Maria Liège Santos Rocha
Como você está vendo a Conferência?
Estou extremamente feliz e contente com o êxito da Conferência. Pelo nível da mobilização, pelo nível de participação, de homens e mulheres, pelo nível dos debates que aconteceram nos Estados. Os debates são enriquecedores. Então, estou vendo com muita satisfação, com muita alegria, pelo resultado desse trabalho, que é coletivo do Fórum Nacional do PCdoB sobre a emancipação das mulheres.
O Partido Comunista tem a emancipação da mulher como uma questão que vem da sua fundação, em 1922. Como você vê essa trajetória até chegar nesta Conferência, que podemos considerar o ponto máximo dessa evolução?
O resgate histórico, como você disse, mostra que em 1925 já se falava nisso. No V Congresso, em 1954, também se fala nessa questão da mulher, inclusive na época teve um informe sobre o tema. Penso que tivemos uma ação mais efetiva, mais organizada, mais sistematizada, a partir da volta de João Amazonas do exílio, em 1979, quando ele reuniu, no início da década de 1980, algumas companheiras – dentre elas, eu – e começou a fazer um debate sobre essa questão de uma forma mais sistematizada, mais organizada.
E isso, a meu ver, foi dando mais corpo a essa discussão no Partido. Tivemos, por exemplo, um informe apresentado por Jô Moraes no VI Congresso, no qual estão traçados os princípios do que chamamos de corrente emancipacionista. E ali também já são apontadas diretrizes para a nossa ação política de massas, com a criação das Uniões de Mulheres. Penso que isso foi num crescendo. Depois disso, por volta de 1986, foi criada a Comissão Nacional de Mulheres, com a Ana Rocha como responsável, tendo uma presença mais próxima de João Amazonas, que sempre contribuiu com esse debate. E a partir daí fomos avançando.
Em seguida, foi criada uma secretaria nacional, no início chamada Secretaria Nacional de Massas, que incorporava uma responsável pela questão de gênero, no caso, eu. Depois do X Congresso é que de fato surgiu a Secretaria Nacional da Mulher. Portanto, isso vem num crescendo, vem num acúmulo de debate teórico, político, de envolvimento cada vez maior do Partido. A primeira Conferência foi exitosa. Estamos realizando esta segunda também com êxito.
E a experiência nesses últimos períodos do Fórum Nacional criado a partir da I Conferência, que é uma questão do Estatuto do Partido, tem sido muito boa. O Fórum tem um papel e um caráter de elaborar políticas da luta emancipacionista. E também um caráter de direção e acompanhamento dessa política aplicada no Partido. É uma experiência não só nova, mas inovadora, do ponto de vista dos partidos no Brasil. Como também a Conferência, porque nenhum partido faz uma conferência a exemplo do que faz o PCdoB. Os partidos fazem encontros de mulheres, mas o PCdoB faz uma Conferência que é de partido, na qual participam homens e mulheres.
Claro, precisamos aprimorar cada vez mais. Para que possamos, digamos assim, cada vez mais fazer isso ser uma tarefa de todo o Partido. Já conseguimos avanços. A partir da I Conferência conseguimos que as direções partidárias tenham 30% de mulheres. Desde o Comitê Central até as direções estaduais e alguns diretórios municipais. Então, isso é um avanço. E também temos a questão da representação oficial do Partido. Hoje não se pensa numa representação oficial do Partido, no Brasil ou no exterior, sem que haja uma integração das mulheres.
E isso vem criando uma nova realidade no Partido. Um novo sentimento de incorporar isso como uma questão efetiva. Conversando com Walter Sorrentino, fazendo um balanço desse processo depois das primeiras conferências realizadas após a I Conferência, quando se instituíram os 30%, avaliávamos que isso não ocorreu apenas para cumprir tabela, mas foi uma questão incorporada pelo Partido. O que também deu outra qualidade a esse debate nas direções partidárias.
Você falou em corrente emancipacionista. Explica o que é esse conceito.
Desde a volta de João Amazonas do exílio, nós vimos formulando uma proposta tanto teórica quanto política do que chamamos corrente emancipacionista. Na sociedade hoje temos correntes do feminismo brasileiro que são sexistas. Para elas, o inimigo principal é o homem. Como já dizia Clara Zetkin, no início do século XX, as feministas burguesas se consideravam como uma classe social, cujo inimigo principal eram os homens. Então, na atualidade, no Brasil e no mundo, temos essa corrente sexista que vê como inimigo principal os homens, e não tem nenhuma relação com a questão de classe.
Enquanto nós, da corrente emancipacionista, entendemos que existe a questão da opressão de classe, mas também tem a questão da opressão de gênero. E não podemos deixar de lado a questão de cor. Portanto, para a corrente emancipacionista, a emancipação das mulheres se dá em vários níveis. Por exemplo, nos marcos do capitalismo, vai se conseguir a emancipação política, que é a conquista de direitos. Mas isso por si só não basta. Temos que avançar nessa emancipação das mulheres. E essa emancipação, como já dizia August Bebel, anda pari passu com a emancipação de toda a sociedade, com a emancipação humana. Essa é a que chamamos de corrente emancipacionista.
E se limita ao PCdoB?
Sim. No Brasil, hoje, na verdade, quem tem essa corrente mais estruturada somos nós, do PCdoB. Porque há esses movimentos e algumas correntes feministas, essas correntes sexistas, e outras que se pautam apenas na conquista de direitos, sem ver a transformação da sociedade, a construção de uma nova sociedade. Por isso, penso que nós é que temos isso de uma forma mais estruturada, mais elaborada, que nos diferencia de outras correntes de opinião.
Quero voltar a João Amazonas. Você faz um ponto de inflexão quando ele volta do exílio. O PCdoB foi herdeiro de lutas de mulheres heroicas, mártires, como Elisa Branco, Zélia Magalhães, Elza Monnerat…
Mesmo antes de João Amazonas voltar do exílio, eu tive uma atuação no movimento feminino pela anistia na Bahia. Fui uma das organizadoras, junto com outras companheiras, do Movimento Feminino pela Anistia. Isso quando voltei da clandestinidade, em 1975, 1976. Então, nós tínhamos essa atuação. O que eu disse foi que, com a volta de João Amazonas, tivemos uma estruturação melhor, uma organização melhor do debate, uma sequência mais efetiva no debate. Isso não significa que nós tenhamos, por exemplo, participado de todo o processo da luta pela conquista do voto no Brasil, que foi puxado por Berta Lutz, mas havia outras pessoas envolvidas. Mesmo antes disso havia a Federação Brasileira de Mulheres, que surgiu no seio do Partido.
O que eu disse é o seguinte: o movimento feminista no Brasil sempre existiu, mas com a volta das exiladas, e muito antes até dessa volta, com a instituição pela ONU do Ano Internacional da Mulher e da década da mulher, isso impulsionou o movimento feminista de certa forma no Brasil. Tanto que com a volta das exiladas foram criados centros de estudo, o Centro Brasil Mulher, e uma série de coisas. Proliferou novamente a imprensa feminista, que tinha existido no século XIX. Portanto, esse movimento existia. Por exemplo, no século XIX as mulheres lutaram pelo direito de estudar. A imprensa feminina na época, que não se dizia feminista, tinha uma presença marcante.
Você acha que João Amazonas voltou influenciado por ideias da Europa, de outras experiências?
Não sei se ele veio influenciado por outras ideias, mas lembro uma vez, numa reunião das mulheres do Partido com João Amazonas, discutindo sobre essa questão da nossa atuação no movimento social ele reportava experiências da Rússia. Dizia sobre essa questão de que as mulheres terminam sempre se responsabilizando pelo cuidado dos filhos. Dizendo que mesmo quando as mães vão trabalhar, às vezes quem cuida dos filhos são outras mulheres. Então, ele tinha uma dimensão dessa questão da luta das mulheres provavelmente por influência dos clássicos, por influência da vivência dele. E ele era uma pessoa sensível a essa questão.
Quando ele dizia para nós que as mulheres tinham que vestir a camisa da mulher, era no sentido de que “vocês têm que incorporar isso e vocês têm a responsabilidade de ganhar outros para isso”. Mas se nós mulheres não estamos ganhas para isso, se nós não vestimos essa camisa, como vamos sensibilizar o coletivo? Ele chegou e tomou essa iniciativa, sugeriu a criação da entidade das mulheres, da revista Presença da Mulher, criada em 1986.
Ele era um estudioso dos clássicos. E então deve ter incorporado essas ideias de Marx, Engels, Bebel. E ele era uma pessoa muito atenta a isso. Lembro que a primeira vez que fui apresentar um informe no Congresso do Partido, eu tinha que ler para ele, e ele colocava o dedo em cada questão. Então, ele era uma pessoa atenta e sensível a essa questão. Não posso ter a dimensão de que influência ele teve. Pode até ser que esse período que ele ficou no exílio tenha visto experiências, trocado ideias e voltou mais decidido a implementar essa questão no Partido.
O Partido tem uma preocupação em atualizar a sua teoria para a realidade nossa hoje?
Acredito que essa preocupação existe. Porque, na I Conferência, nós já avaliamos que, embora alguns companheiros dizem que em relação ao movimento feminista que está aí, ou em relação aos outros partidos, temos avançado na elaboração. Mas algumas companheiras que têm uma atuação mais presente na academia avaliavam que nós tínhamos estagnado num certo ponto e que precisávamos avançar. Tanto que para esta II Conferência, apesar de algumas críticas de alguns companheiros, a demora da elaboração do documento foi exatamente porque não queríamos cair na mesmice. Queríamos dar um passo mais à frente. Por exemplo, essa discussão sobre que emancipação que queremos, veio à tona no debate a emancipação humana.
E em relação à própria realidade das mulheres brasileiras, temos acompanhado isso. Temos uma presença marcante, sempre, nessas conferências realizadas pelo governo brasileiro. Estivemos presentes em todas as três. Antes dessas conferências do governo nós realizamos uma conferência de mulheres brasileiras, em 2000, na qual éramos umas das correntes que a organizaram, e participamos de quase todas as mesas de debate. A nossa presença na luta de ideias é uma realidade. Nós estamos presentes nos vários espaços do movimento feminista.
Agora, nós consideramos que do ponto de vista da academia não conseguimos avançar, por exemplo, com essa relação mais frequente, mais presente, mais estreita com os núcleos de gênero da universidade. São coisas eventuais. O fato de termos conseguido, apesar de não ser do Partido, mas estar sob a nossa direção, a revista Presença da Mulher, é uma vitória. E às vezes eu digo que a revista é mais valorizada fora do que dentro do Partido. A revista é citada em cursos da universidade. Ela é pesquisada por estudantes.
Por isso, acho que temos essa preocupação com a elaboração teórica. Agora, num determinado momento nós vimos, por exemplo, e a própria I Conferência dizia, que precisávamos superar a subestimação que ainda existe no Partido em relação ao papel estratégico da luta pela emancipação das mulheres. E, então, alguém pergunta: “Mas o que é isso mesmo?”. Acho que isso se manifesta de várias formas. Por exemplo, de se achar que isso é coisa das mulheres; isso não é nem do Partido, mas da UBM etc. Isso é uma subestimação de certa forma.
Por outro lado, temos avançado nesse debate. E esta Conferência é um exemplo disso. É um exemplo da resposta que o Partido deu a essa questão. Quer dizer, o coletivo partidário que respondeu. O nível de mobilização e de debate é muito interessante. Tínhamos uma preocupação em relação a que as pessoas apenas se prendessem à questão política. Mas o debate foi muito, digamos assim, instigante porque alguns homens e mulheres levantaram e debateram a questão teórica também.
Então, essa é uma nova visão, quer dizer, essa presença dos homens aqui. Em alguns Estados os homens “brigaram”, no bom sentido, para saírem como delegados. Esse é também um caráter diferente. Como eu disse, o Partido ter definido uma cota masculina para a participação na conferência é inédito. Definimos um mínimo de 30 e um máximo de 50 homens nas delegações. Só se fala em cotas para as mulheres. E nós invertemos a questão. E esse também é um ponto positivo para o Partido.
Por exemplo, enquanto secretária nacional da mulher, eu integro o Fórum Nacional de instâncias de mulheres dos partidos. E muitas vezes, como na discussão sobre a reforma política, a comissão tripartite e o Fórum convidaram os presidentes de partido para participarem do debate. O único que apareceu foi Renato Rabelo. E foi um companheiro da Executiva do PSB. O pessoal ficou em polvorosa: “Liège, você é poderosa, você conseguiu trazer o presidente do seu partido”. Eu respondi: “Não sou a poderosa, mas o Partido é que incorporou essa discussão”.
Na discussão sobre plataforma eleitoral do Fórum e da secretaria de política para as mulheres, transcreveram textos integrais da nossa plataforma política para candidatos. Nós estamos no núcleo de direção do Partido, que é a Comissão Política. Muitas companheiras estão nas comissões políticas de seus Estados. Essa é uma realidade. E nós temos uma diferença nisso. Por isso, penso que estamos indo no bom caminho. Penso que esta conferência vai dar uma revigorada nesse debate dentro do Partido. Este é um ano eleitoral e também isso pode contribuir com as nossas candidaturas de mulheres.
Penso que ainda temos um longo caminho a percorrer. Ainda existe evidentemente o machismo no Partido, não apenas da parte de homens, mas de mulheres também. E eu sempre digo que a luta pela emancipação das mulheres é longa, não é uma questão fácil, porque mexe com o âmago das pessoas. Ela requer uma nova visão de mundo, mudança de comportamento, requer que seja incorporado essa questão da emancipação das mulheres e a emancipação humana, romper com a opressão. Então, isso mexe com a cabeça das pessoas, com a visão de mundo, com o comportamento, com a maneira de ver as coisas.
Por isso que eu digo que não admito brincadeiras que tenham tom depreciativo em relação à questão das mulheres, ou discriminatório em relação às mulheres. Porque isso é uma manifestação de que ideias que a pessoa tem na cabeça. E acho que se deve combater. Por quê? Porque isso contribui também num processo de educação, de renovação, de desconstrução de ideias. Acho que estamos indo no caminho certo.