças cheias de odio e vingança, um imemorial, baço e evanescente. Mesmo assim, quase sempre inapreensível aos olhos e ouvidos perscrustantes do próprio cinema.

Quando retomei o Contestado, com o  propósito de me debruçar documental e míticamente sobre ele, assoberbado pela releitura de uma centena de livros, tudo veio à tona como um cadáver perdido no mar. Algo estranho e recorrente que já vinha me acompanhando há décadas.

De qualquer modo, o que permanece é de uma rara nitidez, cuja comprovação se imbrica em forma de fotogramas ora documentais, ora ficcionais: “A Guerra dos Pelados” (escrito e rodado entre 1969/1970, estreando no ano seguinte) e este antidoc, “O Contestado – Restos Mortais”, ambos mudamos a ponto de não nos reconhecermos mais!

Essa é a descoberta mais fascinante de uma narrativa moral que mexe com a história sem procurar atropelá-la, nem lhe impor viseiras político-ideológicas e, muito menos, fundar uma verdade unívoca e irretorquível sobre essa verdadeira guerra civil nos sertões catarinenses.

De maneira geral, as pessoas parecem desconhecer detalhes da história do Brasil. Isso acontece pela forma como a História nos foi ensinada?

Num país refém de uma reiterada “história oficial”, todos cabemos nela, especialmente, quando nos colocamos na contramão de suas “verdades” pétreas. Como é o caso explícito deste docudrama (misto de documentário e ficção), “O Contestado – Restos Mortais”.

Há de tudo e mais alguma coisa para ser exorcizada no Contestado, já que, desde a educação de base à nossa academia e seus acólitos fora e dentro dela, via de regra, serva voluntária de vezos ideológicos, dedica-se a “formatar” uma outra verdade, que fica tão chamuscada de mitos, tabus e utopias quanto a história “chapa branca” que se quer desnudar.

Nosso pretérito, aquele ensinado à rapaziada nas escolas e universidades, ainda hoje, e isso soa inacreditável, é mais um discurso vetusto, digamos, de corte “estatal”, papagaiado na sala de aula do que restaurada em toda a sua dimensão e extensão éticas e ontológicas.

Quando não, vemos todos os fatos e personagens controvertidos transformados em sagas, heróis e/ou santos, uma alegre e impune, porém, indigesta, miscelânea mítico-hagiográfica, onde se mantém estrategicamente ao largo eventos tão fundamentais para explicar os contornos anímicos do Brasil, como a Guerra do Contestado, sem coincidência alguma!

Ainda recentemente, nos debates após a exibição de “O Contestado – Restos Mortais” no Festival de Gramado, grande parte do público, jornalistas, críticos, se declarou surpresa com a efervescência e a brutalidade institucional, política, sociológica e bélica dos acontecimentos que se sucedem na tela, reconhecendo que jamais tinham ouvido falar no Contestado!

O susto maior, inclusive, acabou reservado para a amperagem terrorista que presidiu os embates armados entre rebeldes, tropas do Exército, milícias de jagunços do coronelato da região e a polícias militares de Santa Catarina e do Paraná, algo nunca visto no Brasil nem antes nem depois.

O filme parece propor novas luzes sobre o conflito. De que forma isso se realiza na tela?

Ainda na fase das pesquisas, falando com o historiador Euclides Philippi, em Curitibanos (SC, um dos epicentros históricos do Contestado), expus que pretendia investir em médiuns para “ouvir” a história oculta, subterrânea, não-presencial de caboclos e soldados envolvidos na Guerra do Contestado, ele próprio espírita, lascou à queima roupa e em tom solene: “O senhor é espírita?” Mesmo pego de surpresa, consegui responder na lata: “Sou cineasta!”

Com seus 90 anos, abriu um lindo sorriso que, aliás, pode ser visto no filme em várias cenas, contando suas incursões à galáxia da mediunidade imperante entre as “meninas-virgens” que lideravam os fanáticos do Contestado.

O transe, como uma insondável camada do inconsciente coletivo e da história do homem, por isso mesmo matéria prima de altas indagações no campo da física quântica (a matéria pereceria, mas a consciência jamais!), para mim, é a mais pura e límpida poesia. Não sou espírita, nem cientista, sou poeta. cineasta.

Nada no transe é real ali, tudo imaginação e imaginário, um salto no escuro na eteridade de fatos e feitos primevos, eu diria, como se prestidigitação fora rumo ao mais denso dos mistérios da alma humana!

Em “O Contestado – Restos Mortais” a aposta é nessa direção, imiscuir-se, resgatando através da palavra, pela sua verbalização cifrada e entrecortada pela fluidez do tempo e do espaço, no que foi esquecido e no que é preciso lembrar.

Carrego a primazia, nessa hora em que tanto espiritismo militante explode nas telas, de ter sido o primeiro cineasta brasileiro (quiçá, do mundo, ora direis!) de haver incorporado o transe mediúnico à linguagem cinematográfica como recurso da narrativa de um filme. Cinema é linguagem, sabemos.

Um mergulho primevo no transe ocorreu há exatamente 28 anos no documentário “O Auto-Retrato de Bakun” (1984), quando pincei de um passado aparentemente “apagado”, se a expressão couber, capturando pela manifestação mediúnica do pintor paranaense que se suicidou em 1963, toda a drama existencial dos seus últimos dias entre nós.

Pensei que, pelo inaudito do procedimento, fruto de minha percepção de que, sendo Bakun um místico, portanto, um homem afeito a incursões ao universo espírita, jamais retornaria a esse procedimento num filme.

Que pensa da tentativa de alguns de comparar Contestado a Canudos?

Não raro, a Guerra do Contestado é confundida com Canudos. Há mesmo quem se refira a ela como o “Canudos do Sul”, justamente, quando eclodiu à época, em 1912, a revolta baiana ainda fumegava, havia forte eco na mídia, e suas feridas e cicatrizes estavam sendo, lentamente, absorvidas pela nova República.

Canudos resistiu a oito meses de assédio (entre 1896 e 1897), no Contestado foram precisos quatro anos para destruir seus mais de trinta redutos (cidadelas caboclas, que chegaram a reunir 20 mil pessoas, espalhadas ao longo do rio do Peixe, Centro-Oeste de Santa Catarina, entre o sul do Paraná e o norte do Rio Grande do Sul), e onde até o avião estreou no Brasil como arma de guerra.

Sim, é possível encontrar similitudes entre os dois movimentos. O mais significativo seria o milenarismo (a volta de um Messias salvador) que fundeava as convicções dos fanáticos, na Bahia, de Antonio Conselheiro, no Contestado, entre os monges João e José Maria. E, claro, a inaudita violência e implacabiblidade com que o Exército brasileiro arrasou e exterminou ambos.

Fora disso, o Contestado era um caldeirão político-ideológico e religioso que contemplava desde a luta pela terra e pelo poder, de uma xenofobia ativa contra imigrantes europeus, ao antiimperialismo contra multinacionais da região, que ali construíram gigantesca estrada de ferro (do magnata Percival Farqhuar) e a maior serraria da América Latina, implantando um regime de terror na expulsão dos caboclos sem título de propriedade; de um separatismo, romântico, porém, astuto e, ironicamente, o Contestado chegava à contemporaneidade protagonizando o que seria o próprio nascimento do capitalismo no Brasil.

Tivemos no Contestado uma luta da “desordem” (revoltosos) contra a “desordem institucional”?

Por um instinto de sobrevivência da caboclada espoliada, ao primeiro chamamento para se reunirem em torno de mitos, não demorou a surgirem na região magotes ensandecidos, desafiando a “desordem” institucional existente!

Esse choque de “desordem” contra “desordem” frutificou uma inédita sangria de milhares de homens, mulheres e crianças, cujas “almas sofridas e perdidas” vieram pedir socorro ao nosso filme!

Com tudo isso em ebulição, dá para fabular que, para que houvesse um estopim, bastava que a fronteira contestada entre Santa Catarina e Paraná, úbere em erva mate e madeira, fosse rompida por alguém.

E em 1912, um monge de nome José Maria, vendendo terras devolutas do Paraná (Irani) para duas dezenas de caboclos catarinenses, instalou-se em cima do fio da navalha.

Nem será preciso contabilizar quantos soldados e fanáticos ficaram sem sepultura após uma horrenda refrega que conflagrou não só Curitiba e Florianópolis, mas o próprio presidente, marechal Hermes da Fonseca, e, logicamente, o Exército, que logo enxergou ali um novo Canudos. Tanto é que a repressão militar não tardou a se mobilizar e se fazer sentir com metralhadoras e canhões.

Na mesma intensidade que dentro das incontáveis de cidadelas, os sertanejos, antes simples crentes e pacíficos, para não morrer de fome passaram a praticar apropriações de alimentos e animália, que diziam “débitas”, de comerciantes e fazendeiros da região.

Ao mesmo tempo, constrangidos por chefetes fanatizados, como o famoso “comandante” Adeodato (que, entre o exército teve o seu equivalente no capitão Potiguar, uma versão sulina do famoso coronel Moreira César, de Canudos), instalou-se um regime de terror inédito no Brasil.

Um terrorismo, por sua vez, igualmente agenciado pelos chamados “vaqueanos”, asseclas do coronelato e tropa assalariada pelo Exército, que não só ameaçava os seguidores que fraquejassem, como espalhou um espectro fantasmagórico sobre seu poder de persuasão e violência que pulsa ameaçador até hoje, com os contornos tão assustadores e inimagináveis que tivessem ocorrido entre nós.

Fonte: Rede Brasil Atual