UNIVERSO ILHÉU

 

 

A senhora mea mana e o senhor meu mano, um momento
Por favor, emprestem-me vossa atenção.
A gente vive e morre, paresque, numa vasta ilha-mundo
Chamada Terra, nossa amada mãe gentil; às vezes madrasta vil
Que os doutos chamam de Gaia ou Planeta quando lhes dá na veneta,
Embora já se saiba que a Terra mãe não é plana nem redonda:
Pra dar a ela uma forma conveniente inventaram a palavra “geóide”
Que quer dizer em grego o formato que, por natureza, a dita cuja tem
Sem tirar nem por… Vejam só!
E a gente pensando que não se fala grego nem tupi por aqui.

 

A árvore das palavras esconde a diversidade de vida da floresta
E a pureza das ideias extraídas da dureza da lei da selva oculta
O mundo cão onde o povão se acha no mato sem cachorro.
Já foi dito que índio vê a árvore, mas não vê a floresta… Será?
Tem-se lá algumas dúvidas
Masporém, pelo contrário, pode-se crer que branco vê a floresta
Sem enxergar as árvores que ela tem nem saber com quantos
Paus se faz uma canoa…

 

O pescador camarada do galo da madrugada, irmão da maré
Devoto da Estrela Dalva e das Três Marias do céu,
Peregrino nauta do Cruzeiro do Sul antigamente chamado
O Arapari por nossos avós tapuias vindos lá do alto mar Caribe
Onde o Pará velho de guerra tem antigo porto sentimental
E parentes de longa data,
Com ricas transações musicais e avultados contrabandos
Noves fora as migrações Galibi e Aruak, pelo menos
Desde o furto do café beirão pelo capitão Palheta para roças do Pará
Indo em seguida fundar fazendas e baronatos cafeeiros em São Paulo
além da histórica invasão preventiva de Caiena por tropas paraenses
sob comando anglo-lusitano
antes que da colônia vizinha franceses viessem ao cobiçado Amazonas
donde as plantas exóticas do Jardim Botânico do Rio de Janeiro
via Belém do Grão-Pará foram sacadas e aclimatadas
(cujo tiro saiu pela culatra e, diz-que, foi estopim da Adesão do Pará
à independência do Brasil e enfim da Cabanagem revolucionária).
A tropa de guarda-costa do Pará mandada à fronteira do Oiapoque
Prender vivo ou morto o índio Guaiamã, guerrilheiro do rio Guamá, destemido cacique aruã do Marajó e Mexiana,
Aquele um que assaltava aldeias de índios cativos dos portugueses
às ilhargas de Belém além dos Murubiras, na ilha do Moqueio
Pra levar escravos até Caiena a troco de armamentos franceses
A continuar a velha guerra entre Nheengaíbas e Tupinambás
Começada com certeza antes do descobrimento do rio das Amazonas
Por Francisco de Orellana e Gaspar de Carvajal
Emendada na expulsão dos holandeses e ingleses de Gurupá e Amapá
Cujas pazes celebradas pelo payaçu Antônio Vieira no rio dos Mapuá,
Um século depois do espanhol e quase 20 anos após
A monumental viagem de Pedro Teixeira de Belém a Quito
Levado e trazido de volta são e salvo por 1200 arqueiros
E remadores tupinambás;
deram termo a 44 anos de guerra contados
da tomada de São Luís do Maranhão.
Masporém, foram quebradas as ditas pazes de Mapuá pela pobreza
E malvadeza da ignorância dos colonos de Portugal
Expulsando eles os padres pacificadores e escravizando índios ilhéus
Pra fazer da ilha dos Nheengaíbas ou Aruans
Capitania hereditária dos barões de Joanes (ou Marajó).

 

Ora, a gente aprende na escola que Ivo viu a uva
E os barões assinalados de Portugal conquistaram
O rio das amazonas:
uma ova! Ivo viu o açaí e os barões sem índios
não iam a lugar nenhum além do forte do Presépio
e Solar da Beira..
 


A Amazônia é brasileira sim por que a gente quis e quer assim,
primeiro os sete caciques do Marajó optaram por Portugal
até a Adesão do Pará à Independência do Brasil
proclamada em Muaná!
Pelo contrário da estória oficial,
Foram as gentes das ilhas filhas da Pororoca que conquistaram
Direito de se empoderar do país do Cruzeiro do Sul, Brasil.
Nem só por causa do país do Arapari os nheengaíbas
Quebraram arcos de guerra e fizeram as pazes com os inimigos,
Como também por causa da cobiçada terra da promissão
Dos profetas Caraíbas: utopia do paraíso selvagem
Onde não existe fome, trabalho escravo, doença, velhice e morte.
No segundo caso, rescaldo de guerras napoleônicas
Vinda da Família Real portuguesa refugiada no Rio de Janeiro.

 

Desse tronco rude em peleja pra escapar da enrascada colonial
Surdiu-se a brava gente ajuntando povos originais dos Brasis,
Manos africanos e brancaranas do velho mundo despedidos sem adeus.
Gente que bota fé nas promessas do tempo e tem fiúza na natureza,
Com certeza em suas noites de solidão o pescador a ver se dá o peixe
Pra trazer de canoa pra beira depois da canseira da lida
O de comer dos seus e ganha pão da sua profissão
Seja lá fora nas ondas do mar profundo
Ou no meio do riozão deste nosso mundo ribeirinho desde jitinho.
Esse um já viu o céu profundo faiscando de estrelas num outro mar desconhecido e escuro em riba de nuvens passageiras.

 

Antão, o sumano  havera de ver o peso da enormíssima Via Láctea
Que nem porrudo arquipélago celeste onde cá ao canto a gente espera
Deste menino na esquina do Rio-Mar barrento e o azul marinho
Esverdeando a piscosa Corrente das Guianas ao largo do Marajó
A boa sorte ou a morte rumo ao Extremo-Norte a cabo duma vida
A bom pelejar nesta lida ribeirinha às vezes rica, masporém
Sofrida na maior parte do tempo.

 

Viver é lutar, já dizia o velho caboco filho de índia Tupinambá!
Logo o fado desumano engendra caminhos de liberdade aos sumanos,
As contradições da vida, paixão e morte da brava gente do Norte
É chave-mestra da invenção da Amazônia brasileira:
400 janeiros de guerra e pax (hoje Brasília carece saber)
Entre chuvas e esquecimento da saga do Bom Selvagem
A resistência Marajoara reforçada por negros da terra e da Guiné
Abre as portas dos sertões, sonda o Mar-Oceano português
Descobre a antiga ilha do Brazil no arquipélago dos Açores
Que nem a arca de Noé encalhada em riba do monte Ararat
Às ilhargas da Capadócia donde emigraram as lendárias amazonas
E os turcos encantados para casas de Mina no Maranhão e Pará.
Acha as ilhas Afortunadas, as Canárias, Cabo Verde, Antilhas…
Conquista a ilha de São Luís do Maranhão na baía de São Marcos,
Esconde nomes indígenas e lugares pra despistar o mapa do tesouro…
O El-Dorado real (suas promessas e misérias) sob capa do mito.

 

A astúcia do caboco reinventa a língua-geral e resgata as sete mil línguas amazônicas,
Aprende língua do inimigo para o conhecer de perto e contar de certo:
Apropria-se dela emprenhando-a de falas bárbaras e supimpas gírias.
Antropofagia obriga:
O índio avô proibido de comer gente valente vencida em combate,
já não achava graça nas virtudes da antiga guerra ritual.

 

Em compensação (louvado seja o beato Anchieta) o catecúmeno
Estava pronto, paresque
A comungar do banquete do grande Herói cristão na santa missa!
No cativeiro das aldeias da Missão
Festejou ele a amanhecente mestiçagem física e espiritual
com a Dança do Peixe, a fogosa Pirapuraceia
que havera de se casar com o lundum e afinal deu no carimbó. 
Se o diabo é o Outro e os colonizadores diabolizaram a santidade
Do Jurupari dos avoengos indígenas, antão a brava gente pega, mata
e come que nem caracará…

 

O sumano hoje viaja ao além mar a descobrir o outro lado da Terra sem males: seus males sem fim…
Saber quem inventou o mundo.
Ele devassa o verde cortinado das Ilhas do Grão-Pará rio acima,
Deflora a Floresta virgem
E o desengano da Terra sem males prometida pelos pajés-açus,
Misturando caruanas, santidades, orixás e vóduns esta gente
Casa e batiza seus filhos criados em seios fartos
Alimentados por braços fortes
Cogita o firmamento além do fim do estirão aonde o sol adormece
Na imaginação do Araquiçaua sagrado
Transforma o vulgar urubu do Ver O Peso em guará mágico
E unicórnio do cametaú em panacéia na feira
Faz do pensamento um pássaro mágico que o conduz
Sobre a distância e as muralhas invisíveis de mundos e cidades:
por isto a sentença final, a gente nasce  pra dormir e sonhar…
E morre para se encantar na eternidade da saudade enquanto dura.

 

Todo homem é uma ilha que sonha conquistar mundos e fundos,
Se cobrir de glórias e riquezas, batalhar sem descanso
Só por um pouco de paz e reinar numa ilha perdida no fim do mundo.
Toda ilha namora o continente pra fazer fortuna, vender lá
O seu peixe e voltar ao seu lugar natal cheio de histórias pra contar.

 

 

   José Varella, Belém-PA (1937), autor dos ensaios “Novíssima Viagem Filosófica”, “Amazônia Latina e a terra sem mal” e “Breve história da amazônia marajoara”.

autor dos ensaios “Novíssima Viagem Filosófica” e “Amazônia latina e a terra sem mal”, blog http://gentemarajoara.blogspot.com