João Amazonas e a Guerrilha do Araguaia
Em relação à estratégia revolucionária, os dirigentes do PCdoB travavam uma luta em duas frentes. De um lado, faziam a crítica ao reformismo de organizações como o PC Brasileiro. De outro, ao foquismo, apregoado por grupos armados como a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) e a Ação Libertadora Nacional (ALN).
Em março de 1966 a Classe Operária publicaria o documento “O marxismo-leninismo triunfará na América Latina”. Segundo ele os teóricos do foco menosprezavam o fato de que “esses grupos (armados) deveriam estar profundamente identificados com as aspirações populares, em particular da região onde operam, necessitam atuar em função dos interesses das massas, contribuir para despertar sua consciência política e ajudar na sua organização”.
A crítica ao foquismo seria mais desenvolvida em outro documento intitulado “Alguns problemas ideológicos da revolução na América Latina” de maio de 1968.
No entanto, o principal texto do PCdoB tratando da luta guerrilheira foi “Guerra Popular: caminho da luta armada no Brasil”, publicado em janeiro de 1969 – um mês depois do AI-5 e pouco mais de dois anos após os primeiros guerrilheiros terem se implantado na região do Araguaia.
Nele “pela primeira vez, os comunistas abordam de modo claro e fundamentado sua concepção sobre a luta armada (…). O documento demonstra que, para ser vitoriosa, a revolução assumirá o aspecto de guerra prolongada, travada fundamentalmente no interior, que se inicia por pequenos grupos guerrilheiros, cria bases de apoio no campo e se orienta para incorporar à luta grandes massas populares. As cidades cumprirão importante função, apoiando concretamente as ações guerrilheiras no interior e coordenando com estas lutas suas ações urbanas de diferentes tipos”. (Documento 50 anos de Luta, março de 1972). Assim, idealmente, esta era a política a ser desenvolvida na região do Araguaia.
Amazonas participou ativamente da organização da guerrilha. Ficou na região por quatro anos (1968-1972). Ali, contou, manteve estreitas relações “com os homens e mulheres simples do campo e com a juventude entusiasta das cidades que lá foi viver”, aprendeu bastante e reforçou ainda mais suas convicções revolucionárias. “Na área em que eu morava, às margens da Gameleira, começamos a desenvolver formas de trabalho em comum, na plantação de um ou de outro lavrador.
O trabalho rendia mais. Ou então fazíamos ‘mutirão’ na roça de algum vizinho doente que não podia aproveitar a época apropriada ao plantio. Essas iniciativas foram saudadas com alegria e entusiasmo pelos moradores locais. Diziam: ‘Este ano vai ser bom, porque a união está crescendo entre nós’. Enfim, vi as massas camponesas no Araguaia como um povo simples e bom, trabalhador, compreensivo, encerrado em seu mundo de horizontes de vida estreitos, porém capaz de criar, pensar, traçar normas de vida respeitáveis.
Vi também as massas camponesas – e esta foi a minha observação mais pensada – como um grande potencial revolucionário a ser mobilizado e posto em ação. Aí se encontra o aliado principal e insubstituível da classe operária. Como dirigentes do Partido Comunista do Brasil, eu, Grabois e Arroyo nos revezávamos constantemente na vinda a São Paulo, a fim de cumprir nossos deveres junto à Comissão Executiva e ao Comitê Central”.
Dois sobreviventes da guerrilha falaram sobre a vida de Amazonas no Araguaia. O primeiro deles foi Glênio Sá. Escreveu ele: “Desembarcamos na margem esquerda do rio e caminhamos duas léguas (uma légua equivale a cerca de 6.600 m), com as compras nas costas e nova pergunta na cabeça: quem seria o tio Cid, do qual Zeca dizia a todos que éramos sobrinhos? E Osvaldão, do qual ouvimos comentários no próprio barco? (…) Em fins de julho de 70, no início da noite, chegamos finalmente à casa feita de paus e palha, cercada de mato, onde nos aguardavam um velhinho magro e um negrão descomunal, de porte atlético. Os dois estavam armados.
Depois vim saber que o velho era João Amazonas e o negrão atlético era o próprio Osvaldão. Após nos servirem uma comida muito gostosa, cozida em fogo de lenha, fizeram uma exposição sobre a nossa vida a partir de agora, a importância da nova tarefa e os cuidados no relacionamento com os moradores da região, nossos vizinhos.”
No seu depoimento Glênio narra a dureza da integração ao trabalho no campo e a postura do velho Cid: “A vida do povo da floresta é muito dura. Na roça, além da derriba e da juquira, tem a coivara (limpeza inicial para preparar o solo para receber as sementes).
Depois tem a plantação em si, a manutenção da limpeza em torno dos pés, a colheita, o armazenamento e o transporte, que é muito difícil nessa área. Isso tudo sem falar nos cuidados para que os insetos e os macacos não destruam a plantação.
Os macacos usam um sistema de vigilância e retirada organizada. As formigas, aos milhões, atacam a plantação e voltam para o formigueiro carregando pedaços de folhas muitas vezes maiores que elas. (…) Além da roça, um trabalho muito duro é o do corte da castanha-do-pará.
Tem o perigo mortal da queda dos ouriços (frutos de casca dura); a dificuldade em carregar o paneiro (espécie de mochila aberta na parte de cima, feita de fibras vegetais), cheio de ouriços, descendo as encostas enlamaçadas; a complicação de quebrar os ouriços para retirar as castanhas; o trabalho de lavagem e seleção das castanhas e o transporte até os centros de compra etc. (…) quando (tio Cid) chegava da cidade, participava de todas as atividades, apesar da idade, e ficava bravo quando se sentia protegido”.
Glênio relembrou também momentos de alegria e de esperança. “No dia 31 de dezembro (de 1971), estavam todos no castanhal do Ferreira, inclusive o tio Cid. A programação começou logo cedo, com a preparação de uma emboscada simulada, no caminho que ia para a nossa casa na Gameleira. O local tinha chamado a atenção do nosso comandante.
O resultado dessa emboscada foi um veado mateiro morto por Osvaldão para a nossa festa, que ia ter também polenta, feijão, arroz, carne de paca, caititu, palmito de babaçu e muito leite de castanha-do-pará. Entramos no local da nossa festa, o Osvaldão na frente com o mateiro sobre os ombros, em fila indiana, cantando a Internacional.
Foi emocionante. Tio Cid, quando ouviu o hino dos proletários saindo de dentro da floresta cantado por um bando de homens armados, virou um menino traquinas, saltando no terreiro da casa. Neste dia tivemos de tudo: jogo de vôlei, música, poesias e teatro. De bebida, a sembereba de bacaba, regando aquela comilança.
A noite estava enluarada e ficamos conversando, animados. Cinco minutos para a meia-noite nos perfilamos com as armas empunhadas e saudamos a chegada do ano novo com tiros para o alto. Éramos vinte pessoas”.
O segundo depoimento é de José Genoíno Neto: “A terrinha tinha sido comprada por 50 cruzeiros pelo Osvaldão. Para todos os efeitos, o direito de posse era dele, eu era ‘sócio’ e ‘sobrinho’ daquele velhinho que estava lá. Esse velhinho, que depois eu soube que era o João Amazonas de Souza Pedroso, pegou o calendariozinho, tirou a folhinha e disse: – Guarda isso contigo.
Era 26 de julho, data da revolução cubana”.
O seu destacamento começou com cinco pessoas – Genoíno, Osvaldão, Bronca, Glênio Sá e João Amazonas. Continua ele: “As atividades desses quatro eram desbravar a região, começar o trabalho na roça, se relacionar com a população, com muito cuidado e jeito, andar na mata, caçar, percorrer a região. Não havia ainda uma atividade militar sistematizada; estava se criando condições, lá na Gameleira, para vir mais gente e – aí sim – formar um destacamento, uma unidade militar”.
Amazonas, por sua vez, nunca se cansou de enaltecer as virtudes daqueles jovens guerrilheiros: “Quantas vezes admiramos o esforço exitoso do médico Haas Sobrinho, cortando e transportando folhas de palmeiras para cobrir nossas palhoças, inventando móveis com troncos caídos na mata, semeando o chão e preocupando-se em estudar os tipos de enfermidade comuns nessa área e a maneira de curá-las!
Tudo isso sem ostentação, como se estivesse no seu próprio meio. Comovia-nos a disposição do engenheiro Lúcio Petit, fazendo trabalho de tropeiro com perfeição, conduzindo, às vezes dentro da noite, burros com cargas levadas da beira do rio para o local onde habitava, dez, doze léguas distante. Entusiasmava-nos a aprendizagem multifacética do André Grabois, que ao chegar ao Araguaia repetia, um tanto desolado, ‘eu não sei fazer nada’, e que, em pouco tempo, converteu-se em trabalhador exemplar, inteligente e criativo.
Impressionava-nos a capacidade dirigente do metalúrgico Giancarlo Castigilia que se tornou, à frente do pequeno negócio da Faveira, com seus 26 anos de idade, uma pessoa muito respeitada na região; sabia resolver com seriedade todos os problemas que ali surgiam. Apreciamos a tenacidade de Elenira, da Sônia, da Tuca, da Sueli, da Dina, da Jana e da Maria Célia, da Valquíria e da Dinaelsa e de outras companheiras e companheiros que foram para a selva e demonstraram tão alta capacidade de adaptação e de contato fraternal com os moradores locais. Pude compreender melhor, vendo os progressos que faziam, a força do ideal revolucionário”.
No Araguaia”, continuou ele, “encontravam-se jovens de diferentes formações: operários, camponeses, bancários, enfermeiras, médicos, engenheiros, geólogos e, principalmente, estudantes universitários. Tinham a seu favor o conhecimento da região e a ampla relação com a população local. Enfrentavam, porém, tremenda desigualdade no que diz respeito ao armamento, em contraste com as armas sofisticadas das Forças Armadas.
Essa luta era a luta de cem contra vinte mil. Jovens, homens e mulheres, e aqui rendo minha homenagem às mulheres, que não foram poucas e que foram capazes de se igualar aos homens e, às vezes, até ultrapassá-los em heroísmo e bravura”.
Ediria conta outro episódio, que demonstra os perigos vividos na selva: “Quando João vivia no Araguaia, ele não sabia nadar. Uma vez, estava num barco com o filho do Maurício e um outro camarada e o barco virou. Ele caiu e foi ao fundo. Em vez de a correnteza levá-lo, ele subiu , foi até onde estava a canoa e conseguiu escapar”.
Como dirigentes nacionais, Amazonas e Grabois também deveriam contribuir com o debate teórico e ideológico existente no movimento comunista internacional. Aproveitando o centenário de Lênin, eles travaram uma polêmica indireta com os chineses que afirmavam que o “pensamento Mao Tse Tung” representava uma nova etapa do marxismo.
João já havia tido conhecimento dessas ideias quando esteve na China em 1967. Por isso, juntos escreveram o artigo “A Atualidade das ideias de Lênin”, publicado n’A Classe Operária em abril de 1970. “Para os comunistas brasileiros, dizia o texto, o centenário do nascimento de V. I. Lênin é motivo não somente para destacar a ajuda inestimável que prestou ao movimento comunista. É também uma oportunidade para reverenciar a memória desse profundo pensador revolucionário e ressaltar a grandiosidade de sua obra e a atualidade de sua doutrina. Lênin abriu caminhos novos, enriqueceu imensamente o marxismo.
Vivendo uma nova época, a época do imperialismo e das revoluções proletárias, que ainda hoje perdura, fundamentou as principais questões atinentes à luta dos povos neste período da história da Humanidade (…). O leninismo representa uma grande bandeira a ser levada adiante por todos os que almejam o socialismo e o comunismo. É um manancial inesgotável de saber que amplia os horizontes de luta dos trabalhadores”.
Nas selvas do Araguaia João e Grabois se envolveram também na difícil tarefa de redigir um balanço dos 50 anos de luta do Partido Comunista do Brasil. Este informe seria apresentado na reunião ampliada do Comitê Central que comemoraria este importante acontecimento.
Escreve Osvaldo Bertolino: “Pelo sistema rotativo de cumprimento das atividades da direção do PCdoB em São Paulo, caberia a Maurício Grabois participar das comemorações daquele aniversário com a direção na capital paulista, no dia 25 de março de 1972. Mas devido a um problema dentário, houve uma troca e João Amazonas deixou a região, acompanhado de Elza Monnerat, no começo de março”.
O que não sabiam é que nunca mais veriam Grabois e a maioria daqueles jovens e abnegados guerrilheiros. No caminho encontraram Carlos Danielli que os conduziu até aquela importante reunião do Comitê Central, realizada entre os dias 23 e 25 de março, num aparelho do Partido no bairro Granja Julieta em São Paulo.
A reunião, conforme edição especial de A Classe Operária, “presidida por antigo membro do Partido e do Comitê Central, decorreu num ambiente de grande entusiasmo revolucionário. O camarada José proferiu vibrante discurso alusivo às datas de 25 de março e 18 de fevereiro. Em seguida, foram lidas mensagens recebidas dos partidos irmãos, destacando-se, entre outras, as do Partido Comunista da China, Partido do Trabalho da Albânia e do Partido Comunista da Itália (marxista-leninista)”.
O seu objetivo não era apenas apresentar uma exposição detalhada da história partidária, mas, também, fazer um balanço e extrair as principais lições daquela experiência cinquentenária.
Quando acabou a reunião, Amazonas e Elza retornaram para o sul do Pará. Amazonas narra: “Devíamos voltar precisamente no dia 14 de abril. O ataque (das Forças Armadas aos moradores do Araguaia) foi no dia 12, e não sabíamos.
A Elza viajou antes de mim, pois eu tinha contraído, com a extração de um dente, grave infecção bucal. Saí de São Paulo na data combinada. Ao chegar em Anápolis, comprei imediatamente passagem para o ônibus que sairia às 19h30 rumo ao Araguaia. Já tinha deixado a estação rodoviária quando me lembrei de comprar uns folhetos de literatura de cordel, vendidos na livraria da estação. Com surpresa vi, casualmente, que a Elza ali se encontrava.
Tinha escapado de ser detida em Marabá e retornou imediatamente para dar-me o aviso. Digo casualmente porque, se não me ocorresse comprar os folhetos, não a teria encontrado. Ela não sabia da saída do ônibus de 19h30”.
Continua ele: “Retornando a São Paulo tomamos providências para rearticular o contato com os camaradas da mata, o que demorou um pouco. Logo que esse contato foi restabelecido, iniciei os preparativos para retornar ao Araguaia. Viajaria juntamente com a Crimeia, que de lá tinha vindo por motivos de saúde.
Acertáramos a data do retorno, que seria em abril/maio de 1973. Acontece que a Crimeia foi presa nos últimos dias de dezembro de 1972. Essa prisão tornou irrealizável, de imediato, os nossos planos. E mais tarde o desenvolvimento da luta já não aconselhava a minha volta”.
A guerrilha foi dizimada no início de 1974. No natal do ano anterior, a Comissão Militar havia caído e seu comandante, Maurício Grabois, assassinado. Fazendo um balanço daquela experiência, Amazonas afirmou: “Foi um movimento intimamente ligado à população camponesa, pobre e sofrida da região. Resistiu por três anos e é uma página gloriosa das lutas do nosso povo. As Forças Armadas atuaram no Araguaia como bárbaros.
Cometeram crimes imperdoáveis. Degolaram guerrilheiros, expuseram corpos mutilados nas vilas e nas cidades para atemorizar a população. Violaram as próprias leis de guerra. Mataram prisioneiros indefesos. Torturaram e muitos dos torturados enlouqueceram (…).
Todos estavam decididos a lutar, e a morrer se necessário, em defesa da liberdade. Inclusive as nossas companheiras, jovens que abandonaram famílias, namorados e estudos para participar desse sonho. Lutaram de igual para igual, deixando para a posteridade a prova do valor da mulher brasileira”.