O homem do Pacoval não vai ao Rio
O homem do Pacoval não vai ao Rio
Quase ninguém se lembra de Raiymundo de Morais, prático de navegação do rio Amazonas e capitão de navio-gaiola no tempo da Borracha. Certamente, o autor do especulativo “O homem do Pacoval” não goza de interesse acadêmico. Mas, caso o Turismo ainda tiver imaginação criadora para brasileiro descobrir o norte do Brasil e não apenas pra inglês ver, faria grande sucesso em roteiros de antigas expedições em busca de temas lendários ou informativos sobre os principais naturalistas do descobrimento da Amazônia. Ele colou grau, por assim dizer; na proa do navio cursando a maior universidade aberta do mundo: o vasto Mar Doce dito Grão-Pará. Iguais a este um, outros intelectuais orgânicos são chamados de “autodidatas” ou “regionalistas” por rebaixamento em relação à região império do Brazil – como se fosse possível ao homem saber fortes coisas ainda menino, que nem peixe sabe nadar desde alevino. Mas, não se enganem, vocês carecem conhecer o Museu do Marajó para dar o devido valor ao conhecimento intuitivo tradicional do Brasil profundo. Este estúrdio museu é uma espécie de nau capitânia, ancorado no porto da vetusta Cultura Marajoara. Duvidam? Então vão lá antes que ele se acabe entre chuvas e esquecimento, que nem o Chalé do romance “Chove nos campos de Cachoeira”.
Obra de um inesperado casamento pela espiral evolutiva da necessidade com o acaso, inventada em desespero de causa pelo padre Giovanni Gallo, autodidata da amazonidade jogado às feras que nem boi de piranha, a exemplo do referido navegador amazônida e outros descobridores de arcanos, mais ou menos secretos, como crianças abelhudas. Quer dizer, se o curioso for se guiar exclusivamente pelos acadêmicos bem diplomados tarde há de descobrir que, na prática, a teoria é outra. Ficará perdido no mato sem cachorro ou encalhado no primeiro estirão, mormente na saída do canal da Cidade para o Carnapijó, que muda a cada maré grande conforme o capricho da mãe do rio, nossa senhora das águas, a Cobragrande.1972 foi o ano da invenção d’O Nosso Museu lá nas bordas do lago Arari, coração possante da ilha do Marajó. Assim se chamou o singular museu do homem do Pacoval, até pouco antes da mudança de sede de Santa Cruz para Cachoeira do Arari (1984), de acordo com o livro-reportagem “Marajó; a ditadura da água”. Belém, Edições “O Nosso Museu”, Santa Cruz do Arari Pará 1981 – 2a Edição. Pensando bem, não pode haver dúvida de que esse é o primeiro ecomuseu dos Brasis, retratando certamente a ecocivilização amazônica de mais de mil anos de idade, inventada por acaso na ilha do Marajó. Agora em ruínas entregue à pata dos búfalos enquanto dá nó na cabeça de pesquisadores para mudar o estropício desenvolvimentista e encontrar no futuro algo semelhante ao que existia no passado distante.
A obra citada informa que o romancista Dalcídio Jurandir, em correspondência entre o Rio de Janeiro e Belém através da amiga fiel Maria de Belém Menezes, incentivou o padre dos pescadores do lago Arari a publicar o livro. Estamos lembrados que Maria de Belém é filha do poeta da negritude Bruno de Menezes, a quem Dalcídio tratava carinhosamente de “babalorixá”…. Bruno foi mentor da Academia do Peixe Frito, notável confraria do Ver O Peso curadora da festividade folclórica de São Benedito da Praia, no bojo do movimento modernista paraense, ocorrido nos anos de 1930 em torno da revista literária Belém Nova. Desgraçadamente, a modernização conservadora do Pará tem relegado ao esquecimento estas manifestações populares da paisagem cultural Belém-Marajó, notadamente a Cultura Marajoara: mátria da ecocivilização amazônica de 1500 anos de idade, que o Museu do Marajó peleja para não deixar o povo esquecer para sempre, enquanto longe dos olhos e do coração da gente marajoara, coleções arrancadas de sítios arqueológicos ornamentam coleções estrangeiras de “arte primitiva”…
O turista desavisado poderia acreditar que o búfalo é o maior símbolo cultural do Marajó sem desconfiar que ali o que importa é o “homem do Pacoval”, inventor da primeira ecocivilização da Amazônia, conforme se pode inferir da Arqueologia amazõnica. Este marajoara desconhecido ainda tem remanescentes dentre pescadores desmemoriados e despossuídos do Lago e rio Arari que não vão à conferência Rio+20… Dalcídio escreveu à Maria de Belém: “Que o padre tire uma coleção de reportagens e faça um livro que será retrato da terra e da gente de Jenipapo…. […] … A foto das crianças de Jenipapo me comove, são meus netos marajoaras, alegres apesar da miséria, apesar da dura condição em que vivem… […] O padre Giovanni é corajoso, sim senhor, tocando em feridas velhas, na área de Jenipapo e Santa Cruz do Arari. Feridas que sangram em meu romance “Marajó”. O que me surprende é que as coisas lá não mudam, ao contrário, se agravam… […] O padre Gallo, com muita ênfase e jeito, confirma a denúncia. Não estamos tão distantes um do outro”.
Claro, por acaso, o chão do romancista agnóstico de “Chove nos campos de Cachoeira” é o mesmo campo do purgatório do padre italiano portador dos ventos do Concílio Vaticano II e da Teologia da Libertação – o aggiornamento da igreja romana e ajuste de contas do catolicismo consigo mesmo em quinhentos anos de contradições dilacerantes do Cristianismo – entre cabocos desnorteados e perdidos no mundo das águas, na boca do maior rio da Terra em luta de titãs com o Mar-Oceano. Ribeirinhos devotos do Glorioso São Sebastião que nem desconfiam das importações portuguesas do mito do Rei Dom Sebastião e da utopia do Bom Selvagem tupinambá, misturadas à encantaria afrobrasileira. O europeu ilustrado insubmisso aos cânones, autor do autobiográfico “O homem que implodiu”, se fez marajoara por necessidade e acaso vendo neste estranho destino a mão de Deus para despertar a gente do fim do mundo, vivendo o missionário seus últimos dias feito um caboco entre os outros cabocos: Giovanni Gallo morreu e se fez enterrar à ilharga do incrível museu inventado de “cacos de índio” extintos e de ingênuas estórias populares, para ressuscitar uma milenar civilização morta entre chuvas e esquecimento. Em 2013, já no pós-Rio+20, vai transcorrer o décimo aniversário da morte do criador do Museu do Marajó: tempo para refazenda do homem do Pacoval, pois não?
José Varella, Belém-PA (1937), autor dos ensaios “Novíssima Viagem Filosófica”, “Amazônia Latina e a terra sem mal” e “Breve história da amazônia marajoara”.
autor dos ensaios “Novíssima Viagem Filosófica” e “Amazônia latina e a terra sem mal”, blog http://gentemarajoara.blogspot.com