Utopia Caboca
Utopia Caboca
A fim de inventar o amanhã para história da Amazônia verdeazul (golfão marajoara), na espiral evolutiva do espaçotempo, carece regeografizar as regiões gerais amazônicas. Esta periferia da Periferia… Levar adiante novamente a demanda da Terra sem males (utopia selvagem a ser resgatada pela Ciência & Tecnologia neotropical nas terras baixas da Amerika do Sol). Da “última fronteira da Terra” (Amazônia) aos confins do vasto mundo até – verdadeiramente –, os últimos dias do “homem lobo do homem”.
Quer dizer, deslendar, pela contradição dialética do Mito, os mitos coloniais dos achamentos e descobrimentos marítimos. Exumar as conquistas disputadas a ferro e fogo por filhos dispersos do velho Abraão detentores do segredo das antigas navegações. Desvendar entrelinhas do famigerado testamento de Adão da destruição facinorosa das acidentais Índias Ocidentais contestado ferozmente por piratas do Caribe suportados por reis e rainhas cristãs em suas várias descendências multinacionais e bastardias globais até a biopirataria dos dias de hoje… Aprender de novo a sentir o pulso planetário sertão adentro, em cada palmo de chão ou estirão de rio. Onde, dia a dia, a resiliência vital luta por vir a furo dentro de uma semente qualquer ao acaso em dispersão: ou o nigredo geocultural da primeira noite do mundo, oculta num caroço de tucumã (Astrocarium vulgare) no fundo do rio lendário, reino da cobragrande Boiúna; mãe da animalidade e talvez avó da humanidade.
Tal qual a resiliência da biosfera no corpo de Gaia, também o instinto animal irrompe de repente sob a fina pele do homem civilizado, criatura abestada pelo vício consumista e roubo fantasiado de lucro privado. Deixar andar o empoderamento coletivo da humanidade, a evolução da utopia indígena rumo à revolução da sociedade sem classes: nova Terra sem fronteiras e conquistadores, humanidade sem senhores e escravos, sem vencedores e vencidos, vendedores e compradores: que nem aquele imaginário “lugar” messiânico – onde não existe fome, trabalho escravo, doença, velhice e morte – buscado através de males infinitos pelo “bom selvagem” da brava gente brasileira, a Nação Tupinambá. Mito revolucionário mais supimpa do que as várias ressurreições de el-rei Dom Sebastião na construção do reino de Jesus Cristo consumado na terra. Ou os ideais carbonários da República universal.
Aqui e agora, o Araquiçaua, lugar ou porto onde o sol ata rede para dormir; monumento natural do índio herege que sentenciou “Deus fez o Homem para dormir e sonhar”; a Ítaca desta odisséia estúrdia tem nome “Marajó” – memória viva do “marã yu” malvado, codinome de valentes guerrilheiros de zarabatana em punho Aruãs e Anajás da resistência marajoara, matadores de caraíbas invasores das ilhas do Pará-Amazonas; em fulminantes emboscadas que lhe deu nome e fama pelo inimigo hereditário tupi – no meio do golfão de águas salobras do delta-estuário da maior bacia hidrográfica da Terra. Aqui o sonho e a realidade fixaram seus limites entre o paraíso ecológico e o inferno verde. O generoso veraneio pelo milagre dos peixes acaba-se na festa da Pirapuraceia pela ditadura da água e império do Plasmódio na ferra da malária…
São muitas as Amazônias rio acima e mar afora: o verde da floresta se reflete pela beira-rio nas margens da correnteza barrenta amarelando e esverdeando pela mistura de cores o azul do Mar-Oceano até muitos quilômetros longe da contracosta das ilhas filhas da pororoca. Inventa a corrente das Guianas com jangadas de barro que navegam ao largo do Cabo Norte até as bocas do Drago, no Orenoco. Todavia, a Amazônia azul vem com a cunha salina terra adentro trazendo a corrente equatorial marinha e seus cardumes, naus e povoamentos lendários urdidos pela Lua e o vento terral varrendo o litoral do Maranhão para o Salgado Paraense e suas casas de Mina encantadas.
Desce o manto verde desta terra grande dos Tapuias desde as cumeeiras dos Andes a bordejar o caminho das águas pelos píncaros junto à cidade sagrada de Machu Pichu, no Peru. Rio abaixo vai o verde buscar o azul do mar profundo. O grande declive amazônico inventa o Rio-Mar e a babel das sete mil línguas das “Almazonas”, de que falava o “payaçu” dos índios, padre grande Antônio Vieira. Deste rio Solimões ao Baixo Amazonas coletando águas internas e fabricando ilhas que submergem e emergem continuamente da vasa com suas várzeas e matas hasteadas como navios: mergulha enfim a terra firme pelo mar através da plataforma continental… Três milhões e duzentos mil quilômetros quadrados de verde que te quero verde e encarnado pelo sangue vivo de seus 25 milhões de habitantes humanos e a estupenda biodiversidade de bichos reais e encantados sustentados pela pujante flora em rico solo e subsolo mundialmente cobiçado. Mais o azul marinho somado ao verde mundo, que recobre esta outra Amazônia com seus três milhões e quinhentos mil quilômetros quadrados tem também incalculáveis riquezas.
Urge criar uma inovadora universidade das ilhas da Amazônia verdeazul. Pois do contrário, como poderá um caboco – desmemoriado de sua ancestralidade na descendência de índios lesados na conquista do rio das amazonas, deserdado das tribos extintas no Diretório dos Índios, um índio com amnésia excluído da independência do Brasil, roubado da Lei Áurea e da República – achar futuro como cidadão planetário? Já deveria saber que sem passado não há futuro, não importa quanta luta terá que vencer para se empoderar do presente, do qual, seja lá como seja, ele estará sempre por fora e ausente.
A cidadania deste brasileiro marginalizado não poderá se realizar sem resgate do antigo índio desconhecido, o inventor dos tesos da Cultura Marajoara, artífice ignorado pelo povo da arte primeva do Brasil e arquiteto da ecocivilização amazônica que teve por berço o Golfão Marajoara: que nem o Delta do Nilo pariu a antiga civilização do Egito… Esta história extraordinária, na boca do Pará-Amazonas, também não terá futuro sem a saga do negro arrancado do seio da mãe África para ser escravo de Portugal nas desafortunadas ilhas do Grão-Pará e nem poderá se consumar em meio ao esquecimento do aliciamento e ilusão de um paraíso no Maranhão prometido a pobres casais dos Açores, enganados e transportados com a árdua missão de “ocupar” o impossível chão dos Tapuias, vencidos na guerra da Terra sem males pelos bravos Tupinambás.
De direito, o rio das Amazonas foi conquistado sob pavilhão da União Ibérica (1580-1640) pelas armas e os barões assinalados. Mas, de fato, sem cristãos-novos e mamelucos assistidos de milhares de arqueiros e remadores da brava Nação Tupinambá não se poderia contar vitória da conquista do maior rio do mundo, nem expulsar dele os concorrentes estrangeiros, como informa honestamente a placa histórica da viagem do bandeirante Raposo Tavares afixada no Forte de Gurupá, no arquipélago dos Marajós.
Sem o “bom selvagem” Tupinambá não existiria o gigante Brasil tal como o conhecemos hoje, desdobramento geográfico da Ilha-Brasil, perseguido e escravizado pelos bandeirantes paulistas, este índio andejo e valente foi o primeiro geógrafo e guia dos sertões… Parceiro dos franceses na Guanabara e no Maranhão, os Tupinambás foram à França – com testemunho de Montaigne e Rousseau – levar a idéia da revolução de 1789. Foram eles que levaram Pedro Teixeira a Quito e também os mesmos guerreiros que mostraram a famosa passagem do Pantanal para a bacia do Prata pelo Tietê e para a bacia do Amazonas pelo Guaporé…
E, no entanto, esta poderosa nação brasílica não venceu a tenaz resistência marajoara, dita “nheengaíba” (confederação nuaruaque formada pelos Aruã, Anajá, Mapuá, Cambocas, Pixi-Pixi, Guaianá, Mamaianá…), com a qual pelejava antes mesmo da presença dos europeus. Estes, sem saber dos antecedentes da guerra dos tapuias, tiraram partido das rivalidades entre as nações indígenas: provavelmente isto foi o motivo da aliança dos tupinambás e os portugueses para conquistar o Amazonas, antes inimigos mortais (desde o enlace do cristão-novo Martim Soares Moreno e a filha do cacique de Jaguaribe, a índia Paraguassu) e o fim da França Equinocial…
É certo que o caboco ribeirinho não é índio marajoara. Todavia, ele é herdeiro e remanescente desta antiga cultura pré-colombiana, como o sui generis Museu do Marajó informa, apesar de seu desamparo oficial ao longo de 40 anos desde a fundação, em 1972, em Santa Cruz do Arari. A pobreza e analfabetismo da “Criaturada grande de Dalcídio” é uma grave desatenção da intelligentsia brasileira cuja ignorância a respeito da biodiversidade, da cultura tradicional e história desta que é uma das mais importantes regiões do Brasil merece justa reprovação.
Na quadra das comemorações dos 400 anos de invenção da Amazônia, será preciso que o Brasil saiba desta dura guerra do rio das Amazonas e primeiro passo para ruptura da “linha” de Tordesilhas (1494-1750), que levou 44 anos de encarniçada luta, desde a tomada de São Luís do Maranhão (1615) aos franceses até a pax dos Nheengaíbas, no rio dos Mapuá (Breves, 1659), consolidada pelas missões das aldeias de Aricará (Melgaço) e de Aracaru (Portel) naquele mesmo ano, dizia o padre Antônio Vieira, quando se acabou de conquistar o Maranhão e Grão-Pará.
Todavia, a Constituição-Cidadã reconhecendo direitos históricos dos primeiros povos do Brasil; que são os indígenas; e dos quilombolas e mais afrodescendentes; ainda deixou no limbo entre névoas de um difuso conceito de populações tradicionais a etnia desta gente “tirada ou saída do mato”: os caboclos ou cabocos, como nós preferimos falar… Marajó é, por excelência, dada sua insularidade a região geocultural dos cabocos ribeirinhos… “Criaturada grande de Dalcídio”, na célebre expressão de Eneida de Moraes.
O caboco é o mesmo tapuio destribalizado e mestiçado com o português desterrado e com o preto escravo. Falante da língua geral (o Nheengatu, a “boa língua”; por oposição à diversidade do Nheengaíba, a “língua ruim”, na verdade línguas de tronco Aruak). Com a expulsão dos Jesuítas (1760) as aldeias de índios mansos, subitamente “elevadas” à categoria de vilas e lugares de nome português; passaram à administração de diretores nomeados pelo governo colonial entre colonos e milicianos, as freguesias entregues a vigários; temos aí o regime do Diretório dos Índios (1755-1798) que foi o molde donde nasceu o periclitante município amazônico.
O homem “tirado do mato”, civilizado à lá Pombal; antes obrigado a falar a língua geral e depois o português exclusivamente, foi dado como oficialmente “liberto” e súdito da Coroa portuguesa. Todavia, em realidade, ele estava no piso inferior da incipiente sociedade colonial amazônica: sem o remador, caçador, guia de viagem, pescador indígena esta sociedade agroextrativista não teria viabilidade nenhuma. Impedido de ir e vir de um lugar a outro sem autorização do diretor da vila ou do vigário da freguesia; para que não fugisse de volta aos matos ou tomasse o rumo do Oiapoque como muitos parentes; os senhores incentivavam casamentos de tapuios com escravas negras; da mesma maneira como o colono era encorajado a tomar mulher entre as tapuias catequizadas, para isto o casal recebia do governo um pequeno lote de terra devoluta para fazer sítio, forno de farinha, espingarda de caça, ferramentas e alguns utensílios domésticos. Tal foi o molde geopolítico e econômico da caboquização, dando, dois séculos depois, nesta nova etnia amazônica que é o caboco ribeirinho.
A Educação Ribeirinha é convocada, em especial com a concepção de uma universidade multicampi voltada para algo como 1700 ilhas e 500 e tantas “aldeias-escolas” repartidas em comunidades locais localizadas em rios, furos, igarapés, campos, florestas e zonas de praia; a valorizar este povo (410 mil habitantes e, estimativamente, o dobro em Belém, Macapá, nas Guianas e outros lugares) e sua peculiar cultura mestiça num espaço de 104 mil km²).
Até hoje não existe pequena burguesia municipal no Marajó que não cometa preconceito contra a “caboquice” dos ribeirinhos e que não repudie a idéia de se igualar aos cabocos. O que constitui um equívoco lamentável que enfraquece as demandas políticas da região das ilhas do delta-estuário da maior bacia hidrográfica do planeta.
José Varella, Belém-PA (1937), autor dos ensaios “Novíssima Viagem Filosófica”, “Amazônia Latina e a terra sem mal” e “Breve história da amazônia marajoara”.
autor dos ensaios “Novíssima Viagem Filosófica” e “Amazônia latina e a terra sem mal”, blog http://gentemarajoara.blogspot.com