Os autores deste livro, João Carlos Vitor Garcia e Alvaro Rocha Filho, amigos e colaboradores do protagonista, o definem como um ”dissidente oligárquico típico”. De fato, Archer saiu de uma família tradicional. Seu pai, ”industrial têxtil”, o que em primeiro lugar significa afinação com os interesses nacionais via criação de mercado interno, foi governador do Maranhão. No Palácio dos Leões de São Luís, o jovem Renato iniciou a vida pública, aos 24 anos, como chefe de gabinete. Nesse ambiente pontificava uma esfinge da política brasileira, ainda não o bastante desvendada, o velho Partido Social – Democrático (PSD), conservador e reformista, pelo qual ele seria eleito vice-governador do estado e deputado, integrando a Ala Moça da organização na companhia de Ulysses Guimarães.


Pois esse homem público, aqui apropriadamente caracterizado como ”dissidente singular”, assumiu as posições mais progressistas em um dos setores submetidos ao controle estrangeiro, o da ciência e tecnologia e, em especial, o estudo e o domínio da energia nuclear. Nesse campo destacam-se políticos ditos conservadores e militares considerados estreitos (e Archer foi capitão de fragata da Marinha), lutando contra a submissão de grupos que se diziam modernos, mas que só repetiam o modelo pré-industrial de exportação de produtos primários e matérias-primas, com importação de manufaturados e tecnologia intransferível. A União Democrática Nacional (UDN), por exemplo, era um partido que, se existisse no século XVII, teria ficado do lado dos holandeses que invadiram o Nordeste. Não é, como se vê, uma polaridade resolvida na realidade brasileira. Mesmo correndo o risco de exagerar o papel do indivíduo na História, é lícito afirmar que, não fossem estadistas como Archer, ainda estaríamos vendendo algodão bruto e comprando a linha de costura feita com ele.


A trajetória de homens como Renato Archer segue a linhagem de uma elite culta que conjugou o progresso com os interesses nacionais, como Cláudio Manuel da Costa, José Bonifácio, Joaquim Nabuco, Rui Barbosa, Barão do Rio Branco, Getúlio Vargas, San Tiago Dantas. Baseados no conservadorismo renovador, nenhum foi revolucionário pelo figurino da luta de classes ou da transformação das estruturas sociais, nem deles isso se pode cobrar, pois foram transformadores em suas circunstâncias, inovadores e partidários da grandeza do país.


Desde a Escola Naval, Renato Archer ligou-se a um dos maiores brasileiros, o almirante Álvaro Alberto da Motta e Silva, um pioneiro que já na década de 1930 pôs o Brasil na trilha da energia nuclear a ponto de incluir o estudo dessa disciplina no currículo de formação do guarda-marinha em 1939. Archer foi discípulo e parceiro de Álvaro Alberto em iniciativas seminais como a da criação do Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq) e a deflagração do Programa Nuclear Brasileiro, audacioso, pioneiro, como o da Índia, deslanchado à revelia dos países industrializados. O resultado foi e é um triunfo admirável. Hoje o Brasil constrói avançados equipamentos de enriquecimento de urânio para abastecer usinas energéticas e alimentar o submarino atômico que, a duras penas, a Marinha está tentando construir.


Uma história exemplar quanto ao conflituoso fluxo de matérias-primas e conhecimento é enfim relatada com detalhes neste livro. Em 1946, quando as potências vencedoras da Segunda Guerra Mundial – Estados Unidos, França, Inglaterra e União Soviética – organizaram na Organização das Nações Unidas (ONU), a primeira reunião da recém-criada Comissão de Energia Atômica (CEA), o Brasil foi convidado a ingressar no seleto clube por deter reservas de minérios radioativos. Os americanos apresentaram uma proposta de internacionalização das jazidas, para corrigir as ”injustiças da natureza” que dera minérios a países que não tinham conhecimento para manufaturá-los, como o Brasil, e tecnologia a quem não possuía urânio e tório para processar, a exemplo dos Estados Unidos. As bombas de Hiroshima e Nagasaki foram construídas com material levado do Congo Belga.


Como chefe da delegação do Brasil na Comissão, Álvaro Alberto apoiou a proposta americana… desde que estendida a outros minerais estratégicos, como o petróleo, abundante nos Estados Unidos, e no Brasil, na época, limitado ao pequeno de campo de Lobato, na Bahia. Ressalte-se que as disputas eram ditadas por questões de Estado, não por mero antiamericanismo, já definido como ”a doença infantil do nacionalismo”.


Culto, elegante, dominando a palavra e o ritmo da narrativa, dotado de excepcional memória ajudada pela organização metódica, Archer dá um depoimento que atravessa os grandes assuntos nacionais. Instrui e encanta o leitor com seu testemunho de sujeito ativo em numerosos acontecimentos importantes da história do Brasil. Generoso, imprime bom humor onde poderia ter prevalecido ressentimento, como na lembrança dos embates na Câmara dos Deputados com o udenista Carlos Lacerda, ainda na década de 1950, quando o líder da UDN tentava desestabilizar no Parlamento o governo legitimamente eleito, cuja posse não conseguira impedir. Mais tarde, em 1966, Archer participou com Lacerda da Frente Ampla contra o governo militar, movimento que incluiu os ex-presidentes Juscelino Kubitschek e João Goulart. O episódio demonstra que o que a história separa a política pode reunir. Chega a ser hilariante a narração do incidente em que, seguidos e parados no trânsito por um carro do Exército cheio de soldados armados, viu Lacerda dirigir-se ao general Assunção Cardoso com ”os piores impropérios” e dar chutes, dos quais o oficial se esquivava grotescamente em plena rua.


Neste depoimento de Renato Archer é possível conferir que a doutrina de libertação nacional não se esgota na independência política, mas se estende modernamente às regras de convivência entre países ricos e emergentes, ao intercâmbio comercial prejudicado pelo protecionismo e, sobretudo, ao conhecimento científico e tecnológico, ”em que se trava hoje a luta contra o colonialismo”. Com lucidez atualizada, Archer nos diz que ”toda história de formação e consolidação dos Estados nacionais é a história de um nacionalismo”. E questiona: ”O que me espanta é estarmos vivendo hoje um período de abandono dessas posições em troca de nada”.


Nessa linha de altivez inerente às grandes nações, Archer teve papel importante na formulação e sustentação da política externa independente que o Brasil assumiu quando San Tiago Dantas foi ministro e ele subsecretário de Relações Exteriores no governo de João Goulart, evitando alinhamentos automáticos que um país em ascensão, com interesses a defender e outros a disputar, não podia nem pode adotar, de modo a não repetir a assimétrica sociedade da galinha com o porco para produção de ovos com toucinho. A autonomia diplomática, ao menos, não se perdeu na poeira da história. Foi restaurada pelo presidente Ernesto Geisel e ampliada, com base democrática, pelo governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Segundo a filosofia de ‘’saber para fazer’’ que só se viabiliza na capacitação de quadros nacionais, muito se deve a Archer a criação do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), pregação iniciada ainda à época do governo Juscelino. Num encontro feliz de criador e criatura, Archer foi nomeado o primeiro titular do Ministério – instituído por Tancredo Neves, um de seus defensores históricos – no governo do presidente José Sarney, antigo adversário político no Maranhão que a frente de forças heterogêneas pela redemocratização reuniu em 1985. No MCT, Archer teve papel importante na política de informática que lançou as bases da industrialização de computadores, já adiantada pela Secretaria Especial de Informática desde 1979. Antes dela, havia oito empresas de informática no Brasil, das quais uma era a estatal Cobra. Entre as demais, três estrangeiras detinham 98,2% do mercado de computadores, de cerca de US$ 200 milhões. Em 1986, as nacionais já possuíam 55% do mercado. Se em 1979 o Brasil contava 190 mil computadores instalados, em 1987 eram aqui produzidos 1 milhão, movimentando US$ 2,32 bilhões.


Em contraste, em uma viagem à poderosa União Soviética, em 1986, Archer descobriu que aquele país tinha o objetivo de fabricar 1 milhão de computadores até 1990. “Nós tínhamos atingido isso em outubro de 1986.” Esses números explicam a violenta campanha de boicote à reserva de mercado no campo da informática. Transferência de tecnologia, mesmo na forma de um produto manufaturado, era tabu. Para vender um supercomputador à Petrobras, a IBM exigia que todos os operadores da máquina tivessem sua ficha aprovada pelo governo americano. Daí que o governo brasileiro teve de comprar um supercomputador para o Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) “à margem da lei”.


Há muito que ler e aprender neste livro precioso que João Carlos Vitor Garcia, Alvaro Rocha Filho e seus colaboradores legam à historiografia brasileira. Só o fato de resgatar o ideário de Renato Archer já o torna leitura indispensável como documento político atualizado, que repõe na cena política ideias-força que dela nunca deveriam ter saído, como o nacionalismo. Mas não se pode pôr em segundo plano a grandeza humanista de um homem que, em meio século de vida pública, enobreceu a política e nada quis além de construir um Brasil próspero e justo.

 

Aldo Rebelo é deputado federal (PCdoB-SP). O presente texto prefacia o livro “Renato Archer: energia atômica, soberania e desenvolvimento – Depoimento”, organizado por Alvaro Rocha Filho e João Carlos Vitor Garcia (Contraponto, 2006).