Introdução

O interesse pelo tema deste livro resulta de uma vivência de vários anos no movimento feminista, de participação em encontros, seminários, mas, sobretudo, por confrontar na minha trajetória de vida, não só no plano pessoal, mas na minha vida política, os obstáculos à maior afirmação das mulheres e à sua expressão política, a discriminação velada quando entra na seara do mundo dos homens, na esfera da política e do poder. A mulher pode alcançar este patamar, e está chegando lá, mas com muitos sacrifícios pessoais, com determinação e vontade de revelar todo o seu potencial de se integrar a uma causa pública como parte da realização de sua cidadania. Ela não tem sucumbido às dificuldades, aliás, tem resistido, individual e coletivamente, dando passos significativos para a sua evolução na sociedade.

Sempre tive a inquietação e a vontade, como marxista que sou, de ver além da aparência, de desvendar as causas e as contingências histórico-sociais da opressão às mulheres.
Como Juliet Mitchell afirmou em Mulheres: a revolução mais longa (1967)  (esta  é uma das questões mais difíceis de serem assimiladas):

A situação das mulheres é diferente da de qualquer outro grupo social. Isto porque não se constituem em uma unidade de um número de unidades que podem ser isoladas, mas são metade de uma totalidade: a espécie humana… As mulheres são fundamentais para a condição humana, sendo, contudo, marginais em seus papéis econômico, social e político. É precisamente essa combinação – fundamental e marginal a um só
tempo – que lhes tem sido fatal.

Na sociedade industrial avançada, o trabalho das mulheres é marginal apenas em relação à economia total. Contudo, é através do trabalho que o homem transforma as condições naturais e, por este meio, produz a sociedade. Até que haja uma  revolução na produção, a situação do trabalho prescreverá a situação das mulheres dentro do mundo dos homens. Mas as mulheres recebem a oferta de um universo próprio: a família (Mitchell, 1967, p. 5).

Em seu livro A Origem da Propriedade Privada e do Estado, Engels atesta:

As coisas mudaram com o advento da família patriarcal, e mais ainda com a família individual monogâmica. A direção dos afazeres caseiros perdeu o seu caráter público… A família individual moderna tem por alicerce a escravatura doméstica, dissimulada, da mulher… Veremos então que a libertação da mulher tem por condição  primordial a entrada de todo o sexo feminino na indústria pública, e que esta condição exige a supressão da família individual como unidade econômica da sociedade (Engels, 1985, p. 278-279).

O que também orientou o meu interesse para o tema foi o fato de integrar a União Brasileira de Mulheres, que baseia sua ação em uma concepção emancipacionista, segundo a qual o avanço das mulheres se vincula ao avanço da sociedade como um todo, e encara a questão do trabalho como fundamental à libertação da mulher. Como disse o filósofo francês Fourier: “A mudança de uma época histórica sempre pode ser determinada pelo progresso das mulheres no  sentido da liberdade… O grau de emancipação das mulheres  é a medida natural da emancipação geral…” (Fourier  apud Marx,1985).

Além disso, a minha formação de psicóloga me levou a atentar para as particularidades da subjetividade feminina, afetada pelas mudanças na sociedade, em que os novos espaços públicos conquistados pelas mulheres não alteraram significativamente suas responsabilidades domésticas. Para avançar, elas enfrentam diversas demandas, e muitas vezes têm síndrome de pânico, depressão,  sintoma, dentre outras coisas, da exaustão da mulher moderna. Em seu livro O Tempo e o Cão, Maria Rita Kehl, especifica:

Analisar as depressões como uma das expressões do sintoma social contemporâneo significa supor que os depressivos constituam, em seu silêncio e em seu recolhimento, um grupo tão incômodo e ruidoso quanto foram as histéricas no século XIX. A depressão é a expressão de mal–estar que faz água e ameaça afundar a nau dos bem-adaptados ao século da velocidade, da euforia prêt-à-porter, da saúde, do exibicionismo e, como já se tornou chavão, do consumo generalizado. A depressão é um sintoma social porque desfaz, lenta e silenciosamente, a teia de sentidos e de crenças que sustenta e ordena a vida social desta primeira década do século XXI (Kehl, M.. R., 2009, p. 22).

Discorrendo sobre estudos de gênero no Brasil, Maria Luiza Heilborn e Bila Sorj (2002) afirmam que, a partir da década de 80, os estudos de gênero e trabalho recebem grande impulso, por um lado, em função de transformações sociais expressas no notável crescimento do emprego feminino industrial a partir dos anos 70 e, por outro, pelo desenvolvimento das análises de gênero, ou seja, das desigualdades de gênero no conjunto da vida social.

A partir daí entrou fortemente em pauta a análise do ingresso em larga escala das mulheres na força de trabalho industrial e, ao mesmo tempo, o seu confinamento nas posições menos remuneradas e de mais baixa qualificação. A participação das mulheres no mercado de trabalho também passou a ser estudada através de condicionantes impostos pelo ciclo reprodutivo da vida familiar (idade, situação conjugal, número e idade dos filhos) e pelas responsabilidades domésticas e cuidados com os filhos e demais familiares. A condição familiar diferenciada por gênero seria apropriada pelo mercado de trabalho, que designaria lugares distintos e hierarquicamente dispostos para homens e mulheres, determinando o acesso diferencial às ocupações, às tarefas, às perspectivas de promoção e treinamento, ao nível de rendimento, e outros (Heilborn & Sorj, 2002).

Ao analisarmos hoje a realidade do mercado de trabalho, verificamos que ele já é partilhado com os homens e que as mulheres ocupam postos-chave de grandes empreendimentos. Elas representam no Brasil da atualidade, segundo o IBGE, 43,7% da força de trabalho, dois terços das atividades universitárias, 24% do mercado executivo e 13% do Congresso Nacional. Esse é um avanço incontestável. Mas verificamos que paralelo a essa inserção crescente, o impasse da dupla jornada permanece. Se o acesso ao trabalho é um passo importante para a inserção social da mulher, o fato não resolveu o problema da desigualdade, que se manifesta não só no âmbito do trabalho, como na vida cotidiana, nas responsabilidades domésticas.

Segundo o roteiro de discussão para a II Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, ocorrida em 2007, que analisa dentre outras coisas a realidade da mulher brasileira, os últimos 15 anos têm presenciado a feminização do mercado de trabalho. Nele, verifica-se nesse período um aumento significativo da participação das mulheres. Segundo o IBGE, em 1996 era de 41,6%; em 2004, de 43,1%; em 2005, de 43,5%; e em 2006, passou para 43,7%, o que corresponde a 42,6 milhões de trabalhadoras de um total de 97,6 milhões de mulheres em todo o Brasil.

A mulher foi para o espaço público, enquanto pouco mudaram as responsabilidades domésticas. Como a mulher de hoje lida com essa nova realidade, em que não pode recuar no espaço público conquistado, mas sente o peso das diversas demandas no mundo privado? Como está reagindo essa mulher? Que caminhos percorre para enfrentar tal situação? Qual o impacto para a saúde física e mental das mulheres com a sua maior participação no mercado de trabalho e a tensão provocada pelos custos da reprodução biológica e do cuidado com as pessoas?

O documento da II CNPM (2007) afirma que o impulso do ingresso feminino no mercado de trabalho é fruto de uma conjunção de fatores, dentre eles, a queda nas taxas de fecundidade, o aumento da escolaridade feminina e as mudanças nos valores relativos aos papéis e ao espaço destinados às mulheres. E constata, ao mesmo tempo, que esse fenômeno não foi capaz de reverter importantes desigualdades verificadas na esfera do trabalho. O nível de atividade das mulheres ainda é inferior ao dos homens, que foi de 82,6% em 2005. A taxa de desemprego masculina foi de 6,9% em 2005, enquanto a feminina atingiu 12%, o que significa 1,2 milhões a mais de mulheres desempregadas do que homens.

Além disso, o trabalho das mulheres é mais precarizado: há um menor índice de registro em carteira, o menor índice de contribuição para a previdência, o menor índice de sindicalização. Elas estão em proporção maior do que os homens entre as empregadas domésticas, as trabalhadoras na produção para o próprio consumo ou na produção não remunerada e os servidores públicos, enquanto os homens encontram-se proporcionalmente mais presentes na condição de empregados, com e sem carteira assinada, no trabalho por conta própria e entre os empregadores (Doc. II CNPM, 2007).

Acresce-se a isso o fato de a remuneração mensal das mulheres ainda ser inferior à dos homens. Segundo o IBGE, em 2006, o rendimento médio das mulheres correspondia a 65,6% da remuneração média masculina. Em 2005, a relação era equivalente a 64,5% e, em 2004, a 63,5%. O cálculo do IBGE aponta que o rendimento médio real do trabalho em 2006 foi de R$ 932 para os homens e de R$ 611 para as mulheres.

Além dessas transformações demográficas, Bruschini (2007) destaca mudanças nos padrões culturais e nos valores relativos ao papel social da mulher que alteraram a identidade feminina, cada vez mais voltada para o trabalho remunerado. A expansão da escolaridade e o ingresso nas universidades viabilizaram o acesso das mulheres a novas oportunidades de trabalho.

Todos esses fatores, além de impulsionarem o crescimento da força de trabalho feminino, também transformaram seu perfil. Se até o final dos anos 70 as trabalhadoras eram em sua maioria jovens, solteiras e sem filhos, passaram a ser mais velhas, casadas e mães. Em 2005, a maior taxa de atividade feminina, 74%, é encontrada entre mulheres de 30 a 39 anos, seguida de 69% de 40 a 49 anos, e de 54% de 50 a 59 anos. Não por acaso, considerando-se a posição ocupada nas famílias, as casadas foram as que apresentaram maior aumento das taxas de atividade. Em 2005, mais de 58% delas trabalhavam (Bruschini, 2007).

Outro elemento a destacar é que o aumento da presença das mulheres no mercado de trabalho não resolveu o problema da sobrecarga doméstica, de cuidado com a casa e os  filhos. Dados do IBGE (2006) indicam que enquanto 92% das mulheres ocupadas dedicam-se aos afazeres domésticos, uma parcela bem inferior de homens (51,6%) encontra-se na mesma situação, ou seja, a dupla jornada feminina continua uma realidade. Na medida em que as mulheres gastam 25 horas semanais com o cuidado da casa e dos familiares, os homens que executam essas tarefas gastam menos de 10 horas semanais.

Dados publicados no jornal O Globo, de 22 de novembro de 2006, do Fórum Econômico Mundial indicam que, apesar dos avanços, ainda é comparativamente baixa a participação feminina, fazendo o Brasil ficar em 67º lugar no ranking entre 115 países. E os piores itens são na questão do trabalho e na da participação política.

A desigualdade no mundo do trabalho e a permanência da sobrecarga doméstica sobre as mulheres, como já assinalamos, estão a exigir uma nova articulação entre a vida privada e o mundo do trabalho. Torna-se cada vez maior a exigência de um crescimento econômico e uma saída da crise e da precariedade do trabalho que não se façam através de um aumento da desigualdade social e sexual. Concretizar hoje a cidadania das mulheres passa por uma mudança na divisão sexual do trabalho doméstico que garanta uma efetiva igualdade social e sexual.

A evolução desse processo depende em boa parte da correlação de forças criada pelo movimento de mulheres, que nos últimos anos tem encontrado campo favorável através da eleição de governos populares na América Latina. No entanto, esse campo favorável é limitado, já que se mantêm como pano de fundo os condicionantes do sistema capitalista, sobretudo em seu estágio neoliberal, o que aprofunda as desigualdades.

O ajuste neoliberal que foi aplicado no Brasil a partir dos anos 90 acarretou redução dos equipamentos sociais, precarização dos serviços públicos, a desregulamentação no mundo do trabalho, afetando em particular as mulheres com sobrecargas e pressões que influíram em suas condições de trabalho e de vida, tendo forte impacto em suas subjetividade, saúde física e mental.

Não há dúvida de que a ideia do Estado mínimo levou à redução dos equipamentos sociais, como creches, e ao debilitamento das políticas públicas em educação, saúde, habitação e saneamento. Essa redução provocou um aumento das dificuldades de equacionamento das demandas decorrentes da esfera da reprodução. Além disso, trouxe o crescimento do desemprego e a flexibilização no mundo do trabalho, com maior impacto sobre as mulheres. Elas enfrentam maior precarização do trabalho formal: 51% das brasileiras que integram a PEA não possuem renda mensal regular.

A desestabilização das condições de vida favoreceu a desagregação do núcleo familiar, sobrecarregando ainda mais as mulheres, que em grande parte passaram a ser chefes de família. A pesquisa do IBGE relativa a 2006 aponta que em 29,2% dos domicílios, as mulheres são chefes de família, bem acima dos 21,6% de 1996. E que mesmo nas famílias com marido e mulher, as chefes com marido representam 20,7%, índice superior ao de 1996, quando eram apenas 9,1%. Outro dado é que nas famílias chefiadas por mulheres o rendimento é menor do que nas chefiadas por homens. A maioria das chefes de família está entre mulheres (mães solteiras ou separadas) com idades entre 25 e 39 anos.

Se a luta pela sobrevivência empurra a mulher para o mercado de trabalho, se nas condições de crise do capitalismo e do ajuste neoliberal há uma redução dos equipamentos sociais, aumentam os conflitos para conciliar realização profissional e afazeres domésticos. Múltiplas pesquisas, como as de Hirata e de Clara Araújo e Celi Scalon, concluem que as mudanças no trabalho doméstico são menores e muito mais lentas. Como afirma Hirata (2002),

Se o forte desenvolvimento das tecnologias domésticas tendeu a facilitar essas tarefas, a divisão sexual do trabalho doméstico e a atribuição deste último às mulheres, em realidade, continuaram intactas. A relação entre trabalho doméstico e afetividade parece estar no centro dessa permanência (Hirata, 2002, p. 150).

Para Rosiska Darcy de Oliveira (2003):

A família sempre foi o lugar não apenas do sustento material, ninho, abrigo, mas sobretudo o lugar primeiro da educação, ali onde os seres humanos são iniciados em sua própria humanidade. Assumida essencialmente pelas mulheres nas sociedades tradicionais, no momento em que essas sociedades entram em decadência e que as mulheres investem tempo integral no mercado de trabalho, a atenção de pessoa a pessoa se vê esvaziada. É nesse momento que intervém o pensamento conservador, sempre pronto a acusar as mulheres de todos os males do mundo, das taras sociais, da perdição dos jovens ao abandono dos velhos  (Oliveira, 2003, p. 45-46).

Fica a punição de a mulher ter de se multiplicar em muitas ao longo do mesmo dia, acompanhada permanentemente pelo sentimento de culpa ou de incompetência em tudo o que faz.

A sociedade enfrenta um novo impasse: se o Estado abre mão de seu papel nas políticas públicas, não pode culpabilizar ou responsabilizar a mulher para que assuma um dever que é dele. Uma nova articulação entre a vida privada e o mundo do trabalho torna-se necessária para que se possa preservar o direito de ambos os sexos de usufruírem os dois mundos, sem maiores sacrifícios individuais. A revalorização da vida privada não deve passar pelas mulheres, mas é um desafio do conjunto da sociedade. O avanço das mulheres na participação da vida pública não basta. É fundamental a desconstrução/reconstrução dos valores e das práticas predominantes para mulheres e homens.

Governos como o de Lula acenam com a possibilidade de implementar políticas públicas voltadas para as mulheres, assinalando um novo compromisso com os direitos e a cidadania das mulheres. A evolução dos encontros feministas e a construção de uma pauta e de uma agenda política constituíram uma importante referência para a adoção de um programa de governo relacionado ao problema das desigualdades sociais das mulheres.

Fica o desafio de os órgãos responsáveis terem a capacidade de transformar essa agenda política em ação pública.

E também a necessária vigilância e o poder de pressão dos movimentos de mulheres visando à aplicação dessa agenda.

Mas como declara Clara Araújo (2005),

Além das ações reguladoras, são fundamentais as ações educativas e transformadoras. Seria necessário um enfoque sobre a cultura de gênero, que repensasse como homens e mulheres poderiam compartilhar do mesmo modo e, igualmente, todas as modalidades de trabalho produtivo e reprodutivo existentes. Nesse caso, haveria de ser considerada, de modo mais profundo, a existência de uma “subjetividade coletiva” e de uma dimensão ideológica que não respondem de forma tão rápida como as mudanças na superestrutura jurídico/política (Araújo, 2005, p. 46).

Torna-se cada vez mais claro por que Juliet Mitchel (1967) considera que a total emancipação das mulheres é a revolução mais longa. Nesse sentido, as desigualdades entre mulheres e homens só serão superadas com mudanças radicais e de fôlego.

Tendo em vista essa problematização que analisa, de um lado, a evolução da participação da mulher brasileira no mercado de trabalho e, de outro, a permanência das responsabilidades domésticas, a pesquisa que deu origem a este livro teve como função verificar a situação das operárias de uma fábrica de eletrodomésticos, a FAET. Foram desenvolvidos três capítulos. No primeiro, buscamos identificar o significado do trabalho para a formação do ser social e de sua centralidade nos marcos da sociedade capitalista e também focar a questão da divisão social e sexual do trabalho como fator das desigualdades no âmbito do trabalho e da família. O segundo capítulo traça o perfil do setor metalúrgico do Rio de Janeiro, relacionando-o com as características da empresa metalúrgica pesquisada, a FAET. O terceiro detém-se na análise dos dados pesquisados entre as trabalhadoras da FAET no que se refere às suas condições de trabalho, relacionando-a com sua realidade familiar. E, finalmente, levantamos as principais conclusões resultantes dessa análise.

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Jornalista, escritora, membro do Comitê Central do Partido Comunista do Brasil (PCdoB)